Os sofrimentos do jovem Confúcio.

Dias depois daquela nossa conversa, estava Confúcio em cima da velha ponte que o ligava à sua terra natal e àquele amor que o ferira tão profundamente. Olhou para si, para o céu e para o rio, refletiu sobre a vida, lançou os olhos sobre o passado, principalmente sobre seus últimos dias, e viu quão amargos havia sido para si os dias.

Confúcio era um sujeito esquisitão aos olhos da vizinhança do pobre bairro onde se instalara há cerca dois meses. De estatura mediana, aparentava ter bem mais idade do que realmente tinha. 27 anos, média estatura, a pele excessivamente clara, chegando a ficar muito rubra em certas ocasiões; rosto fino e comprido, lábios bastante delgados, seu corpo denunciava uma magreza antinatural. Os olhos pretos e miúdos como duas jabuticabas pareciam mirar algo muito além da visão comum. Possuía uma vasta cabeleira, cobrindo as orelhas e já caindo por sobre os olhos, mas completamente mal tratada. Era visível que há tempo um pente não lhe visitava. Introspectivo, falava muito pouco, e os poucos diálogos ocorriam quando ia a um boteco não muito distante da casa que alugara, e de onde costumava voltar buscando dissimular a embriaguez. Era um sujeito rodeado de mistérios, e isso despertava, como era de esperar, naquele bairro onde todos se conheciam, a curiosidade.

Nas reuniões familiares, nos encontros, nas mesas dos botequins, nas rodas de amigos, enfim, havia sempre alguém comentando acerca da excentricidade daquele indivíduo. Às vezes, julgavam-no portador de algum distúrbio, um coitado, digno de pena e solidariedade, mas em outras partes diziam-se dele coisas pavorosas. Dona Josefina, uma senhora muito conhecida no bairro por sua língua bífida, espalhava notícias das mais tenebrosas:

–Aquele homem, meu fio, eu não sei, mas acho que é um feiticeiro dos mais poderosos. Inclusive, outro dia, meu menino até viu ele carregando um bicho debaixo do braço, sabe lá o que era.

Notícias como essa, logo se avolumavam e, à medida que se propagavam, ganhavam contornos cada vez mais fantásticos.

Outras vezes, ela dizia:

– Cê não viu que depois que ele chegou, a dona morte está dando uma geral pela redondeza? Andou morrendo muita gente...

De fato, dona Zefa, como era chamada, nesse ponto, tinha razão em elaborar tais conjeturas. Ao longo do último mês, havia ocorrido cerca de 5 mortes. Era de se estranhar, verdadeiramente, que nesse último mês não havia uma semana em que um velório não era realizado. Em contrapartida, havia os defensores desse nosso recém-chegado esquisitão. “Eram quase todos já bem velhinhos e era inevitável que não morressem naquela idade”, diziam alguns senhores em sua defesa.

Durante essas ocorrências, Confúcio saía cada vez menos daquela casa, quase não o viam mais pelas ruas e quando o viam encontravam-no em completa introspecção.

Poucos dias antes daquele evento na ponte, Confúcio me falou enroladamente sobre uma viagem que planejada, uma partida para outras terras, pois já era hora de ir embora. Tempos depois, fui em busca de mais informações sobre aquela estranha figura. O que encontrei a respeito da sua história, narro a seguir.

Confúcio viera de uma cidade muito distante, fora filho único e herdara uma irrisória herança dos pais que faleceram juntos num naufrágio quando ele tinha apenas 15 anos. Logo após a perda dos seus progenitores, teve de aprender a viver sozinho, a trabalhar para se manter já que desconhecia também se haviam parentes que pudessem lhe ajudar. Quanto à sobrevivência, não encontrou dificuldades, pois os comerciantes e toda a classe empresarial compadeciam-se de sua atual situação e prontamente o aceitavam como empregado, o que lhe proporcionou uma juventude menos dolorosa, a despeito de ter perdido os pais e desconhecer parentes por aquela região.

Confúcio percorria todas as classes daquela sociedade, e em todas era benquisto, pois com seu carisma e inteligência contagiava e persuadia a todos, não lhe havia rival por aquelas bandas. Com o tempo, tornara-se um sujeito galante, conquistador, desses que sabem aproveitar a juventude sem se apegar a essa ou àquela paixão por mais fervorosa que seja. Deixava mocinhas ingênuas arrasadas quando não voltava ao encontro marcado, ou a família delas esperando para o pedido de namoro, pois, conquanto não possuísse lá grandes riquezas, era um rapaz muito bem polido e trabalhador.

No entanto, essa vida duraria até seus 26 anos, quando chega àquela cidade uma família rica, a família Barbosa como mais tarde viera ser conhecida.

Grande fazendeiro, o senhor Argemiro Barbosa vendera suas terras e gados e fora morar na cidade com a esposa e filha. Sua esposa, dona Carmélia, era um pouco mais velha que ele, mas era uma dessas senhoras para as quais os anos não parecem influenciar na beleza que adquirem por ocasião da juventude. Argemiro e Carmélia eram pais de Isabel, uma bela moça que influirá na vida do nosso rapaz.

Meses após chegar à cidade, o senhor Argemiro já era dono de um grande comércio, e bastante influente na sociedade. Era um homem sisudo, sistemático em todas as suas relações. Em suma, era um senhor bastante conservador e rigoroso para com a esposa e filha. Em suas idas e vindas, esse senhor acaba empregando o nosso protagonista em seu comércio. Confúcio sobressaía aos demais empregados e, até certo ponto, era o favorito do patrão; o homem, por assim, dizer de confiança.

Mas a dedicação desse rapaz havia uma forte razão a qual o leitor já deve estar desconfiado. Isso mesmo.

