O ATOR E O ATO

O A T O R E O A T O

1910

A Europa ainda respira os ares da “belle époque”, porém, as principais potências mundiais já promovem uma corrida armamentista prevendo o pior; uma guerra.

Os países europeus insatisfeitos com a partilha dos mercados da África e Ásia, já formavam alianças; a Tríplice Aliança (Itália, Alemanha e o Império Austro – Húngaro) de um lado, e a Tríplice Entente (Inglaterra, França e Rússia), de outro.

Em 28 de julho de 1914, o Império Austro – Húngaro declararia guerra à Sérvia com base no assassinato do seu Príncipe Francisco Ferdinando acontecido em junho de 1914, guerra essa que só terminaria em 11 de novembro de 1918 com a entrada dos Estados Unidos da América, aliados à França e ao Reino Unido. A Rússia, por força do início da revolução interna, havia abandonado a guerra.

Seria terrivelmente sangrenta, cruel, chamada de “guerra de trincheiras”, quando as lutas seriam, na sua maioria, no corpo a corpo. Usariam armas pouco potentes, baionetas, que muitas das vezes não matavam, mas feriam gravemente o inimigo deixando-o em agonia até a morte.

Também, nessa guerra seriam usados pela primeira vez; aviões, submarinos, tanques.

Deixaria um saldo de mais de dez milhões de mortos, campos devastados além de grave crise econômica mundial sem precedentes, com desvalorização exagerada do dólar e do marco alemão.

Com esse clima de tensão pairando no ar, nascia François em uma pequena aldeia da França, num dos 27 quartos de um lindo, quase milenar castelo assentado sobre um rochedo, donde se avistava o Oceano Atlântico.

Família tradicional, herdeira de uma vinícola iniciada por seus antepassados que criaram e cultivaram uma rara variedade de uva, única, inigualável, que dava ao vinho ali produzido um raro buquê, sem necessidade de qualquer adição de outros elementos. Mais acentuado ficava ao envelhecer por anos a fio nas antigas adegas.

Nas terras do castelo ficavam os vinhedos, tratados com o mesmo carinho por todas as gerações que dele cuidaram, desde o patriarca, Seigneur Bernard, o criador dessa rara espécie de uva, fruto de vários enxertos.

François nascera sadio, normal, sem defeitos físicos ou mentais. O passar do tempo revelou grandes aptidões, que aos poucos, à medida que crescia, afloravam e se definiam.

Aos cinco anos, já dominava praticamente todo o teclado do piano Pleyel instalado no salão principal do castelo. Lia grande parte das partituras, praticava todos os dias com um grande mestre pianista e maestro.

Aos poucos, já lá pelos 12 anos, tomou gosto pela literatura, principalmente William Shakespeare. Devorava livro após livro da imensa biblioteca, deste e de outros grandes autores.

Mas, François não se contentava só com a leitura! Já aos 19, fazia questão de representar, como autodidata, os personagens, fossem masculinos, fossem femininos de vários textos que lia, transmudando-se com facilidade e rara habilidade a ponto de deixar uma pequena platéia, ou seja, sua própria família mais alguns amigos, extasiada. Atuava com perfeição nas festas dadas no castelo. Porém, só os aplausos deles não lhe bastavam, precisava de mais, mais... De liberdade, de novos ares... De viver sua própria vida. No entanto, sem profissão definida e renda própria, estava fadado a continuar a viver no castelo e dependente financeiramente dos seus pais.

Sua vida tornara-se péssima. Seu pai, ainda jovem, trabalhador honrado, inebriado pela força do dinheiro muito que possuía, e título de nobreza, foi aos poucos se entregando à bebida, à jogatina, à libertinagem. Muitas vezes perdia os escrúpulos. Isso tornava a vida da família num inferno. Bebia além da conta. E não sendo o bastante, mantinha uma amante na cidade, fato não oculto de ninguém, muito menos da sua esposa.

Essa afronta a fazia sentir-se vergonhosamente traída.

Ao chegar à casa, bêbado, tinha com ela violentas brigas. Chegavam muitas das vezes às “vias de fato”, agredindo-a violentamente, sem se importar com a presença de François, que fazia o possível para apartar. Quase sempre acabava por apanhar também.

Em contrapartida, com o intuito de agredir o marido, sua mãe passou a “dar o troco” agindo da mesma forma. A toda gente da cidade declarava seu ódio pelo marido, cujo comportamento era conhecido de todos procurando destruí-lo moralmente, prostituindo-se com os rapazes da aldeia, que dela se aproveitavam à vontade.

Não escondia de ninguém, nem do próprio marido sua vida promíscua. Ao contrário, fazia questão de que soubesse de tudo detalhadamente.

François sofria demais com tudo isso. Filho único, ao assistir às cenas deprimentes protagonizadas por seus pais, chegava à depressão com facilidade, angustiadamente chorava de tristeza, vergonha...

Sua mãe passou a rejeitá-lo fazendo-o sentir-se só, desprezado, deserdado, tornando-o deprimido. Seu pai o escorraçava, o mandava à merda facilmente e com relativa frequência.

