O rio comia gente

Olho d'Água cantarolava e flertava com o sol. Um dia virava rio. Por enquanto, estava escondido na touceira, só murmurava, sozinho, banhando sapos e lagartos.

De longe, ouvia o bulício da garotada, todo depois do almoço passando se banhar no rio. Um dia, o trilho da linha do trem os empurrou de lado. Descobriram Olho d'Água, sussurrante, amoitado, querendo atenção. A água fresca entrou na boca, chupada, sorvida, gelada, os dentes cariados reclamaram.

Olho d'Água, quando gosta, gosta.

Olho d'Água gostou dos meninos.

- Voltem todo dia, se refrescar e pentear os cabelos, eu fico quietinho, não faço marola.

Também, que vida: sozinho na beira da linha, só uma aranha reluzente fazia e desfazia a teia, para dar movimento, pontuar o drama. O sol passava, fazia pose, tirava uma selfie, mas nem tchum: saía pro mundo.

A zoeira dos meninos, de repente, se calava, pé na estrada, nadar no areão. Baitão, Cabeludo, Estudioso e Zé Roela. Brinquedo proibido, o rio comia gente. O rio ciumou, soube de Olho d'Água, atraiu-os para o remanso, quase afogou o Baitão, o maior de todos, o chupa-dedos, o galalau.

Era escondido da vó, Dona Viúva, que Baitão, todo dia, ia nadar no areão, acompanhando a cambada. Um dia, fanfarrão, com braço na tipoia, desafiou o rio. Quando afundou duas vezes no remanso, Estudioso ouviu Dona Viúva no velório, dedo em riste, acusadora: a culpa é sua, você, mais velho, tinha que dar exemplo. O pensamento veio, mas sumiu em seguida, de certo mesmo tinha que tirar o Baitão da goela molhada. O rio chamou, queria outro:

- Vem agora, se for homem.

Estudioso pulou, mergulhou, foi socando murro na barriga do outro, levou-o pro raso. Quando viu a areia coçando o pé do Baitão, no meio dos gravetos e folhas e lodo e barro alvoroçados, sossegou. Dever cumprido. Na beira do remanso, deitados depois, as moscas ouviam, decepcionadas, o respirar dos dois. Depois, rindo e chorando, os meninos tossiram barro. O mais novinho, de nariz escorrendo, e Cabeludo, no galho da árvore, congelados. Nem tugir nem mugir. O rio amarrou a cara, ficou sem falar um mês.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 22/01/2016
Código do texto: T5519627
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