Uma mulher de causar "inveja branca"
Casualmente hoje, passando em frente a uma antiga residência no centro da cidade, lembrei-me da Dona Leocádia. Mulher ativa, dedicada, de fibra. Nunca pareceu quedar-se ao desconhecido, e isto me atraía por demais.
Quando a conheci, devia ter uns 70 anos e ainda dirigia a humilde pensão que abrigava viajantes na cidade, fornecendo excelente comida feita por ela.
Foi uma das primeiras mulheres que vi dirigir um carro (na época um Fusca) com desenvoltura e arriscar um passo de dança sem música alguma. Tinha muitas rugas, mas nenhuma delas transparecia tristeza ou velhice. Seu semblante era de paz, uma paz refletida nos lindos cabelos brancos.
Não usava calçados rasos. Tinham sempre saltinhos baixos que a deixavam elegantemente simples. Soube que perdera um filho muito novo e que, desde então, resolveu doar-se, no seu tempo de folga, a um orfanato numa cidade vizinha. Lá granjeou muitos outros filhos. Bondade era o seu verdadeiro nome.
Os viajantes a procuravam para abrigo e também confidências. Muitos casamentos foram arrematados por ela, viúva aos 36 anos e imagem de quem nunca partiria.
Acabou virando mãe de todos sem deixar-se abater pelo cansaço. Para os filhos, o tempo se alargava. Para os amigos também e, para uma criança como eu na época, a mão estendia um doce, sempre um doce muito doce, assim como era Dona Leocádia, que partiu dormindo, segundo minha mãe falava. Certamente partiu em paz, na mesma paz que semeou em vida.
(escrito para o livro PROSA NA VARANDA 3 - Grêmio Literário Patrulhense - lançado em 01/12/2015)