O castelo tornara-se, para François, numa clausura. Começou a desenvolver doenças psicológicas que o faziam passar noites conturbadas, a ter pesadelos horríveis. Os cômodos mal iluminados, alguns um tanto fantasmagóricos, mais pareciam masmorras. Suas paredes de pedra se impunham como os limites da sua clausura.

À noite, ao se deitar, lembranças da infância se tornavam em saudades, pois nessa fase seus pais ainda se davam muito bem. Sua mãe dava-lhe o colo e seu pai contava-lhe histórias fantásticas, suas e de ancestrais ilustres, valentes. A convivência entre os pais era perfeita, de verdadeiros amantes. Viveu até o luxo de ter uma ama de leite, tendo ela participado ativamente da sua criação. Carinhosa, afetuosa, o adorava. Uma segunda mãe. Mas, cedo morreu.

Só, infeliz, deprimido, se debulhava em prantos pensando até em acabar com tudo. Mas não tinha coragem! Submetia-se, dia após dia, a esse infernal ambiente inóspito, que se deteriorava cada vez mais, atingindo-o impiedosamente.

Sua identidade estava sendo afetada. Não queria ser igual ao pai, porem, vez em quando percebia a força das heranças genéticas e emocionais se evidenciarem. Envergonhava-se da vida que a família passou a levar.

Sua conturbada mente fabricava constantes conflitos. Amor e ódio, invariavelmente o tomavam de assalto.

Desiludido com tudo, submisso aos ataques das suas lucubrações, foi também buscar, no baixo mundo, resolver seus problemas emocionais.

Na promiscuidade desse sórdido mundo, buscava o falso carinho das baixas meretrizes.. Na boemia procurava alento e libertação. Usava esses imundos ambientes como refúgio. Cada dia mais, se atolava na lama de vergonhosas atitudes. Embebedava-se além da conta, batia nas mulheres... Rebaixou-se até tornar-se o mais baixo e rejeitado frequentador dos piores bares, sujos, promíscuos, fedorentos...

Amigos de outrora passaram a abominá-lo. Até o surravam quando em vez e atiravam-no em poças de lama. Ali ficava, enlameado, parecido com um porco a chafurdar.

Envergonhado, enojado com tudo e todos, não suportou mais essa vida deprimente, submissa. E sentindo seu mundo em franca deterioração, resolveu fazer da arte de atuar uma profissão, motivo para se afastar de tudo.

Corajosamente fez suas trouxas. Atirou-se no mundo apenas com a roupa do corpo e seu talento, deixando para traz a vida fétida que tivera até então.

Ciente das dificuldades financeiras, pelas quais passaria, mas também consciente de que, para melhorar tinha que tomar essa atitude, parou com a bebida. Ato contínuo, procurou uma pequena companhia de teatro da própria cidade na qual, graças ao seu grande carisma, sua simpatia, seu enorme e já evidente talento, foi aceito, e à qual se integrou com facilidade.

Passou a estudar, a praticar detalhadamente os meandros da carreira de ator com vontade e prazer enormes.

Vários colegas mais experientes, mestres no ofício, davam-lhe aulas práticas, orientavam-no. Um dia, sentindo que já dominava grande parte da arte de representar, más, que ainda lhe faltavam técnicas para aperfeiçoar sua arte, seu talento, ingressou numa escola especializada em artes cênicas.

Assim, revelou-se um prodígio dos palcos. Aos 28 anos já ostentava um invejável currículo como ator, protagonizando grandes montagens, não só na sua cidade como em outras da França.

Certa vez, ao passear por Momartre, conheceu Mirelle, linda e já formosa atriz pouco mais velha que ele. Apaixonaram-se perdidamente passando a morar juntos. Formaram um belo, talentoso e promissor casal.

Por alguns anos, essa parceria foi fecunda. Não tinham filhos e se amavam loucamente. Se completavam, se bastavam. Atuavam juntos fazendo grande sucesso, invariavelmente aplaudidos de pé por onde passavam, deixando na memória de quem os assistia, a marca mágica, imorredoura dos grandes artistas.

Viviam muito bem, confortavelmente, tanto no campo afetivo quanto no material, além de gozarem de grande prestígio nos meios artísticos e culturais.

Residiam em casa própria já sonhando em montar a própria companhia. Tudo levava a crer que François havia se recuperado, até um dia quando, sem mais nem menos começou a beber novamente no afã de ludibriar suas neuroses a deprimi-lo, fazendo-o sofrer muito. As velhas lembranças não o haviam abandonado, ficaram apenas hibernadas, mascaradas pelo sucesso e luzes das ribaltas.

Aos poucos, seu mundo emocional, que não deixava transparecer no palco, tornava-se conturbado, sombrio... Sair do castelo não mudara as coisas por muito tempo, afinal, levou-se consigo! E em sua mente conturbada, lembranças, as mais desprezíveis.

Vinham-lhe pesadelos horríveis. Mirelle tentava apaziguá-lo fazendo-lhe carícias, dizendo palavras doces, com voz meiga, terna...

