904-SEM PASSE NÃO PASSA - politico

3ª. parte da trilogia Histórias da Revolução.

Para bom entendimento, recomenda-se a leitura dos contos

# 902-Voluntários para a Revolução

#903 – A Ameaça de Morte

Os sinos da catedral encheram o ar de maviosos sons, anunciando o meio-dia. Por alguns instantes, a multidão espremida na Plaza de la Revolución pareceu permanecer estática, enquanto a imponência e a maviosidade dos badalos da torre se espalhavam pelo espaço.

Rafael, tendo se afastado do macabro local onde um inocente tinha sido friamente fuzilado, olhou para cima e sentiu um momento mágico. O sol tropical a pino, num céu de azul puríssimo, a imensa mole do edifício da catedral, o esplendor dos dourados que enfeitavam a fachada e a imagem de São Francisco Xavier, no nicho externo — tudo tão bonito, tão emocionante que Rafael Molina , o pequeno comerciante de Laguardia, homem simples, quase chorou de emoção.

Esqueceu por instantes sua preocupação com a ameaça de morte e a presença ameaçadora do gigante negro na multidão. Sentiu sede e pensou logo em tomar outro refresco. Foi abrindo caminho entre a multidão compacta, na direção do único bar que estava aberto na Plaza. Empurrando e sendo empurrado.

Sentiu quando seu paletó, que havia tirado antes do fuzilamento do negro inocente, foi arrancado de seu braço esquerdo. Olhou para o lado, mas a multidão o impediu de ver quem lhe havia roubado o paletó. Enfiou-se pela esquerda, empurrando com vigor a quantos estavam na direção em que desejava ir.

Carai! — O palavrão brotou de sua boca instintivamente.

Não viu mais seu paletó, por mais que empurrasse, olhasse por entre braços e cabeças. Corpos suados faziam uma muralha impedindo qualquer tentativa de recuperar o paletó.

Hijo de la puta! Me levó el dinero e los documentos!

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Entrementes, em frente à prefeitura, os chefes revolucionários haviam saído do palanque e fora organizada uma fila daqueles que desejavam sair da praça.

— Adelante! Com los pases em la mano! Sin pase non pasa! —gritavam os guardas que fiscalizavam a fila.

O passe era um tipo de autorização para transitar na capital. Todos que chegavam do interior recebiam o passe, após apresentarem documentos. Os campesinos que não tinham documentos recebiam o passe vermelho. Quem tivesse documentos recebia o verde.

Ao ouvir os avisos dos guardas revolucionários Rafael procurou seu passe nos bolsos da calça. Freneticamente e inutilmente.

— Foi levado, estava com os documentos no bolso do paletó. — pensou Rafael.

Dirigiu-se às outras saídas da praça. Todas estavam bloqueadas, sem possibilidade de sair. As portas das casas, fechadas, não ofereciam nenhuma oportunidade de evasão.

— Bem, vou procurar Alejandre. Só ele pode me ajudar.

Viu o velho amigo, transformado em revolucionário, ajudando na organização da fila. Chegou perto dele, que, ocupado, não pode lhe dar atenção. Antes que Rafael falasse sobre a perda de seus documentos, do dinheiro e do passe, ordenou-lhe:

— Entre na fila.

Rafael foi lá para o final da fila, onde outro guarda colocava as pessoas em ordem. Esperou com paciência, na imensa cobra de muitas pernas, caminhando lentamente à medida que os as pessoas exibiam os passes. A estreita passagem pela qual saiam os que apresentavam passes, era justamente ao lado do estranho cercado, de onde o tenente arrancara o jovem negro fuzilado há pouco mais de meia hora.

Agora, estava superlotado. Comentou com o homem próximo na fila:

— O curral está cheio de gente.

— Sim, —respondeu o vizinho de fila — são pessoas que não tem os passes, Estão presas ali. E dalí serão enviados para o campo de recuperação.

Rafael ficou apreensivo. Ouvira dizer do tal campo de recuperação, onde os presos eram submetidos a trabalho forçado. Mais preocupado ainda quando, ao chegar próximo da passagem por onde passavam as pessoas, ouviu a voz de um dos guerrilheiros armados:

— Sin pase no pasa!

Pensou em sair da fila, mas contou com a ajuda de Alejandre.

—Adelante! Adelante! — gritava Alejandre com as pessoas na fila, empurrando-as para que se apressassem.

Quando chegou próximo do amigo, Rafael lhe disse:

— Alejandro, perdi meu passe e....

Ignorando o que Rafael lhe dizia, empurrou para a frente, como se não tivesse ouvido a voz do antigo amigo.

Imediatamente se viu defronte ao guarda que examinava os passes.

— El pase! Sin pase no pasa!

Rafael tentou ainda falar com o guarda

— Fui roubado. Estou sem dinheiro, sem documentos e...

Com a voz enérgica, a caratonha cruel e a barba ruiva pingando suor, o guarda tomou Rafael pelo braço e o levou na direção do portão do curral.

— Espere! — gritou Rafael. — Meu passe foi roubado!

Monotonamente, o guarda repetiu:

— Sin Pase no pasa. Entre nel corralito!

Rafael puxou o braço e se livrou da manopla do guarda. Correu na direção da passagem, empurrando os que estavam à sua frente. Consegui passar. Imprimiu força nas pernas, e correu mais alguns metros.

Alejandro, ao ver um homem correndo, fugindo, sacou do revolver e atirou.

Rafael, mortalmente ferido pelas costas, tombou de borco e logo seu sangue tingiu as pedras irregulares do chão da Plaza de la Revolucion.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 30 de junho de 2015

Conto # 904 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/12/2015
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