O lixo
O homem revirava o lixo na esquina. Não se poderia acertar a idade dele. Talvez teria entre 40 e 70 anos.
Vestia trapos bem maiores que o seu número, causando a impressão de ser mais magro do que já era. O rosto era impregnado, encardido, confundido rugas reais com traços de sujeira que pareciam vincos. Com o tempo, o homem desenvolveu um método com o lixo. Analisava o lixo como um médico analisa raios-x. Além disso, ele era auxiliado pelo cão. Um cão que era pele, osso, coração batendo e pulmão respirando. Aos poucos, o cão aprendeu que só poderia comer o que o homem dispensava ou lhe dava. O homem e o cão se tornaram mais companheiros que os outros homens e cães. Eles conheciam a necessidade imediata e a insistência da vida.
O policial se aproximou dos dois.
- Boa tarde, senhor, me desculpe, mas o senhor está sujando a cidade. Isso é ilegal, hein!
O homem virou o rosto e o olhou como se olhasse um poste, depois voltou ao lixo.
- Pelo visto o senhor não me ouviu. Qual é o seu nome?
O homem achou parte de um sanduiche que parecia ter sido descartado há pouco. Colocou-o no bolso de retalhos que lembrava uma jaqueta.
- O senhor não vai me responder? Olha que posso multá-lo por infração à lei municipal de Saúde Pública e por desacato à autoridade, hein!
O policial sorriu forçadamente. Com o tempo, aprendeu a demonstrar uma simpatia artificial. Não que aquele pobre coitado, de cócoras, ali na sua frente, se importaria ou poderia lhe causar problemas na carreira militar, caso ele demonstrasse uma autoridade exagerada, mas o policial sabia que teria que ser gentil com os desprovidos.
O cão, ensimesmado na sua animalidade e apetite, tentava, com as unhas gigantescas, furar um saco plástico azul. Havia algo lá dentro que somente seu faro alcançava.
- O senhor, por acaso é surdo?
O homem então parou. Fixou o olhar no saco que o cão conseguiu romper. Havia algo ali. O cão o acompanhou no gesto. Assentou, balançando o rabo, orgulhoso pela sua empreitada. Eram centenas de gusanos revolvendo-se entre si. Volumosos, cilíndricos, brilhantes tais como os olhos do homem e do cão que os contemplavam.
O homem enfiou a mão nos vermes brancos e os levou a boca. Engoliu-os de uma vez, como se fossem um punhado de pipoca. Pelas extremidades da boca, os vermes caiam como grãos de arroz vivos.
O policial também levou uma mão à boca e a outra ao estômago. Involuntariamente. Ele tinha acabado se empanturrar com três coxinhas de frango com catupiry na padaria. Já sofria de refluxo crônico e a cena foi como se ganhasse um soco na hérnia. A golfada foi imediata.
O cão foi até o vômito e o comeu, talvez, instintivamente, colaborando para a limpeza urbana e evitando que ele o dono ganhassem uma multa.
O policial pegou o bloco e começou a anotar a punição, comentendo ele mesmo infrações à ortografia nos rabiscos nervosos.
- Agora você vai ver, seu desgraçado! Tome aqui umas multas: uma por poluir visualmente o ambiente urbano, outra por poluir de fato o ambiente urbano e outra por desrespeito à autoridade.
Entregou as três infrações ao homem. O cachorro esforçou-se para emitir uma rosnada, que se mostrou apenas uma fraca apresentação dos caninos amarelos.
O homem pegou os três papeis e os cheirou. Um odor de novo, lembrando baunilha. Rasgou alguns pedaços, levou-os à boca e os deixou dissolvendo na língua.
Depois os engoliu. Como hóstias.