Ressurgimento

Eu precisava me intrometer, meter o bedelhão. Esperava o troco ao lado do balcão do bar.

- Eu também. - Falei.

Ela se sobressalta e lança um olhar de surpresa e desagrado, cobrindo o bloquinho de papel com a mão.

- O quê?

- Também quero o mesmo fim de carreira que você. Por isto estou aqui. Estamos aqui, não? Bom, perdão pela intromissão. Eu enxergo bem e, bem, uma moça bonita assim escrevendo tão compenetrada num balcão de bar não passaria batida ao meu olhar enxerido.

- Tudo bem - Sorriu. - Gostei de você. Adoro coisas que começam despretensiosas, na sinceridade.

- Bom - Sorrio também, enfiando as moedas no bolso.

- Fim de carreira é meu carpe diem. Minha vida é embasada na desgraça mental, sou um ser humano desprezível.

Um arrepio subiu pela minha nuca.

Só de pensar na possibilidade de estar prestes a conhecer alguém que não iria tentar me convencer de que a vida é uma maravilha contínua. Que, aliás, muito pelo contrário.

- Vou te falar uma coisa - Recomeça ela - Vou te falar uma coisa bem sincera: a vida é uma bosta. Uma bela de uma bosta. B-O-S-T-A. E sempre vai ser. Eu posso estar bêbada, sozinha e fodida, mas estou com minhas faculdades mentais a pleno vapor, lucidamente cristalinas.

- Eu te entendo.

- Será que entende? Qual é teu nome mesmo? Não importa. Entende?

- Sim.

- Pois bem. É um gato isso aí que você tem tatuado no braço? Eu presto trabalho voluntário num abrigo pra cães. Prefiro-os às pessoas. Eu ando puta. A felicidade anda sintetizada e obrigatória. Vazia. Não conseguir senti-la como ela é exposta me faz sentir fracassada em mais uma coisa na vida. E todo imbecil raso que me relaciono, tentando ajudar despejando um caminhão de frases feitas de imagens de pôr do sol ao fundo, me põe mais pra baixo ainda. Tentam tapar o sol com a peneira: vivem tristes, não exploram o que sentem, não buscam o autoconhecimento e têm sempre um milhão de consolos na manga. Amam uma pessoa por semana. Não entendo como conseguem. Curtem a própria foto no facebook, comemoram as sextas-feiras, sorriem sorrisos ensaiados. Um cu, cara. Um cu do tamanho de um buraco negro!

Suspirei. Ela não fez menção de parar de falar.

Enfiei minha língua em sua boca.

O beijo era angustiado e ela gemia; gemido de tensão se esvaindo.

- Calma - Falei. - Vem comigo?

- Vou. Foda-se.

29/11/2015

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 29/11/2015
Código do texto: T5465042
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