Fins de outono
É interessante como muitos marcam duas vidas, ou fatos acontecidos nela, tomando como referência as estações do ano.
Fins de outono, dias claros, temperatura amena. Das janelas, tanto da sala como a do seu quarto, apartamento simples, sem luxos, mas bastante confortável, via-se um verde parque. Era assim durante todo o ano. A baixa latitude do lugar permitia este requinte.
Clarinetista da sinfônica, aguardava a hora de almoçar leve e seguir para o trabalho. Ensaio comum, nada de responsabilidade maior. Como de hábito, bebia sua dose de uísque, uma só, mas sem falta ou excesso. O CD tocava Miles Davis com Bill Evans. União não muito comum, quando o contrabaixista é Ron Carter, com sua elegância, altura e classe. A música era Summertime, de George Gershwin. Não, os músicos não escutam só os clássicos famosos. Ficariam limitados.
Já havia visto suas mensagens no computador. Afora a confirmação do ensaio, nada mais.
Ela não escrevera, como acontecia há dois anos. Nada! Fora-se em definitivo, talvez. Talvez? Com muita certeza, era bem mais provável. Tortura! Pensou em beber mais um pouco, mas o senso de responsabilidade falou mais forte. Tinha que tocar sua vida, era um virtuose, não demoraria a ser o primeiro-clarinetista, que na escala dos músicos só é suplantada, teoricamente, pelo primeiro-violino e o maestro.
A bebida descia bem, e o almoço, mandado por restaurante próximo, era bastante saudável. Um prato grande de grão-de-bico frio, com uma salada que só não tinha capim.
Banho tomado, boa alimentação, passos largos, chegou ao Municipal. Tinha um coração forte. No meio da plateia que costuma ouvir os ensaios, num vestido branco qual fosse uma noiva, ela estava lá. Sorria.
Com o coração aos saltos, ele subiu para o ensaio e durante todo o tempo tocou para ela. A orquestra estava maravilhada. Não, ele nunca havia tocado assim. Terminado o ensaio, foi cumprimentado pelos colegas e pelo exigente maestro.
Desceu rápido para a plateia. Ela não estava mais lá.