CARTA No 1

Antônio:

Esta aqui será curta, assim espero. Não vou escrever como da última vez – enchendo-a de desnecessidades – e descrever Londres como a palma da minha mão ou como se você estivesse lendo um livro de Virginia Woolf; ah!, mas esse restaurant... impossível não olhar para todas essas mesas aqui fora e sentir na pele o frescor do dia, e não me lembrar de quando nos conhecemos; você se lembra do que eu te disse? “Te conheci num dia em que o ar cheira a cereja”. Aqui nos fomos apresentados e... e... (e não mais descreverei Londres nesta primeira semana de primavera pelo simples fato de que o que faltou na última carta – e os efeitos da última primavera –, você, Antônio, conhece como ao seu umbigo). Bem, voltemos a missiva, sim?

Um chá gelado, chá verde, bolachas. Escrevo uma carta cercada por uma xícara de chá e bolachas. O lápis teima em falhar – e vou continuar escrevendo mesmo a lápis; você sabe que me sinto mais a vontade. O lápis falhando, andorinhas gritando... andorinhas azuis. É a primavera, Antônio. Hum! Orvalho encalacrado em uma violeta! Antônio, você já chegou a acordar de manhãzinha e tocar levemente o orvalho encalacrado em uma violeta? Eu sei que já. Eu sei.

A natureza é tão esplendida, tão instigante. De terras cobertas de neve, de repente, surge a grama nova. As flores brotam em raminhos; três dias depois, estão elas lá, crescidas, florescendo. Papoulas abertas dopando-nos. O tempo primaveril nos dopa, Antônio. Cheiros de todos os jeitos, formas, cores, tons, sobre-tons, a cor da primavera é-se sentida pelo cheiro. Como se eu falasse: que cor tem o cheiro da laranja? das flores de laranjeira? O cheiro das maçãs? Laranja tem um cheiro amarelo – se isso existe, não sei, mas sinto cheiro amarelo exalando dela; então existe, pois para mim o cheiro é-se sentido... filosofia barata –, maças, não por serem vermelhas, têm o perfume vermelho. Experimente. Pegue qualquer flor ou fruto na mão e aspire-os fundo, até que o flavour toque o fundo dos pulmões. Depois me diga qual cheiro e cor o seu objeto sentido tem.

Campo: literatura. Vamos a conversa que nos interessa. Estou tendo bastante contato com a literatura brasileira. Como nunca tive antes, acredita? Às vezes me pergunto se foi necessária a minha saída para que eu me aprofundasse mais e mais em nossa cultura, e descobrisse quão rico é a brasilidade de ser. Estou apegada à fase antiga – ou a que considero “a última fase” – da nossa literatura. Década de 30 e 40. Os que eu considero os últimos inovadores: Rosa, Melo Neto, Meireles, Lispector. Não que eu não adore os que virão depois – e você sabe bem disso, veja Hilst, por exemplo –, mas é que tudo fica tão estagnado, tudo tão... tão... nem sei dizer, prefiro calar-me a falar besteiras. A literatura fica repetitiva, é isso. Hilst é grande – muito grande! –, eu sei – ficará bravo, Antônio, com o que te direi –, mas ela não inovou nada, ela foi é original. Original (e muito). A outros originais também recorro sempre: Caio Fernando, Raduam, Ignácio, Dalton, Fonseca, Lya, Adalgisa, Colasanti – todos originais. E de que vale inovação se não há originalidade? Todos estes homens e mulheres reinam em minha estante, cada um em seu espaço – às vezes apertado –, com seus reinos e feudos, fazendo fronteira uns com os outros. Sobre originalidade, até hoje, todo escritor precisa ser original – coisa que nunca mudará em era nenhuma. Os “antigos” falaram – e falaram sobre tudo! – tudo? –, não nos deixando mais nada. Nós, escritores da década de 90 e início do século XXI, sofremos e vamos sofrer até o fim, meu caro Antônio. Sofremos do mal de esgotamento de temas. Os antigos disseram, os posteriores redisseram – e nós? te pergunto. Teremos um caminho, sim, eu vejo uma luz. O único caminho a se seguir agora é o do reduzir, refazer, o bater na mesma tecla. O caminho que vejo será o da evolução – o “evoluir em nós mesmos” –, e criar um novo estilo – o “Estilo Individual Evoluído”. Mas isso eu entrego a você, Antônio: sou fraca demais para evoluir, ainda mais em minha literatura e em mim mesma.

Por exemplo, ontem. Ontem eu estava à procura de um conto, e este conto também me perseguia – instinto de escritor. Caminhei por várias ruas desconhecidas, vazei num beco, peguei um metrô, andei sem rumo. E nada. O conto não se aproximava mais que dez passos, eu andando e ele atrás, se me voltasse ele retornava junto. Mas ele me cutucava. Vim a Londres para escrever, tentar esvaziar a cabeça, porém descobri que não valeu a pena. Londres é bela, eu sei. Você deve estar-se perguntando: então por que continua aí? Gostei desta cidade, gostei do clima, aqui nós somos mais respeitados. Fico enquanto nada me chama a atenção por aí. Então, o conto. Ele não saiu. Tentei escrevê-lo até agora pouco, só que peguei o papel e estou escrevendo uma carta para um grande amigo. E o conto? Eu poderia começar uma história assim como aquela mulher começou, falando da outra que subiu cansada num bonde – se bem que hoje seria meio retrógrado usar bonde – prefiro ônibus. Não, não prefiro é nada: a história já foi escrita por ela, não dá mais. Entendeu o que eu quis dizer lá em cima? É o esgotamento. Então não posso mais falar da aranha dançarina, de qualquer natal numa barca, das galinhas e dos macacos e das baratas, de um burrinho pedrês, de uma dama da noite, de Lúcia McCartney, de um tal vampiro de Belo Horizonte... isso seria copiar. Sinceramente, eles não nos deixaram mais nenhum outro tema. O conto que me perseguia e que eu procurava – e ainda procuro, aqui, sentada, feroz, escrevendo para você – fazer jamais surgirá. Terei que ficar na espera. E esperar até que ele surja – onde eu, quem sabe, repetirei à minha maneira os mesmos temas deles.

