QUEM VAI PEGAR O MORTO?
Virgulino Ferreira da Silva – Capitão Virgulino ou simplesmente Lampião, montara acampamento cerca de quatro léguas de distância do povoado de Olho D’Água do Casado, junto ao açude do Xingó no sertão de Alagoas. Não que tivesse simpatia pelo lugar ou qualquer interesse pelas pessoas de lá. O fato é que um de seus melhores homens, Tião Corrisco, que há anos campeava junto com o capitão sem nunca ter sido molestado seja por bala ou por peixeira, caiu derrotado por uma febre terçã que o matou em três dias.
Apesar da vida violenta e atravessada em meio as pelejas no sertão nordestino, Capitão Virgulino nunca deixou de ser homem religioso e temente a Deus. Sabedor que a família do defunto vivia no vilarejo, fez questão absoluta de levar o corpo para que recebesse as rezas necessárias e um enterro cristão. Mandou chamar Serelepe, garoto ligeiro e esperto que vivia com o bando. Por um punhado de farinha ou um bocado de rapadura Serelepe servia de olheiro, pajem e principalmente mensageiro. Em menos de dois quartos de hora Serelepe estava na praça de Olho D’Água do Casado dando o recado ao Mestre Nicanor, secretário da Câmara dos Vereadores. Alguém tinha que ir apanhar o morto e providenciar o funeral.
Mestre Nicanor, branco como a cera das velas da Virgem Maria, disparou com sua perna coxa e sua bengala rumo a casa do prefeito que a essa hora da manhã lia sossegadamente seu jornal e tomava seu café. Nicanor entrou sala a dentro qual uma tropa de jumentos desembestada. Doutor Henrique, o prefeito, engasgou com o bocado de bolo de fubá que acabara de colocar na boca. Recebeu um tabefe nas costas do desesperado Mestre Nicanor. Voou farelo de bolo por toda a mesa.
- Mas que desgraceira é essa? Indagou o prefeito em meio a um acesso de tosse.
- Doutor Prefeito a coisa está feia - Enquanto falava servia-se de uma rabanada - O Serelepe, aquele piá do bando de Lampião lhe trouxe um recado…
- Lampião?
- O próprio. Está acampado no açude do Xingó.
- Qual foi o recado? Desembucha homem…
- O Tião Corrisco morreu. E alguém tem que ir pegar o morto…
- Quem matou o infeliz?
- Febre… Foi o que Serelepe disse. O Capitão Virgulino trouxe o jagunço até aqui para sepultamento pois sabe que a família do “de cujus” é moradora da cidade. O Capitão avisou ainda que não quer trazer o morto pessoalmente para evitar confronto com alguma “volante”.
- Volante! Que volante? Ele já acabou com todo o destacamento.
- Só que ele não sabe… E é melhor que fique assim o senhor não acha?
- Nesse caso avise a família para ir pegar o morto.
- Aí tem um problema. O Tião Barbosa pai do Tião Corrisco há mais de oito anos foi para o sul atrás de emprego. Rio ou São Paulo não sei dizer e nunca mais deu notícias.
- Sei que tem a mãe e uma tia.
- A mãe é a Dona Hermínia, aquela que teve que amputar a perna quando foi atropelada pelo seu trator na fazenda de cana. A tia, Dona Maricota, está com mais de oitenta anos e sofre de Alzheimer, também não dá.
- E o irmão? Não tinha um irmão? Manda o irmão pegar o morto.
- Ora senhor Henrique! Esqueceu que naquela festa da padroeira o senhor vigário vestiu o menino de “anjinho” e colocou o garoto no alto do andor. Assim que a procissão começou a andar o andor deu um solavanco e lá se foi o “anjinho”. Esborrachou a cabeça no macadame da rua. Nunca mais bateu bem da bola. Vive pulando do telhado acreditando que pode voar. Está sempre engessado. Quando não pula do telhado fica pendurado na jabuticabeira da praça dizendo que é um cacho de bananas.
- Bananas?
- Para o senhor ver ainda não percebeu que banana não dá em jabuticabeira.
- Nesse caso o padre Higino que vá pegar o morto. Não foi ele que quebrou o “anjinho”? Além disso quem entende de encomendar almas é a igreja.
- Como o padre Higino? Ele está atacado da gota e faz mais de vinte dias que reza as missas sentado em uma cadeira de rodas…
- Nesse caso estamos perdidos. Lampião vai acabar vindo trazer o morto e será uma desgraceira.
- Senhor Prefeito tenho uma sugestão…
- Ora diga logo.
- Que tal o farmacêutico?
- O senhor Libório?
- O próprio. O senhor Libório o farmacêutico.
- Você ficou louco. O homem está quase com noventa anos, cego e só anda de bengala…
- Sim … O senhor poderia falar com ele e sugerir que o filho dele, o Ricardinho, vá pegar o morto.
- Ora tem cabimento. O homem não conhece o falecido nem sua família. Por que iria mandar o filho buscar o defunto?
- Tenho certeza que Ricardinho atenderia de bom grado um pedido seu.
- Como assim?
- É que o moço está de olho na Martinha. Sua filha.
- Minha filha?
- Então. Caso o senhor permitisse o namoro em troca do favor do moço ir apanhar o morto…
- Onde já se viu. Minha filha não é mercadoria para servir de troca…
- Nesse caso é melhor avisar o que sobrou do destacamento de polícia. Trancar bem portas e janelas e começar a rezar antes que Lampião chegue com o defunto.
- Pensando bem. Mestre Nicanor, vá correndo chamar o farmacêutico Libório. E não esqueça de trazer o filho Ricardinho.
- Muito bem pensado senhor prefeito.
- Vou ter uma conversa séria com Martinha… Afinal alguém tem que pegar o morto.
