BOCA DO LIXO
Numa tarde, no horário do lusco-fusco, passeava sem compromisso numa cidadezinha próxima à minha. Dirigia devagar, diante da intensa luminosidade daquele crepúsculo, quando avistei uma silhueta enorme , encostada a uma árvore flamboiã, à frente de uma modesta casa. Então, pensando estar com a mente um pouco confusa, parei o carro, desci e pude admirar de perto a obra. A porta estava aberta. Notei que era uma oficina artesanal.
Sentado num pequeno banco, um homem entalhava uma escultura de madeira. Era franzino, de aparência asseada. Me sorriu docemente, e seus olhos , fixando os meus, transpareciam uma tristeza incontida e desconcertante. Percebendo o que causava o seu olhar, baixou-o, como que pedindo desculpas...Começamos a conversar sobre suas obras, e, talvez , por sentir-se só, abriu seu coração, espontaneamente, falando de sua vida, como se fôssemos amigos...
Chamava-se Josué, e seu apelido era Mané Zé. Era ex- lixeiro, nunca por vocação, somente por falta de perspectivas, embora reconhecesse que ganhava razoavelmente, na época. Num paradoxo à sua profissão, sua casa já fora uma boca de lixo. Tinha mania de catar, antes do caminhão depositar no lixão, coisas que poderiam ser recicladas, mas, na verdade , tinha raiva daquelas coisas que separava, porque pensava terem pertencido a pessoas que viviam uma vida que nunca imaginava poder viver, como ler muitos livros, os quais , alguns ignorantes jogavam fora, e que ele nunca os abria, só lia os títulos, celulares funcionais, porém ultrapassados, peças de computadores, que jamais teve ideia de como funcionavam, até roupas e sapatos, que, certamente, alguns exclusivistas, preferiam jogar fora do que doar, e assim, ele os ia amontoando nos cantos de seu pequeno quintal , e dentro da casa.. Apenas o que suavizava a visão do caos, era a enorme e bela árvore flamboiã à frente , que já existia, quando para lá se mudou.
Não tinha filhos, tivera uma companheira, que ao conhecê-la poderia se dizer que era um projeto considerável de mulher...(mostrou-me a única foto que tinha). Seu nome era Maria e o apelido era Marieca, que lhe foi dado pela vizinhança, porque vivia tirando meleca, publicamente, como num deboche a quem passava. E Marieca vivia mergulhada na apatia diária, por não conseguir arrumar mais a casa, abarrotada de quinquilharias, nem outro Josué...
Quando estava raivosa, falava assim para ele:
Pela manhã, cutucou-a com o cotovelo, como sempre fazia, e a sentiu gelada...Aí sacudiu-a, violentamente, e só então “caiu a ficha”...Marieca estava morta!
Sem saber o que fazer e o que pensar, estando sóbrio, abriu a porta, ajoelhou-se no chão, baixou a cabeça em reverência ao seu Deus esquecido, e chorou profundamente, como há muito não fazia, nem lembrava...talvez, no tempo de quando criancinha …
Levantou-se e começou a enxergar tudo à volta...o seu quintal, o interno de sua casa, e o seu interior...sentiu-se o lixo dentro do lixo...
Desarvorado, saiu a pedir flores na redondeza, aos cultivadores de jardins, resolvido a proporcionar o enterro mais digno que pudesse ofertar a Marieca, floreando-a da cabeça aos pés.
Daí, começou a reciclar toda sua vida vencida. Afastou-se da Cia. Do Lixo, e com a rescisão montou uma oficina de artes no seu quintal, descobrindo seu talento nato, até então sufocado pelo lixo vivo.
Criava esculturas de tocos de árvores, de garrafas pet, de ferro, parafusos e pedacinhos de metal, passando sua casa a ser referência artística, tendo à porta um entalhe de madeira, feito por ele mesmo, “Casa de Artes Manezé”, e como um troféu, encostada ao pé de flamboiã, uma enorme boneca , de uns dois metros, também esculpida na madeira, com as mãos erguidas, segurando cachos vermelhos, rubros de vida, daquela árvore. E aos seus pés, uma plaquinha colorida, pintada à mão, onde se lê...”Minha Maria”.