Por estes dias ando tendo sensações tão esquisitas, Antônio. Relacionadas à escrita mesmo. Foi semana passada. Achei-me tão parada com minhas coisas, tão pobre em vocábulos, tão infértil, que decidi “comer” as palavras. Decidi comê-las para ver se elas entrariam em mim, fariam parte de mim. Escrevi mais de cem em papeizinhos – escrevi a lápis – e enrolei-os. Depois mastiguei uma a uma, abrindo os papeizinhos sempre – amor, vida, alma, fugacidade, beleza, rapidamente, olhos, boca, maçã, pêra, pêssego, indubitável, destreza, ira, gente, último, etc., etc. e etc. – para ver qual palavra eu estava absorvendo. Meu amor com a escrita é tão forte que eu gostaria de colocar as palavras sobre minha pele, como tatuagens vegetais, para poder sugá-las, sorvendo-as para dentro, onde as palavras e eu seríamos uma só. Às vezes tenho vontade de sê-las, para saber a identidade de cada uma, o som particular de cada uma, a vida que cada uma tem. A vida que cada uma tem e em que pulso-tom cada uma pula-toca. Eu gostaria de ser o coração das palavras. Mas elas são o meu coração. E não posso mais mudar o que já está escrito.

Você deve achar-me a senhora frustração, não é mesmo?

Antônio, e você?, eu quero que me fale de você. Como anda a sua vida, a sua escrita? – ah!, e seu novo livro ainda não chegou, tem certeza que o colocou no correio? Comprei a edição em inglês do “Espelho”, e não gostei da tradução que fizeram. Você chegou a ler a tradução “Mirror” de seu livro? Simplesmente horrível. Não gostei. E já reclamei. Agora serei a tradutora de “Figueira”. Consegui! Minha primeira grande tradução. Com ajuda de alguns amigos, eu consegui. Entretanto, ainda não o recebi. Estou na espera. Meus trabalhos, como sempre, não vendem. Estou vivendo de traduções baratas e periodicamente escrevo histórias para um jornal da cidade. Escrevo contos bestas, baixa literatura. Só que, se eu não a fizer, morro de fome. Algumas vezes me olho no espelho e falo: será que tenho talento? Eu pergunto a você, Antônio, e quero que seja sincero: eu tenho talento? Por que quase ninguém me lê? Qual é a fórmula, digamos, para que meus livros sejam bons e vendam como os seus? Hein? Eu gostaria de saber. Queria viver apenas de literatura; que a profissão fosse reconhecida como tal. Queria poder comer com o trabalho literatura... Mas José de Alencar, no século XIX, já disse que não conhecia ninguém que vivesse de literatura. Dois séculos se passaram: nada mudou. Alencar, meu querido, nada mudou. Nem mudará...

Fiquei tão feliz em minha pequena última noite de autógrafos. Umas vinte pessoas compareceram, um amigo fez uma recepção que me emocionou. Entrei em êxtase quando dei a minha primeira dedicatória calorosa aqui na Inglaterra, para um inglês. Ou melhor, uma inglesa. Ela me elogiou, disse que eu tinha um estilo diferente, um estilo que ela nunca vira. Eu estranhei: nada do que faço tem destino próprio, escrevo às cegas num quarto sem portas nem janelas, escrevo torto; deixo-me ser comandada por eles e vou. Não são eles que me pedem permissão, eles é que me permitem. Se eles não querem que eu mexa com eles, eu não mexo. Muitas vezes penso que o que eu faço é errado, que eu deveria forçá-los a “trabalhar” para mim, mas, me pergunto, quem trabalha para quem? Nós trabalhamos para eles, Antônio. Eles mandam em nós. Sem eles não somos nada. NADA! Os personagens são os Senhores de um escritor, este escravo eterno de pessoas interioranas, pessoas do de-dentro.

Uma pausa para bicar o chá.

Uma bolacha.

Voltemos.

Ah! E esqueçamos que aí quem reina é o Ogro Violento. Ogro Comedor da Paz. As notícias correm, meu querido. E o nosso amado país está sendo visto como um Monstro Latino sem rédeas. As pessoas aí gritam por mudança, né? Acho que todos estão sem esperanças, esperanças esgotadas, furadas a agulhadas. Clamando e berrando. Rezo todos os dias. É o que nos resta (e escolher bem quem nos governa). Violência visual corporal anual gratuita. Barbárie cinematográfica atuante sem mudança. E viva o povo brasileiro! Povo que caminha diariamente sobre a brasa quente.

Bem, Antônio, acho que me expressei demais. Curta esta não foi. Nenhuma será curta. Despeço-me, enfim. Desejo-te muita coisa boa, sorte – se é que cabe mais alguma em você (risos) –, saúde e amor. Sem amor nós não somos nada, meu amigo. Nada. Fico por aqui. Escreva-me. Sempre.

P.S.: Dito de Alencar, em 1851:

“Não consta que alguém já vivesse, nesta abençoada terra, do produto de obras literárias.”

Assino embaixo.

Beijos...

A. M.

Diogo Torres
Enviado por Diogo Torres em 02/07/2007
Código do texto: T549695