903-AMEAÇA DE MORTE - Politico
2ª. parte da trilogia Histórias da Revolução
Para bom entendimento,
recomenda-se a leitura do conto
# 902-Voluntários para a Revolução
A multidão agitava-se cada vez mais na Plaza, espremendo-se e impossibilitada de sair pelos guardas revolucionários postados em cada rua, viela ou beco que desembocava no imenso logradouro, local predileto para as comemorações religiosas e agora, pelas reuniões políticas, quando El Guión , da sacada da prefeitura, discursava por horas e horas, arengando contra os inimigos da revolução ou anunciando programas políticos drásticos.
O calor era intenso. O sol a pino lançava raios que batiam direto nas cabeças das pessoas. O mormaço e o odor que exalava da multidão piorava a situação. Ninguém permanecia no mesmo lugar, elas andavam de um lado para o outro, como um rebanho aprisionado ou presos num campo largo.
Rafael Medina havia chegado cedo para a missa do padroeiro. Assistira a missa de pé, pois quando conseguiu entrar na catedral, esta já estava abarrotada. Ficara impressionado com a quantidade de gente. Nunca vira coisa igual, pois nas poucas vezes que viera à capital, nunca havia visto tantas pessoas num só lugar.
Ele era um pequeno comerciante em Laguardia, vivia tranqüilo e nunca se preocupara com os problemas do país, que se faziam sentir na capital, como a prostituição, a jogatina, os policiais violentos e corrupção. O interior era calmo, tranquilo, bom de se viver.
Há duas semanas, porém, entrou numa discussão feia, quando um negro enorme, alto e forte, começou a fazer gracejos dirigidos a Dolores, a filha mais velha de Rafael, que o ajudava no atendimento de fregueses no pequeno estabelecimento.
Depois de trocar palavras duras com o homem, expulsou-o sumariamente:
— Você saia do meu estabelecimento agora. Nem precisa pagar as doses de rum que tomou.
O homem avançou para Rafael pretendendo agarrá-lo pela garganta, mas foi impedido pela ação rápida e corajosa da mocinha, que pegando um dos facões à venda, encostou-o no pescoço do agressor.
Surpreso ante a atitude corajosa de Dolores, se afastou do balcão e foi se dirigindo á porta, Ao atravessar o portal, olhou para trás e cuspiu no chão, num gesto de desprezo, dizendo a seguir:
— Te lo mataró de la próxima vez.
Rafael não deu, na ocasião, importância à ameaça do valentão.
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O calor na plaza forçou o comerciante a tirar o paletó, que dobrou no braço esquerdo, apertando-o contra o corpo. Procurou o único bar que estava funcionando na praça. Não havia lugar para assentar-se. Pediu um refresco, pagou , pegou a garrafinha de plástico e virou-se para sair.
Foi quando viu, no meio da multidão, o homem que o ameaçara dias antes no seu estabelecimento. O negro se destacava pela corpulência, altura e por uma berrante camisa vermelha. Os olhares dos dois cruzaram-se e Rafael gelou, enquanto o negro exibia um sorriso enorme na bocarra gigante e fazia sinais inequívocos de que iria cumprir sua ameaça.
Rafael escondeu-se como pode mergulhando na multidão.
Estou perdido, pensou. Ele vai mesmo cumprir a ameaça. Vai me matar!
Apavorado, sentiu-se num beco sem saída. Não havia como sair da praça, e o gigante negro podia assassiná-lo ali mesmo, no meio da multidão, a qualquer momento.
Vou ficar perto do palanque. Lá pelo menos têm guardas, fico por perto, e de certo me protegerão de qualquer agressão. O negrão não vai se atrever.
Caminhou pelo meio da multidão, procurando não se mostrar, até chegar perto do palanque. Qual não foi sua surpresa quando viu, entre os guardas fortemente armados, Alejandro Gusmán, seu antigo companheiro de brincadeiras e de aventuras juvenis.
— Olá, Alejandro! Que bueno encontrarte.
— Olá, Rafael. Como estás, hombre?
— Necessito su ajuda.
— Que se pasa?
Rafael contou ao amigo em rápidas palavras como estava sendo ameaçado.
—Andamos a hablar com el tenente.
Foram os dois até o tenente, que estava defronte a uma cerca de taboas horizontais, parecendo mais um curral, dentro do qual havia diversos homens e uma mulher, evidentemente presos.
Rafael contou ao tenente a ameaça que recebera em sua loja e agora a visão que tivera do mesmo indivíduo, que confirmou a ameaça através de sinais e de um riso cruel.
— Como é este indivíduo – perguntou o tenente.
— Negro, alto, forte. Cabeça raspada. Sem barba.
— Um negro? Perguntou o tenente que, antes mesmo de ouvir a confirmação de Rafael, virou-se para o portão do “curral”, onde entrou e voltou em seguida, arrastando pelo cangote um preto magro, baixo e de carapinha longa.
— Aqui está o homem! – disse o tenente.
— Não, não. Não é este! — Rafael tentou explicar, mas foi interrompido pelo tenente.
— Sim, acabamos de prendê-lo. É um negro arruaceiro, ameaça todo mundo.
— Mas não...
— Guardas! – gritou o tenente.
Três guardas se aproximaram. O tenente encostou o jovem negro na parede, onde já havia marcas de sangue e de balas.
Rafael assistia apavorado o desenrolar da situação que ele, sem querer, provocara. Iam matar um inocente em vez do bandido que o ameaçara.
— Não! — Tentou avançar na direção do negro, mas foi seguro por Alejandro.
— Calate! É um negro, não é? Pois ai tem o seu. Eles são todos iguais, nenhum vale nada.
A um comando do tenente, os três guerrilheiros apontaram os fuzis e imediatamente a ordem foi dada.
— Atirar!
Rafael fechou os olhos, não queria ver aquela matança sem justificativa. Quando se fez silêncio após os tiros, abriu os olhos. Só viu no chão o corpo franzino do jovem negro com as roupas ensopadas de sangue.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 24 de junho de 2015
Conto # 903 da SÉRIE MILISTÓRIAS