O CAVALO E O MENINO - PARTE II
Uma das coisas que eu mais adorava fazer era levar o menino à escola. Principalmente nas épocas de chuva, quando as colinas verdejantes se estendiam feito tapetes diante dos meus olhos, e nós as cruzávamos bem cedinho, antes dos sol despontar no horizonte, quando o galo da fazenda não tinha ainda cantado. Às vezes, as últimas estrelinhas ainda brilhavam no céu. Era bem mais fresco, e acredito que fosse por esta razão que começávamos a nossa jornada tão cedo; o menino queria poupar-me. Além de evitarmos o calor forte, podíamos percorrer nossa jornada bem devagar, e ainda havia tempo para darmos uma passadinha pelo riacho, onde eu bebia antes de continuar a jornada. Sei que o menino às vezes chegava cedo à escola, antes de seus colegas, pois queria que eu esperasse por ele sob a sombra de uma árvore bem frondosa - uma das mais disputadas pelos outros meninos e seus cavalos. Quem chegasse primeiro, ficava com ela. Geralmente, eu tinha esse privilégio.
Mas às vezes, Corisco acordava cedo e dizia: "Deixe esse cavalo idiota aí, e vá à pé para a escola, pois preciso dele para ir à vila levar os legumes e verduras para vender." Naqueles dias, o menino Pedrinho me olhava com tristeza, suspirando fundo. Acariciava meu flanco e meu focinho. Despedia-se de mim com um abraço apertado. E eu sabia que passaria o dia todo levando chicotadas, cusparadas e pontapés. Mas eu tinha pena de Corisco. Ele era um rapaz extremamente feio, e apesar de bem jovem, faltavam-lhe alguns dentes. Era magro, e a pele e o cabelo ressecados davam a impressão de que ele fosse bem mais velho. Não era um menino bonito como Pedrinho, que tinha todos os dentes muito branquinhos, olhos verdes como as copas das árvores em tempos de chuva, e lindas pintinhas sobre o nariz.
Corisco não tinha sorte com as garotas. Às vezes, ele sorria para algumas delas, que passavam por ele. Elas riam zombeteiramente, e e depois o ignoravam. naqueles momentos, ele pegava seu chicote e me batia.
Mas o pai era bom. Ele não me maltratava, e sempre que via Corisco judiando de mim, o repreendia severamente; mas aquilo apenas aumentava o ódio de corisco por mim. Quando ninguém estava olhando, ele gostava de torturar-me.
Certa vez, eu estava em minha baia mastigando meu capinzinho, quando eu o vi aproximar-se, as mãos escondidas atrás das costas. Olhava para mim com os olhos injetados e um sorriso maldoso. Parou junto à minha baia, e ergueu a mão para meu focinho, fingindo uma carícia. Mas eu tinha meus instintos de cavalo, e relinchei de medo, empinando o corpo, o que só serviu para deixá-lo ainda mais enfurecido. Mais que depressa, ele revelou que por trás das mãos escondidas nas costas, ele tinha um ferro em brasas. E usou-o contra mim, marcando-me em várias partes do meu corpo. A carne queimava e assoviava, enquanto Corisco ria. Eu não conseguia sair, e a dor sentida era uma das maiores que já passei. Finalmente, ele ouviu a voz do pai chamando: "Corisco, o que você está fazendo, moleque?" O pai veio correndo, e tomando das mãos dele o pedaço de ferro em brasa, derrubou-o no chão com um forte tapa no rosto. Corisco saiu correndo, mas não sem antes olhar o pai nos olhos com o mesmo ódio que tinha quando me olhava, soltando uma grossa cusparada no chão.
O pai gritou por Pedrinho, que chorou quando viu minha carne queimada. Os dois desinfetaram minhas feridas e trataram-nas com um unguento para evitar que as moscas pousassem. O pai dizia: "Não sei o que tem na cabeça desse meu filho, criei os dois da mesma forma e ele é tão mau..." lágrimas rolavam dos olhos do pai e dos olhos de Pedrinho. As marcas ficaram para sempre, como manchas onde o meu pelo jamais voltou a crescer.
