O Arroz Queimado
Eram um simples domingo, medíocre como os programas de TV destinados a velhos de todas as idades. Alguma diversão gratuita distraía os entediados na longa tarde que os encaminhava à segunda-feira, mas sem pressa...
Vizinhas reunidas na frente de uma casa qualquer falavam do novo médico que chegou no posto. Bonito e charmoso descendo de uma caminhonete branca e possante. Não parecia trabalhador e o jaleco branco o anunciava imaculado do suor e da degradação da labuta do peão comum.
Uma delas, a menos contida, declarou a vontade de adoecer para receber atendimento da nova sensação do bairro. O homem bonito poderia curá-la de muitas coisas - afirmou com zombaria. O que as outras responderam com gargalhadas escandalosas que perturbavam o Seu Emanuel que se esforçava pra dormir numa rede velha estendida na varanda da casa.
Pensativa, a mais velha respondeu: "não precisa estar doente, faz um check-up, faz check-up só menina!" Todas riram em consonância e seu Emanuel pisando duro no chão correu pra anunciar que o menino tinha acordado e estava chorando lá dentro.
Acudiram a criança faminta e chorosa duas daquelas mulheres. As que restaram falavam da camisa rasgada e suada do seu Emanuel que sem nenhum pudor ou consideração pela higiene a repetia insistentemente.
Suspeitei que em tal conversa houvesse conotação sexual, mas nada encontrei senão caras sérias estendendo roupas numa tarde de domingo que antecedia uma segunda impiedosa.
Cães se divertiam com ossos lançados por bêbados. Crianças choravam de algum tombo enquanto corriam na rua. A vidraça estilhaçada por uma bola de futebol tumultuou a santa paz dos moradores: pais e mães disputavam entre si a culpa de seus filhos.
A mulher quis levar uns dos seus filhos para o exame médico, afinal havia o menino se assustado com toda aquela confusão. Ela também, quem sabe poderia lhe passar o médico algo que lhe cessasse a sua inquietação.
Mas o menino estava bem. E ela terminou de estender as roupas brancas do frigorífico para o marido trabalhar, pois neste mundo ninguém dá nada de graça.
"Não dá nada de graça". Ficou com isto na cabeça o restante do dia, repetindo na mente como um insistente lembrete sem sentido interrompendo a atenção nos programas de auditório ou na janta pra se fazer pra marmita amanhã.
O arroz queimado suscitou as ofensas do marido pelo seu descaso, lhe havia incomodado as narinas de longe lá na rede. Ela chorou, olhou as roupas brancas e seu desejo tinha uma gosto amargo de arroz queimado.
Lançou o homem os grãos no quintal. A mulher olhou sem reação os cães lamberem famintos o chão, ainda com o barulho da panela tilintando em seus ouvidos - como um despertador as cinco da manhã.
Lembrou-se das gargalhadas mais cedo. Mas não as ouvia mais dentro de si. Sonhos nascem, gargalham e são assassinados. A vida é um texto, que sendo bom ou ruim, se escreve com sangue preferivelmente.