Virgulino Ferreira da Silva – Capitão Virgulino ou simplesmente Lampião, montara acampamento cerca de quatro léguas de distância do povoado de Olho D’Água do Casado, junto ao açude do Xingó no sertão de Alagoas. Não que tivesse simpatia pelo lugar ou qualquer interesse pelas pessoas de lá. O fato é que um de seus melhores homens, Tião Corrisco, que há anos campeava junto com o capitão sem nunca ter sido molestado seja por bala ou por peixeira, caiu derrotado por uma febre terçã que o matou em três dias.
Apesar da vida violenta e atravessada em meio as pelejas no sertão nordestino, Capitão Virgulino nunca deixou de ser homem religioso e temente a Deus. Sabedor que a família do defunto vivia no vilarejo, fez questão absoluta de levar o corpo para que recebesse as rezas necessárias e um enterro cristão. Mandou chamar Serelepe, garoto ligeiro e esperto que vivia com o bando. Por um punhado de farinha ou um bocado de rapadura Serelepe servia de olheiro, pajem e principalmente mensageiro. Em menos de dois quartos de hora Serelepe estava na praça de Olho D’Água do Casado dando o recado ao Mestre Nicanor, secretário da Câmara dos Vereadores. Alguém tinha que ir apanhar o morto e providenciar o funeral.
Mestre Nicanor, branco como a cera das velas da Virgem Maria, disparou com sua perna coxa e sua bengala rumo a casa do prefeito que a essa hora da manhã lia sossegadamente seu jornal e tomava seu café. Nicanor entrou sala a dentro qual uma tropa de jumentos desembestada. Doutor Henrique, o prefeito, engasgou com o bocado de bolo de fubá que acabara de colocar na boca. Recebeu um tabefe nas costas do desesperado Mestre Nicanor. Voou farelo de bolo por toda a mesa.
- Mas que desgraceira é essa? Indagou o prefeito em meio a um acesso de tosse.
- Doutor Prefeito a coisa está feia - Enquanto falava servia-se de uma rabanada - O Serelepe, aquele piá do bando de Lampião lhe trouxe um recado…
- Lampião?
- O próprio. Está acampado no açude do Xingó.
- Qual foi o recado? Desembucha homem…
- O Tião Corrisco morreu. E alguém tem que ir pegar o morto…
- Quem matou o infeliz?
- Febre… Foi o que Serelepe disse. O Capitão Virgulino trouxe o jagunço até aqui para sepultamento pois sabe que a família do “de cujus” é moradora da cidade. O Capitão avisou ainda que não quer trazer o morto pessoalmente para evitar confronto com alguma “volante”.
- Volante! Que volante? Ele já acabou com todo o destacamento.
- Só que ele não sabe… E é melhor que fique assim o senhor não acha?
- Nesse caso avise a família para ir pegar o morto.
- Aí tem um problema. O Tião Barbosa pai do Tião Corrisco há mais de oito anos foi para o sul atrás de emprego. Rio ou São Paulo não sei dizer e nunca mais deu notícias.
- Sei que tem a mãe e uma tia.
- A mãe é a Dona Hermínia, aquela que teve que amputar a perna quando foi atropelada pelo seu trator na fazenda de cana. A tia, Dona Maricota, está com mais de oitenta anos e sofre de Alzheimer, também não dá.
- E o irmão? Não tinha um irmão? Manda o irmão pegar o morto.
- Ora senhor Henrique! Esqueceu que naquela festa da padroeira o senhor vigário vestiu o menino de “anjinho” e colocou o garoto no alto do andor. Assim que a procissão começou a andar o andor deu um solavanco e lá se foi o “anjinho”. Esborrachou a cabeça no macadame da rua. Nunca mais bateu bem da bola. Vive pulando do telhado acreditando que pode voar. Está sempre engessado. Quando não pula do telhado fica pendurado na jabuticabeira da praça dizendo que é um cacho de bananas.
- Bananas?
- Para o senhor ver ainda não percebeu que banana não dá em jabuticabeira.
- Nesse caso o padre Higino que vá pegar o morto. Não foi ele que quebrou o “anjinho”? Além disso quem entende de encomendar almas é a igreja.
- Como o padre Higino? Ele está atacado da gota e faz mais de vinte dias que reza as missas sentado em uma cadeira de rodas…
- Nesse caso estamos perdidos. Lampião vai acabar vindo trazer o morto e será uma desgraceira.
- Senhor Prefeito tenho uma sugestão…
- Ora diga logo.
- Que tal o farmacêutico?
- O senhor Libório?
- O próprio. O senhor Libório o farmacêutico.
- Você ficou louco. O homem está quase com noventa anos, cego e só anda de bengala…
- Sim … O senhor poderia falar com ele e sugerir que o filho dele, o Ricardinho, vá pegar o morto.
- Ora tem cabimento. O homem não conhece o falecido nem sua família. Por que iria mandar o filho buscar o defunto?
- Tenho certeza que Ricardinho atenderia de bom grado um pedido seu.
- Como assim?
- É que o moço está de olho na Martinha. Sua filha.
- Minha filha?
- Então. Caso o senhor permitisse o namoro em troca do favor do moço ir apanhar o morto…
- Onde já se viu. Minha filha não é mercadoria para servir de troca…
- Nesse caso é melhor avisar o que sobrou do destacamento de polícia. Trancar bem portas e janelas e começar a rezar antes que Lampião chegue com o defunto.
- Pensando bem. Mestre Nicanor, vá correndo chamar o farmacêutico Libório. E não esqueça de trazer o filho Ricardinho.
- Muito bem pensado senhor prefeito.
- Vou ter uma conversa séria com Martinha… Afinal alguém tem que pegar o morto.