Berkeley's mirrors

Tenho um costume de menino que mantenho ainda hoje. A noite, quando deito na cama em decúbito dorsal, cruzo as mãos sobre o peito e deixo o pensamento errante visitar minhas más resoluções. Não é raro que me confronte. Desconfio do mau agouro que traga sobre mim mesmo; mamãe sempre alertava para não dormir feito defunto que a morte vinha visitar.

Das visitas que recebi, vi, repetidamente, durante os períodos mais turbulentos de minha vida, uma figura negra e estática, perfazendo a silhueta de uma pessoa magra e rígida, aos pés da cama me observando. Nunca tive medo. Não por coragem. Nas últimas vezes, pensei na minha falta de objeção e que a não estranheza era meu jeito ignorante de não tocar o além. No entanto, por um motivo que não sei, vinha sentindo uma curiosidade grande sobre esta figura noctívaga.

Quis testar o visitante noturno. Admitindo a hipótese, razoei que sendo o ente imaterial não refletiria no espelho. Para tanto, pus tantos espelhos quanto pude no quarto, assim como me certifiquei de não entrar em fase de sono, tomando uma grande xícara de café minutos antes de deitar-me. Também, ritualístico como possa parecer, mas não com este propósito, acendi duas velas nos lados opostos do quarto, de maneira que pudesse enxergar para além da pouca distância que os olhos desabituados da luz enxergam.

Como de costume, deitei-me com as costas firmes no colchão, a cabeça mais alta no travesseiro e os dedos entrecruzados, unindo as mãos sobre o peito. Entreguei-me ao pensamento beduíno. Não sabendo quanto tempo se passou, aconteceu meu primeiro movimento espasmódico. Cai violentamente no abismo em que todos nós caímos, debatendo-me para a salvação. De súbito, despertei pensando no café ineficaz e vi a luz anêmica das velas dando a tudo um ar ominoso, uma sombra despropositada que decorria da luz fraca e oscilante.

Demorou alguns momentos até recordar-me do propósito a que me lancei, e quando atinei a figura estava lá. Parada, a imagem antropomórfica e escura tinha então um ar mais pérfido. Iluminado pela luz das velas, havia em lugar de seu rosto o infinito inquisidor habitando um corpo esquálido, envolto numa capa de veludo terracota puído. Vibrava vacilante a chama, fazendo dançar as sombras no vulto hirto.

Sentira, como não havia sentido antes, espanto. Em zona de intuição, sentia as partículas das coisas a falar comigo. Imerso, reverberava a matéria e comunicavam-se os móveis, o chão, a parede, o homem e a coisa. Não sentia-se a sensação oceânica de ser, não era pacífico, e também não era aterrador. Era. Inexistindo as barreiras de representação como a conhecia, tive uma única vontade.

A urgência, em primeiro momento vestigial, tomou-me por completo. Lembrei-me da razão que me pusera ali. Neste momento, o quarto como unidade desarraigada parecia girar e afastar-se da existência. Suave e perene o quarto estava em rotação, afastando-se da origem, infinito, ao que olhei no espelho e tive paz de espírito. O que vi? Nada!

Fernando Béca
Enviado por Fernando Béca em 11/01/2016
Reeditado em 12/01/2016
Código do texto: T5507811
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