Jingle Galo
Como a idade vai tornando as nossas lembranças uma fonte inesgotável de alegria e saudade! Até hoje sinto saudade do sítio da minha família no interior de Minas Gerais e do dia do meu casamento com o escrivão Meneses. Aquele homem era o sonho que qualquer mãe queria a sua filha, mas não queria a si.
Todavia, tenho que reconsiderar, pois com ele conheci um jovem vindo do interior ali pelo ano de 1862. Lembro-me que a última vez que o vi foi quando morávamos na Rua do Senado. Hum... Bom natal aquele. Ele tinha comparecido à cidade grande para assistir à Missa do Galo. Eu não entendo até hoje, pois em qualquer região o padre ou o bispo inicia com um “In Nómine di Patris Et Filii Et Spiritus Sancti” e termina com um “Missio in Pax”, só entendemos quando eles fazem o sermão ou o “Corpus Christi”... Mas aquele adorável moço veio. Não usei “simpático” pelo fato de poder ser uma pessoa nem bonita e nem feia, e ele era belo. Lembro-me daquela noite na capital da última monarquia da América.
Meu marido foi mais uma vez pro “teatro”. Inocente. Só me lembro das escravas dando risada, olhei severamente advertindo-as. Ele combinou com o vizinho de, após um determinado tempo, iria chamá-lo para ir à missa. E o vizinho foi embora dormir, depositando confiança no moço.
Lembro-me que às 10:00 fui pro quarto como era de praxe na nossa casa. Mas não consegui dormir pensando no rapaz. Será que ele iria dormir e perder a hora? Será que ele iria aguentar?
Escutei o relógio da sala bater 11:00 horas. Coloquei as pantufas e andei por aquele corredor escuro, mas, pra quem já era acostumado com a escuridão daquela casa, era como se fosse dia.
De início, ele se assustou, porém, quando notou a minha presença, voltou ao estado natural. Notei uma coisinha. Ele estava lendo naquela escuridão.
Sentei-me à mesa da sala na qual ele lia. E comecei:
-Por favor, não me diga que se dispôs a ler os mosqueteiros de Dumas?
-Sim, senhora. É espetacular. Na realidade são quatro, pois D’Artagnan também é um deles...
E assim começou uma boa conversa, como dizia minha mãezinha, um bom “causo”. Iniciamos com uma boa conversa sobre romances. Ele me surpreendia a cada livro que me contava que lia. Pois nunca vi um homem com tal gosto de leitura. Comecei a suspeitar dele.
-Mas, senhora, por ventura não está com sono? Desculpe-me por te acordar.
-Não! Qual! Acordei por acordar!
Não gostaria de terminar essa conversa agora. Senti vontade de descobrir qual a verdadeira postura dele diante das mulheres. Uma vez que meu marido vai ao ‘teatro’ sempre, uma única vez por vingança a todas as noites que venho a passar chorando, não faz mal.
-Mas a hora já está próxima- disse ele.
-Olhei no relógio, onze e meia, ainda.
Ficamos quietos por uma pequena pausa de meio minuto.
-Estou ficando velha, por isso que meu sono esta leve, tão leve tal qual minha mãe.
-Que velha o quê, D. Conceição?
Senti-me envaidecida diante de tal afirmação.
Olhei-o.
Ergui-me feito um felino. Fui até o outro lado da sala. Retornei em direção a ele, de forma lenta e sensual, pois precisava pôr em prática meu plano para descobrir-lhe o segredo mais infame.
Depois de chegar perto, senti um certo incômodo vindo dele, pois ele começou a falar da missa:
-A missa da corte não é a mesma da roça, pois todas são iguais: Latim e vigário virado pra parede.
-Acredito, mas aqui provavelmente é mais luxuoso e tem mais gente. A Semana Santa aqui é mais bela ainda do que na roça; São João Batista e Santo Antonio nem di...
-Oh, tais festas na roça são alegres, acontecem grandes festas lá. Nessas três grandes festas de junho eu duvido...
Nossa Senhora da Imaculada Conceição, como ele fala. Por ventura, não se cansa dessas festas? Mas eu tinha que atacar, farei como aquele cara velhinho que está hospedado no aristocrata ao lado do cortiço, darei minha investida agora. Deixei minha manga da camisola cair até metade do braço. Senti-o ficar ouriçado ao ver isso. Mas não o bastante para eu falar que ele gostaria de ir pra cama comigo.
-Mais baixo. Mamãe poderá acordar.
Cansei-me daquela cadeira, não dá pra descobrir nada comigo aqui e ele no divã. Levantei e fui sentar-me ao lado dele. Recostei minha cabeça nos ombros dele. E o livro? Ele já não lia... Mas eu disse a ele:
-Mamãe está longe, e, se acordasse agora, não volveria a dormir tão cedo. Doce de mulher. Ficou assim depois que um grileiro roubou nossas terras lá em Minas. Às vezes também sou como mamãe.
-Quê?
-Quando acordo não volto a dormir.
- Foi o que lhe sucedeu hoje.
-Não, de jeito maneira.
Parece que ele ficou atônito com minha resposta. Está certo. Não sou boa com mentiras.
Perguntei se ele tinha muitos pesadelos quando criança, e aproveitei para chamar-lhe a atenção para minhas pernas que estavam cruzadas. Ele contou sobre os pesadelos.
Cansei-me. Levantei e fui até a cadeira, sentei-me:
-Já falei pro Chiquinho trocar esses quatros... São inadequados para uma sala de família.
-São belos, trocaria por quê?
-Prefiro um quadro de uma santa, pois é mais adequado a uma sala de família.
-Devo concordar.
-E este papel de parede. Está horrível!
Foi nesse momento que escutamos o vizinho gritando “Missa do galo!!! Missa do galo!!!”
Ele olhou pra mim:
-Vá. Incomodei você e não cumpriu sua promessa (Missa do galo!!!), então vá, não demore mais um segundo.
Foi-se.
Fui até meu quarto, troquei de roupa e caminhei até a paróquia em que eles foram.
Cheguei lá, sentei-me no lugar de costume, na coluna do meio, terceiro bloco de cadeiras, quarta cadeira de trás pra frente. Ele me viu. Coloquei meu dedo indicador entre os lábios, prometendo que nunca contaria seu segredo.
Depois que ele foi embora do Rio de Janeiro, muitas coisas se sucederam, como a morte do meu marido por apoplexia, que, na realidade, foi por veneno que eu mandei as escravas colocarem, e o meu casamento com o escrevente juramentado do meu marido, Lázaro.
Nunca mais o vi, nem mesmo hoje, depois da virada do século, quando completei 62 anos.