Desde que a família Barbosa chegara à cidade, Isabel, a filha desse casal, era motivo de calorosas disputas entre os rapazes daquela cidade e região; e ela, por algum meio, já estava ciente disso, mas não demonstrava o mínimo interesse por alguma daquelas almas, quer fosse rica quer fosse pobre.

Isabel era uma bela jovem, herdara a beleza da mãe, tinha não só as formas anatômicas muito bem definidas, alta, bem encorpada, cabelos longos e pretos, pela extremamente lisa e da cor do jambo, seios fartos, olhos grandes e muito vivos, mas uma inteligência muito acima da média e aquele espírito de emancipação feminina muito além do seu tempo. Era ela quem ajudava o velho nos cálculos dos negócios no campo e agora na gerência do comércio.

Essas características, a princípio, deixavam seus pais um tanto quanto aflitos, pois não se permitiam que uma moça trouxesse tais comportamentos, já que moças assim não prestavam a um bom casamento. Moça boa deveria ser obediente ao marido, e mulheres com ideias avançadas dificilmente obedeceria ao marido.

Mas Isabel era uma moça carente de amor, de afeto, algo que o pai sempre lhe havia negado e reprimido. Talvez, por isso, ela tenha vindo a cair nos braços de um mero empregado de seu pai.

Não soube ao certo como e por quais meios Confúcio conseguira conquistar aquele coração bruto, que parecia impenetrável como uma rocha. Mas para esses casos não há métodos, nem palavras que expliquem o processo. Se bem que ele era um exímio conhecedor dos corações femininos, isso era verdade. Namorava Isabel às escondidas e lhe fazia ternas juras de amor como nunca havia feito. Mesmo temendo que o velho pudesse não aceitar aquela relação, estava disposto a lutar por ela até as suas últimas forças. E Isabel se deleitava com esse romance tão arrebatador.

Entretanto, soube que Confúcio fora mais tarde expulso do comércio, e quase a pancadas, pois o velho descobrira o caso, o que para este era um desastre infindo (Não soube como o velho tomara ciência do namoro).

– Ora como é possível que minha filha, a quem criei com tanto esmero, uma educação refinada pudesse se arrastar por aquele sujeitinho pobreta, que nada podia dar a ela? E por cima, um sujeito mulherengo como se falam por aí? É inadmissível, prefiro a morte a ver minha filha com esse canalha.

Dizia ele bafejando ódio. Carmélia, como o era se esperar, em nada o opunha, ainda que em seu íntimo se compadecesse do sentimento da filha.

O jovem Confúcio outrora dado aos amores descompromissados, vê-se completamente mudado e já não consegue se desvencilhar dessa arrebatadora paixão. Pela primeira vez, vê-se possuído por um sentimento até então estranho a ele. Os encontros entre ele e sua amada tornaram-se cada vez mais difíceis. Seu pai que já a privava, passa agora a controlar todos os seus passos, e arranja-lhe, por fim, um casamento com o filho de um fazendeiro seu amigo.

Esse casamento arranjado foi o estopim para que Isabel se rebelasse contra seu pai, dizendo-lhe que não carecia de nenhum fiscal, que o respeitava enquanto pai zeloso, mas que ele havia chegado ao limite, e que ela sabia muito bem com quem se casar ou não, além de outras palavras que deixaram seu pai em estado de maior ferocidade ainda, a ponto de desejar bani-la de casa.

Para surpresa do velho, bem como de Carmélia, ela acrescentou essas palavras:

-Estejam despreocupados quanto à minha relação com Confúcio, não quero e jamais me casarei com um sujeito daquele, não pelo fato de ele não pertencer à nossa classe, como é o interesse o motivo da fúria do senhor meu pai e o de muitos como o senhor, mas porque sei muito bem e conheço a índole daquele rapaz, sei do que ele fez com várias moças aqui dessa cidade.

Sim, Isabel já havia vasculhado toda a vida daquele jovem e descoberto o quanto ele jogava com o sentimento daquelas pobres moças ingênuas que tanto sofriam.

- Não, meu pai, sei muito bem das intenções dele para comigo, está tentando repetir o mesmo que fez com essas pobres moças, jamais deixarei que se aproveitem de mim e joguem com meus sentimentos.

Dias depois, Isabel fizera saber a Confúcio da armadilha que ela havia tramado e como ele caíra feito um pato, e que com ela não ocorreria as jogatinas com as quais ele estava acostumado enganar moças tolas. Disse isso repetindo as mesmas palavras ditas ao pai e acrescentando outras, inclusive relatando a discussão na casa dela.

Agora, caro leitor, pode imaginar como ficou Confúcio ao saber disso? Se não tiver passado por uma situação análoga, creio que não. Talvez só um coração que tenha sofrido tamanho golpe possa mensurar essa dor. Quem sabe algumas daquelas moças com quem ele brincara possa responder. Isso porque o sentimento desse jovem era verdadeiro, era o primeiro sentimento de amor que lhe chegara ao coração. Se Isabel estivesse correta em suas conclusões, ele teria sido afetado como foi?

Desolado, extremamente derrotado, vende tudo que lhe pertence, vai embora sem destino, e se estabelece nessa cidade distante onde vive como um estranho, chamando a atenção de todos e carregando sobre si as mais variadas desconfianças e conclusões tortuosas que podemos imaginar.

Dias depois daquela nossa conversa, estava Confúcio em cima da velha ponte que o ligava à sua terra natal e àquele amor que o ferira tão profundamente. Olhou para si, para o céu e para o rio, refletiu sobre a vida, lançou os olhos sobre o passado, principalmente sobre seus últimos dias, e lançou-se ao infinito.

Daniel Pereira S
Enviado por Daniel Pereira S em 20/01/2016
Reeditado em 22/08/2016
Código do texto: T5517381
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