Eu via Corisco maltratando outros animais da fazenda. Não podia ver um cão sem passar por ele e dar-lhe um chute, mesmo que o pobrezinho estivesse dormindo em algum canto. Tinha uma espingarda de chumbinho que usava para atirar nos passarinhos, e nem o Urutau escapava! Quando conseguia acertar um deles, dançava triunfante, pois o Urutau é um pássaro difícil de se ver, fingindo-se de galho de árvore durante o dia. Se via uma serpente, ele a capturava, e amarrando sua cabeça e cauda a pedaços de madeira, de forma a deixar a cobra bem esticada, ele pegava uma faca afiada e ia cortando-a toda, os olhos brilhando de ódio.
urutau
Também zombava dos meninos pequenos, tomando-lhes a merenda no caminho da escola. Corisco não estudava. Não ia à igreja, não tinha amigos. Os outros meninos se afastavam quando ele chegava, e as mães puxavam seus pequenos, abrigando-os de encontro às saias dos vestidos quando Corisco passava. Fumava um cigarro que ele enrolava em um papel e que tinha um cheiro nauseabundo. Às vezes, ao cavalgar-me, apagava a chama em brasa do cigarro contra minha pele, debaixo da cela, onde machucaria mais.
Pedrinho conversava comigo. Uma vez, ele me contou que a mãe morrera ao cair de um cavalo, que se assustou com uma cobra no caminho. Ela estava indo buscar farinha na venda da vila, e bateu com a cabeça em uma pedra. Corisco era pequeno, um menino de oito anos, e Pedrinho, um bebê de apenas dois anos. Pedrinho disse que Corisco amarrou o cavalo a uma árvore, correu até em casa e pegou um facão, matando o cavalo à sangue frio. Agora eu sabia porque ele tanto odiava cavalos!
Depois daquela surra dada pelo pai, Corisco deixou-me em paz por muitos dias, e Pedrinho, apesar de não poder cavalgar-me devido aos meus ferimentos de queimadura, levava-me com ele para a escola todos os dias, pois temia deixar-me em casa sozinho com o irmão mais velho. Amarrava-me à sombra da árvore frondosa, onde deixava um balde d'água, e de onde podia me ver através da janela da sala de aula. Sob os olhos do menino, eu me sentia protegido.
Quando fiquei curado das feridas, levei Pedrinho a passear, correndo como o vento, e naqueles momentos menino e cavalo tornavam-se um só. Os amigos de Pedrinho zombavam dele: "Como você pode gostar tanto desse cavalo cheio de cicatrizes, faltando pelo em tantos lugares? Ele é feio!" Mas Pedrinho explicava a eles que eu era encantado, e que tinha vindo de uma terra de mágicas e lendas. Os meninos riam. Mas Pedrinho era ótimo contando histórias, e logo os meninos estavam todos sentados à nossa volta, os olhos arregalados, enquanto Pedrinho contava a eles sobre as nossas aventuras por reinos encantados onde salvávamos princesas de perigosos dragões - por isso, as marcas de queimaduras.
Mas aqueles dias verdes estavam contados. Sempre estavam. A seca chegou. As chuvas cessaram, e pouco a pouco, a paisagem foi mudando. O nível dos rios descia todos os dias. As plantações começavam a morrer, e as colheitas se perdiam. O gado passava a ser novamente alimentado com o mandacaru, e minha porção de ração era parca, até que eu também passava a comer capim seco e mandacaru. Animais começavam a morrer, e novamente, suas carcaças iam tornando-se brancas, lixadas pelo vento e pela areia, transformando a paisagem antes verdejante em um cemitério tristonho e aterrador.
(continua...)