Sanica do Fôia
Sanica do Fôia veio ao mundo porque os pais queriam. Foi combinado, foi planejado, era por amor. Mas demorou pra se decidir a sair do escondidinho. Ficou sete dias enrolando, dando trabalho e dores à mãe, nasceu pós-matura e foi mostrada como uma alienígena pelo obstetra, também professor, a alunos de uma escola e a enfermeiros do hospital por causa da pele sequinha.
- Olha, como nasceu velhinha!!!!
Já era um sucesso com aquela idade.
Seu pai a salvou de morrer engasgada, de madrugada, na primeira noite que passou em casa. Enfiou-lhe a mão pela goela e arrancou um resto de placenta que interrompia a respiração. Quando cresceu um pouquinho, gordinha, além dos quilinhos, ganhou três patinhos. Os patinhos eram lindos, amarelinhos, uma graça. Mas foram crescendo, crescendo, ficando feios, porque, me desculpem, patinhos são bonitos enquanto pequenininhos. Depois de um tempo, ficou só um. Os gatos da vizinhança ou até a cachorrinha Morena podem ter dado cabo dos outros dois coitadinhos. Mas ficou o último, que cresceu até uma idade juvenil, de acordo com os parâmetros etários dos patos.
Um dia, o tio Doidão viu o pato gordo e deitou olho em cima dele. Posso levar pra mim? O pai, inconsciente e malvado, permitiu. Sanica não sabia. No dia da captura, Sanica estava no segundo andar da casa, mas não lhe escapou o alarido do pato sendo sequestrado às escondidas dela pelo tio Doidão. Não alcançava a janela, mas sabia o que estava acontecendo. E gritou, do fundo da alma, tentando salvar o patinho ou patão:
- Meu patinho, meu patão... Meu patinho, meu patão...
E as lágrimas desciam em catadupas pelo rosto, uma represa de sentimento transbordava.
A história de Sanica não acaba aqui. Sumiram também seus periquitinhos, dizem que foram roubados, dizem que os gatos dos vizinhos os comeram, dizem - sempre sobrava pra ela - que a cachorra Morena é que os tinha almoçado. Suas dores infantis parece que ficaram por aí.
Quando já andava, de manhã, saíam pela cidade, ali pertinho, pra visitar o tio Niniu. Havia um poste no meio do passeio, no meio do passeio estreito havia um poste, e pai e filha, de mãos dadas, não podiam continuar o passeio sem soltar as mãos. Sanica perguntava:
- E agola?
E soltavam as mãos para ajuntá-las de novo, depois de transposta a pedra, quer dizer, o obstáculo, o poste.
Na hora da soneca, subiam pro segundo andar, ainda em obras, e ele caminhava com ela no colo, pra trás e pra frente, cantando as cantigas de ninar que aprendeu com a Vó Lurica. Sanica escondia a cara debaixo do sovaco do pai, assim ela dormia depressa.
No começo, de noite é que era problema. As cólicas se perpetuavam pela madrugada, o pai, míope, pra não acordar a mãe, recém-operada da vesícula, passava funchicórea na chupeta, na cama e na cara dela, consequências da ansiedade em vê-la dormir, um ensaio e erro às cegas. De manhã, sob o esplendor do sol que invadia as vidraças, é que se via o desastre: funchicórea pra todo lado, a carinha dela toda melada do remédio.
As manhãs eram eternas, demoravam a passar. Na casa do tio Niniu havia um priminho, o priminho era o Verde, ela era o Rosa, e os Power Rangers passavam a dominar as imaginações.
De tarde, o pai saía para trabalhar, mas o coração ficava com Sanica. De noite, quando voltava, Sanica já dormia. O pai a beijava e dizia: dorme com Deus, sonha comigo. E ela, obediente, dormia e sonhava.