François tornava-se, a cada dia, mais deprimido, mais ansioso, mais agressivo. Passou a beber demais até perder a compostura. Agredia Mirelle, física e moralmente. Depois, quando caia em si, ao tomar conhecimento do que fizera, arrependia-se amargamente. Porém, como controlar o incontrolável? Não conseguia, e agredir sua amada era, para ele, inaceitável!

Entrava em constantes conflitos após agredi-la, procurando aliviá-los bebendo cada vez mais. Mas, essa fase não durou muito.

Um dia, como se houvesse um milagre sido operado por Alguém, François calmamente propôs a Mirelle realizarem o antigo sonho do casal; montarem sua própria companhia. E que a peça de estréia fosse Romeu e Julieta de William Shakespeare.

Mirelle se espantou com a proposta, porém, aceitou imediatamente porque acreditava estar aí a redenção de François. E esse já era um antigo sonho deles.

Assim, valendo-se dos recursos financeiros guardados, imediatamente atenderam às formalidades, alugaram um espaço para se apresentarem. Convidaram atores e atrizes, os melhores, os mais competentes pagando-lhes bons cachês.

Ensaiaram dias e noites exaustivamente, com todos os componentes para que a estréia fosse um verdadeiro sucesso, condizente com o nome e a fama que já haviam conquistado. E não foi diferente!

Chegou o grande dia.

Casa lotada. Platéia requintada, exigente.

Cenários maravilhosos, os mais caros e sofisticados para a época.

Enfim, o silêncio reinou. Abriram-se as rubras cortinas.

A encenação começou:

“Uma praça: Verona.”

SANSÃO – Por minha palavra, Gregório; não devemos levar desaforo para casa.

GREGÓRIO – É certo; para não ficarmos desaforados...

E a peça seguia, ato após ato com aplausos à granel.

Chega a vez de François entrar em cena. Ele é Romeu.

“Como assim! Já é dia?”

BENVÓLIO – São nove horas.

ROMEU – A dor é um tardo guia. Não foi meu pai que se afastou com pressa?

BENVÓLIO – Perfeitamente; mas que dor as horas retarda de Romeu?

ROMEU – Não ter aquilo que, se o tivesse, as deixaria curtas...

E a peça seguia: Julieta é citada pela Senhora Capuleto:

“Ama, onde está Julieta? Vai chamá-la.”

Nesse momento entra Mirelle (Julieta), que diz:

“Que é que houve? Quem me chama?”

As falas seguem. A trama encaminha-se para o auge onde o drama começa a se formar.

Julieta, orientada por Frei Lourenço, entra na tumba e toma o líquido que a faria parecer morta por 24 horas, tempo que Romeu, que seria também instruído por Frei Lourenço, aguardaria para retirá-la de lá e conduzi-la para Mantua, onde se casariam.

Foi quando tudo deu errado. O destino lhes passou uma rasteira.

Desencontros fatais fizeram com que Romeu soubesse da morte de sua amada, antes de saber da trama, que Frei Lourenço não chegou a contar-lhe.

Chegando à tumba, Romeu encontra Julieta deitada sobre a lousa, pálida, fria... E exclama: – Meu Deus, minha amada está morta!

Num gesto desesperado, de quem perde o grande amor da sua vida, resolve acabar com a sua.

Antes, entra em luta corporal com Paris, que também lá se encontrava, com quem Julieta estaria sendo obrigada, por sua família, a se casar, matando-o com uma punhalada.

Em seguida, toma o veneno que traz num frasco. E morre segurando a arma branca em sua mão.

Em seguida, Frei Lourenço entra na tumba. Ao ver Julieta já acordada, desesperada frente àquela terrível cena, tenta dissuadi-la da idéia de matar-se para juntar-se a Romeu (François). Não consegue. Ela, num gesto desesperado, rápido, toma o punhal, que se encontrava nas mãos de Romeu, cravando-o em seu corpo que cai mortalmente ferido sobre o corpo inerte do seu amado.

A peça segue. Mirelle e François, além do ator que fez Paris, permanecem imóveis, um sobre o outro.

O espetáculo chega ao seu quinto e último ato sob calorosos aplausos. Tudo fora perfeito, aliás, perfeito e real até demais!

O fato fora consumado. Romeu e Julieta morreram tragicamente por obra fatídica de um cruel, desencontrado destino.

A enorme e rubra cortina se fecha.

Os atores colocam-se à frente do palco, por detrás dela, para ao se abrir novamente fazerem seus agradecimentos e receberem os calorosos aplausos, que já vinham da plateia frenética e de pé.

Mirelle, e o ator que fez Paris se levantam.

François fizera da ficção realidade.

A cortina não mais se abriu.

Naquela noite, a plateia não recebeu o habitual agradecimento dos atores...

ator: Pedro Paulo Salomão - pseudônimo - Pedro Lecuona Brasil

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PEDRO LECUONA
Enviado por PEDRO LECUONA em 27/01/2016
Código do texto: T5524665
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