O parto das trigêmeas

Uma filha, um amor maternal, um cofre vazio, um casamento desfeito, um futuro incerto, sem rumo, pouquíssimas alternativas. O diálogo foi curto, ele foi frio, mas, de qualquer forma, foi sincero, não negou o adultério, e pediu a retirada das duas, mãe e filha, de forma fria, irresponsável, sem avaliar as consequências.

Com pouco mais que as roupas do corpo, ela partiu, com a filha a tiracolo, pretendendo voltar à cidade onde nascera, interior, com pouca, ou quase nenhuma frente de trabalho, e sobras de “família”, que pouco, ou nada, poderiam ajuda-la. Os valores que levavam resumiam-se nas pequenas quantias, que conseguia fazendo jantares e preparando festas infantis, para famílias mais abastadas.

A viagem, também, não transcorreu tranquila; os seiscentos quilômetros a serem percorridos causaram náuseas naquela menina de 8 anos, como ocorria em todas viagens que elas faziam. Uma parada, previsível, porém não prevista, se deu naquela cidadezinha, ponto de descanso para passageiros lancharem. A mãe julgou conveniente ficar, por um dia, naquele lugar, até que a menina se recuperasse da indisposição; se instalaram em um pequeno hotel.

A mãe se chamava Dora, como se fosse o feminino de dor, se é que dor tem feminino, saiu em busca de uma farmácia, para atenuar o mal estar da pequena Jéssica. Encontrou um pequeno centro comercial, e decidiu levar bolacha salgada, água mineral, e alguns itens de asseio pessoal, para aquela noite.

De aspecto sereno, e voz pausada, uma sexagenária se aproximou:

-Olá. Está de passagem?

Tudo que não queria, naquele momento era conversar, mas a pergunta foi quase como um carinho para os ouvidos:

-Nem deveria ter parado aqui, apenas uma contingência me prendeu, minha filha não se sentiu bem, e foi o que nos segurou por aqui.

-Ela está melhor? Onde a deixou?

-Eu a deixei no hotel, está assistindo à televisão, está melhor sim, obrigada. A resposta quase que pedia para que o assunto terminasse por ali.

-Posso convidá-las para jantarem comigo? Vivo tão sozinha, que meu convite talvez faça mais bem a mim, que à sua filha.

Não havia como recusar, partindo de uma desconhecida foi um convite estranho, mas o tom era quase que de um pedido, como se tivesse partido de uma necessidade.

Foi inevitável, também, que a senhora Vitória a acompanhasse até o hotel, mesmo sabendo de todos os riscos, de quando se fala com estranhos. Estranha, a Sra, Vitória, era para a mãe, pois a garota a recebeu com um sorriso aberto, como se a conhecesse, mais ainda. Como se a esperasse.

-Oi, meu anjo, como tem passado?

-Bem, obrigada, posso saber seu nome?

-Eu me chamo Vitória, mas sempre sonhei com uma menininha me chamando de Vovó...essa menininha poderia ser você?

A resposta foi pronta e surpreendente:

-Claro Vovó Vi, e o diminutivo de Vitória (Vi), fez a surpresa maior ainda.

PARTE II

Dora, Dna. Vitória e Jéssica caminharam, lado a lado, como se caminha uma família, riam e trocavam impressões, da cidade e de quem por elas passava; a anciã era uma guia simpática e agradável, e empatia se estabeleceu naturalmente.

Todas tiveram parte ativa no jantar: Jéssica determinou o cardápio, Vi descascou o que deveria ser descascado, e Dora, efetivamente cozinhou.

-Vi, o sra. já havia sido abolido, nunca teve um neto? Uma pergunta infantil de uma criança curiosa;

-Já, meu amor, mas entre esta velha chata e Deus, ele ficou com a segunda opção...ele mora no céu.

-Eu e a Dora, estendendo e suprimindo o uso da sra. para a mãe também, temos o papai, mas acabamos sozinhas;

Nanananão, vocês não estão sozinhas, afinal...eu sou alguém, ou não sou? E não quero ouvir esse anjinho falar de coisas tristes hoje. Realmente, a Vi era carregada de alegria, de transparência, e como era cativante.

-Podemos remontar este trio amanhã?

Tenho que provar que velhinhas também sabem cozinhar, e mais que cozinhar, normalmente velhinhas fazem bolo de chocolate, com nozes, como mulheres novas não sabem fazer.

Dora tentou, gentilmente recusar o convite, afinal partiriam no dia seguinte, mas Vi foi tão enfática, e Jéssica mostrou-se tão receptiva, que, imediatamente, um novo encontro, entre as duas mulheres e meia , foi selado, no mesmo instante.

Parte III

Igualmente agradável foi o reencontro, Vitória mostrou às duas visitantes, o jardim que cultivava, época de plantar, e de colher frutos, no pomar de sua casa, e, invariavelmente, fazia uma citação de seu neto, que morava com Deus. Não com saudade, ou com dor escondida, mas com alegria, como se tratasse de um bálsamo para ela, a lembrança do neto era a seiva que a nutria, não com tristeza, mas como razão para viver.

A afinidade brotou entre as três, o motivo da viagem perdeu-se, em tão pouco tempo, um nó górdio foi laçado, e, das três, se montou uma; daí, uma pergunta brotou do nada;

-Dora, eu detesto números, na mesma proporção que adoro netos, tenho uma pequena indústria têxtil, na cidade, honestamente, administrada por um amigo advogado. O fluxo de dinheiro que me cabe, mensalmente, assim como as minhas despesas, eu controlo pessoalmente; perdi filho, nora e neto num acidente, e não tenho mais idade para controlar extratos bancários; você seria minha secretária? E sua filha, seria a outra parte do neto que eu carrego na memória?

A aranha monta teia onde vive, onde colhe seu alimento, uma arma, com que caça; a vida também trama teias, entrelaça pessoas, e, sutilmente, liga almas. Era muito fácil ligar-se à Vitória, que fazia bolos de chocolate com nozes, como ninguém; que era uma empresária; que cultiva gerânios, nas datas certas e cativava pessoas, contando passagens do seu neto, que quase se mantinha presente, onde ela estivesse.

Dora e Jéssica se fizeram vitais para Vitória, que andava, de mãos dadas com a menina, sem abrir mãos do neto, que já se fora, mas não partira.

Fizeram dos extratos bancários a contabilidade necessária entre o convívio de duas mulheres e meia.

O certo é que a náusea da menina, a interrupção da viagem e o cruzamento de três almas que se necessitavam, mutuamente, montaram um novo painel, que, em uníssono, contavam o que da vida elas, em malha, alcançaram.

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 13/12/2015
Reeditado em 13/12/2015
Código do texto: T5478412
Classificação de conteúdo: seguro