MUITO PELO CONTRÁRIO

Você deve conhecer o dito pitoresco: - Não sou contra nem a favor. Muito pelo contrário!

Parece ser, apesar de abobada, uma boa saída para aquelas situações em que temos de evitar tomar partido, seja para evitar constrangimentos ou fugir de uma boa surra.

Desde tenra idade, quando ainda era criancinha esquisita e desengonçada, nunca me interessei por participar de tendências, apostas, torcidas, preferências e semelhantes arapucas sociais, destinadas a gerar turmas, associações, partidos e outras divisões, que podem parecer divertidas, se você entra no clima e se deixa levar, mas que sempre me pareceram esquisitices injustificáveis. Afinal, eu era um pentelho nerd, que aprendeu a ler, demasiadamente cedo, só para afundar nos livros e se aventurar apenas com os olhos, através de páginas romanceadas.

É óbvio que meus pais detestavam esse modo estranho de ser, e tentavam, de todas as maneiras que podiam, empurrar-me para esportes, lutas marciais, festinhas, jogos de rua; mas eu seguia para esses destinos como um condenado segue para a tortura. Aliás, se tivesse de definir tais atividades, esse seria o termo mais adequado: tortura. Além de me sentir sem chão, deslocado, inseguro, parece que exalava algum odor característico, que fazia os brigões de plantão detectarem meu estado de espírito (e o medo conseqüente) e, claro, me importunarem.

Achar um jeito de me fazer abandonar a leitura era o único assunto em que meus pais se punham de acordo, já que de resto viviam às turras, constantemente. Essa foi a primeira e mais significativa berlinda em que me vi metido na vida. Ambos exigiam minha definição, dando mostras sutis ou escabrosas do que aconteceria se optasse por dar razão ao outro. Por esse motivo é que preferi permanecer quase toda a infância entre meus avós, evitando o lar paterno.

Quando chegou o tempo de freqüentar a escola, imaginei que minha liberdade seria bem maior, além de poder expandir o conhecimento. Quanto ao conhecimento, que imaginava qual expresso veloz a arrebatar os candidatos e levá-los a uma jornada, rumo ao futuro, tive a triste confrontação com a pobre realidade, que mais parecia um bonde velho, a guinchar e arrastar a carcaça pelos trilhos enferrujados, mantendo-nos presos a um passado com odor de naftalina. Já no que dizia respeito à liberdade, a coisa não durou muito, porque em bem pouco tempo veio a gloriosa revolução de 1964, que mudou, pra valer, tudo que havia vivido até então.

Quando os militares começaram a gostar de bater em que estivesse disponível, eu vivia a plena adolescência, fazia versos, canções, era rato de biblioteca e fazia qualquer bico que aparecesse na TV Tupi e em alguns teatros. Usava cabelos bem compridos, roupa rasgada, era bem magro e tinha olheiras. Era a figura perfeita do boneco de Judas preferido dos milicos. Além disso, estava, constantemente, nos lugares mais visados, fazendo o que eles mais detestavam (atividade artística), e por causa disso, naturalmente, vivia sendo enjaulado, não sem levar muito safanão antes. O mais curioso é que foi em plena rua, no centro de Sampa, que levei a surra maior, cuja lembrança ainda dói nas juntas. Estava caminhando absorto, indo para a livraria Saraiva, e dei de cara com uma manifestação de estudantes, vindo em minha direção e fechando a passagem. Todo o comércio baixou as portas, imediatamente, e quando me virei para sair dali, quem encontro no lado oposto? Os fardados e seus temíveis cães.

Não havia como sair do entremeio, minha figura e indumentária não ajudavam, daí tive como idéia infeliz gritar: - Viva a ditadura! Acreditei que isso atrairia a simpatia dos agressores.

Apanhei muito dos militares, fui jogado no camburão e levado para o porão usual, onde guardavam os indesejáveis por algum tempo, só que ao chegar ali, apanhei de novo de meus colegas encarcerados, que me viram como um arregão, o que não estava longe da verdade.

Quando cursava a faculdade de música, o professor de educação moral e cívica, coronel da reserva, pediu um trabalho sobre alimentos. Não tive dúvida em formar um grupo e montar um musical, falando da fome, desperdício de alimentos e industrialização nociva. Ao apresentar a obra, fomos aplaudidos de pé, enquanto o carrancudo teacher nos olhava de esgueio, e, para deixá-lo mais irritado, aproveitando o breve momento de glória, gritei:

- Hay gobierno en esta tierra? Si hay, entonces yo soy contra!

As luzes apagaram, um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente e senti um tremendo puxão para trás, como se dois ganchos se fincassem em meus braços. Fui empurrado por um corredor escuro, tomei um chutaço na bunda e acabei jogado em um rabecão. Daquela vez a coisa estava mais feia, e antes de me prenderem, perguntaram se era ARENA ou MDB.

Arrisquei brincar com o “muito pelo contrário”. Eles riram, e eu, claro, chorei de dor.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 06/12/2015
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