Numa tarde, no horário do lusco-fusco, passeava sem compromisso numa cidadezinha próxima à minha. Dirigia devagar, diante da intensa luminosidade daquele crepúsculo, quando avistei uma silhueta enorme , encostada a uma árvore flamboiã, à frente de uma modesta casa. Então, pensando estar com a mente um pouco confusa, parei o carro, desci e pude admirar de perto a obra. A porta estava aberta. Notei que era uma oficina artesanal.
Sentado num pequeno banco, um homem entalhava uma escultura de madeira. Era franzino, de aparência asseada. Me sorriu docemente, e seus olhos , fixando os meus, transpareciam uma tristeza incontida e desconcertante. Percebendo o que causava o seu olhar, baixou-o, como que pedindo desculpas...Começamos a conversar sobre suas obras, e, talvez , por sentir-se só, abriu seu coração, espontaneamente, falando de sua vida, como se fôssemos amigos...
Chamava-se Josué, e seu apelido era Mané Zé. Era ex- lixeiro, nunca por vocação, somente por falta de perspectivas, embora reconhecesse que ganhava razoavelmente, na época. Num paradoxo à sua profissão, sua casa já fora uma boca de lixo. Tinha mania de catar, antes do caminhão depositar no lixão, coisas que poderiam ser recicladas, mas, na verdade , tinha raiva daquelas coisas que separava, porque pensava terem pertencido a pessoas que viviam uma vida que nunca imaginava poder viver, como ler muitos livros, os quais , alguns ignorantes jogavam fora, e que ele nunca os abria, só lia os títulos, celulares funcionais, porém ultrapassados, peças de computadores, que jamais teve ideia de como funcionavam, até roupas e sapatos, que, certamente, alguns exclusivistas, preferiam jogar fora do que doar, e assim, ele os ia amontoando nos cantos de seu pequeno quintal , e dentro da casa.. Apenas o que suavizava a visão do caos, era a enorme e bela árvore flamboiã à frente , que já existia, quando para lá se mudou.
Não tinha filhos, tivera uma companheira, que ao conhecê-la poderia se dizer que era um projeto considerável de mulher...(mostrou-me a única foto que tinha). Seu nome era Maria e o apelido era Marieca, que lhe foi dado pela vizinhança, porque vivia tirando meleca, publicamente, como num deboche a quem passava. E Marieca vivia mergulhada na apatia diária, por não conseguir arrumar mais a casa, abarrotada de quinquilharias, nem outro Josué...
Quando estava raivosa, falava assim para ele:
- -Não consigo arrumar mais nada, nem outro Josué que não seja mané...
Pela manhã, cutucou-a com o cotovelo, como sempre fazia, e a sentiu gelada...Aí sacudiu-a, violentamente, e só então “caiu a ficha”...Marieca estava morta!
Sem saber o que fazer e o que pensar, estando sóbrio, abriu a porta, ajoelhou-se no chão, baixou a cabeça em reverência ao seu Deus esquecido, e chorou profundamente, como há muito não fazia, nem lembrava...talvez, no tempo de quando criancinha …
Levantou-se e começou a enxergar tudo à volta...o seu quintal, o interno de sua casa, e o seu interior...sentiu-se o lixo dentro do lixo...
Desarvorado, saiu a pedir flores na redondeza, aos cultivadores de jardins, resolvido a proporcionar o enterro mais digno que pudesse ofertar a Marieca, floreando-a da cabeça aos pés.
Daí, começou a reciclar toda sua vida vencida. Afastou-se da Cia. Do Lixo, e com a rescisão montou uma oficina de artes no seu quintal, descobrindo seu talento nato, até então sufocado pelo lixo vivo.
Criava esculturas de tocos de árvores, de garrafas pet, de ferro, parafusos e pedacinhos de metal, passando sua casa a ser referência artística, tendo à porta um entalhe de madeira, feito por ele mesmo, “Casa de Artes Manezé”, e como um troféu, encostada ao pé de flamboiã, uma enorme boneca , de uns dois metros, também esculpida na madeira, com as mãos erguidas, segurando cachos vermelhos, rubros de vida, daquela árvore. E aos seus pés, uma plaquinha colorida, pintada à mão, onde se lê...”Minha Maria”.