BREVE

Comecei às 5:20 horas, dia vinte e três de agosto de 1959. Garanto que eu não pretendia sair do aconchego daquele abrigo, para ficar à mercê das mazelas deste mundo ingrato. Mas o mundo não se baseia em sonhos, e sim, em fatos.

É público e notório que eu nasci. Há quem diga que não, que fui resultado da fusão “hecatômbica” de Deus e do diabo. Mas estava escrito no dia 23 de agosto de 1959 que minha mãe iria parir este ser que vos fala.

Coloquei meus olhos na janela logo ao entardecer do segundo dia, sempre fui muito curioso e ávido de novas experiências. Eu vi como as coisas funcionavam do lado de fora do tecido adiposo do ventre materno.

Pela janela pude ver as pessoas grandes fazendo coisas, sempre correndo para algum lugar, parecendo terem medo de não chegar. Nesse tempo, eu já sabia que seria difícil crescer.

Mas meus membros foram crescendo, em proporções desiguais, e a metamorfose foi se completando na fotossíntese dos meus ossos com a luz do Sol. Descobri que eu nasci para viver no lado obscuro das madrugadas.

De fato, quando minhas unhas se tornaram garras, meus dentes pontiagudos manifestaram a fome de carne e a lua era a única estrela que iluminava o meu caminho, tomei a decisão de ser gente.

Nem tanto ao mar, nem tanto a terra, tornar-me uma pessoa era uma tarefa deveras onerosa para meus pais , o custo de manutenção do mecanismo do meu corpo carecia de vastos recursos, indisponíveis naquele tempo. Não havia nenhum plano de assistência, nem os santos aceitavam a reza proposta pela matriarca da família.

Mesmo assim eu cresci e desenvolvi certos dons, que custaram a vida de muitos passarinhos e os rabos de alguns pequenos felinos domésticos, não o fazia pela maldade em si, mas por desconhecer os limites das regras impostas pelos adultos. Adultos... prometi que eu nunca seria um deles.

Dois dentes quebrados, pontos em todos os pontos do corpo, presenteei-me com longas cicatrizes e grandes histórias para contar quando meus netos chegassem, mas esse não chegarão a ouvir repetidamente as mesmas histórias que eu contaria todos os dias para eles.

Não querendo acelerar meu contato com o futuro, chego aos dias em que aprendi a reconhecer a diferença entre a amizade e o amor.

A primeira é aquele sentimento que nunca se acaba, que nos faz sentir abraçados e protegidos, na certeza de que nunca iremos nos esquecer das nossas existências.

A segunda, o mais complexo dos sentimentos, que faz a gente não reconhecermos mais quem somos, e nos torna no mais vulnerável dos animais.

Um sentimento que faz a adolescência parecer um mar de rosas e o universo, o mais completo sistema de felicidade.

É quando temos a impressão que somos capazes de enfrentar o mundo, encarar os mais difíceis desafios e chegar a qualquer lugar, quando estamos ao lado de quem amamos.

Um sentimento difícil de ser sentido, de tão puro, incomoda os que nos cercam, e é quando barreiras se erguem entre nós e todo o resto.

Mesmo assim, calçamos nossos sonhos e seguimos em frente, até que, um dia, descobrimos que realmente eram apenas sonhos.

É quando volta a amizade e casamos com quem está mais próximo, quem nós conhecemos como pensa e como vive, e que será possível conviver e amar, mesmo que seja de outro modo, mas tão suave, tal e qual.

Foi assim, e assim geramos frutos, plantei a semente, que vingou e brotou, como aconteceu comigo no dia 23 de agosto de 1959.

Para descobrir, em 11 de junho de 2011, que todo esse tempo vivido tinha prazo de validade, e estava vencido. E eu, fruto da união hecatômbica de Deus e do diabo, decido que a infância é o melhor momento da vida, e que preciso fazer com que meu coração retroceda no tempo.

Mesmo na cautela do silêncio, tornou-se possível novamente ouvir a minha respiração. Eu estava executando um solo de pensamento, quando novos olhos cruzaram o caminho dos ventos, vindo soprar no fundo da minha alma, como a melhor música guardada na emoção.

Ainda cru, após tanto tempo isolado das nuvens, precisei reaprender a andar, passo-a-passo, tentando seguir a mesma trilha de quem vinha ao meu encontro.

E sim, segurando em suas mãos reaprendi a caminhar, mais, reaprendi a sonhar, a crer que o amor existe para nos tornar novamente jovens, fortes, e apaixonados.

Revivi o prazer de ter a poesia em minha vida e valorizar o simples ato de pisar na areia, de deitar na areia e olhar para as estrelas, de conversar com os astros e deles obter todas as respostas, de poder ceder por quem amo, e romper todos os dogmas que essa sociedade hostil nos impõe.

Amar nunca será pecado, mesmo que seja preciso manter a chave do segredo no cofre do seu coração.

Porém, no começo eu tinha razão, tantos pequenos pássaros abatidos e felinos judiados me fizeram sofrer menos do que a perda.

Por isso, aconselho a todos que se mantenham crianças e acreditem em tudo o que os seus pais lhes ensinaram.

MARIO SERGIO SOUZA ANDRADE
Enviado por MARIO SERGIO SOUZA ANDRADE em 07/12/2015
Reeditado em 19/09/2020
Código do texto: T5473110
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.