Este conto foi originalmente publicado em meu blog Histórias, em capítulos. O primeiro capítulo eu publiquei em 12 de dezembro de 2013, e o último, em 19 de dezembro do mesmo ano. Publico hoje no Recanto das Letras os seis capítulos, na íntegra. A história foi baseada nesta ilustração que achei no Google, de Mariana Medeiros.

Adorei escrevê-la, e espero que vocês apreciem ler esta história!


O CAVALO E O MENINO - PARTE I
 
 
Não me lembro de muitas coisas a meu respeito. Sei que nasci em uma pequena fazenda. Desde que abri os olhos pela primeira vez nesse mundo, percebi que as cores que me cercavam eram apenas variações sobre um mesmo tom cor de terra seca, às vezes, entremeadas por algum verde desanimado, daqueles que tentam sobressair-se em meio à quase monocromática cor da morte. Minha mãe se foi durante o meu parto, e só sobrevivi porque fui criado por uma outra mãe, uma égua branca que acabou morrendo alguns meses depois, junto com sua cria. Também me lembro de ter ficado em pé, assim que nasci, e ao olhar para baixo, deparar com o corpo de minha pobre mãe - uma égua castanha, cujos ossos apontavam sob a pele ressecada; quando procurei pelos olhos dela, já os encontrei baços pelo véu da morte. E tem sido assim desde que eu nasci: à minha volta, a morte e seus olhos baços, seus diferentes tons secos, suas nuances de ossos pontiagudos e brancos no meio da areia do deserto, entre mandacarus e aves de rapina. Acostumei-me ao sol implacável, que dói quando bate no dorso. Acostumei-me ao desapego de ver morrerem os animais da fazenda, um a um, pouco a pouco, uma morte lenta e dolorida de fome e de sede, crivada de moscas vorazes que deixam a carne pontilhada de vermelho.
 
Se houve uma alegria na minha vida, ela aconteceu quando conheci o menino. Eu ainda era um potro magrela, que ficava solto no cercado. Um dia, ele, menino pequeno, franzino e barrigudo, aproximou-se da cerca, e estalando os lábios, chamou minha atenção. Caminhei devagar até ele. Eu já conhecia o outro menino maior, seu irmão, e sabia que quando ele se aproximava com sua vara, gostava de testá-la em meu dorso, arrancando de mim uma dor ardida. Sabia que ele gostava de cuspir uma saliva grossa sobre minha cara. Por isso, quando me aproximei do outro menino, eu o fiz com muita desconfiança. Nossos olhos se prenderam durante um tempo mais ou menos longo. Eu o observava vagarosamente. Mas quando vi que ao invés de uma cusparada e uma chicotada ele mostrava um sorriso, estendendo-me as mãos vazias e magrinhas, aproximei-me e deitei a cabeça em suas perninhas, que estavam penduradas sobre a cerca. Ele me tocou a cabeça, acariciando-me devagar. Ali, ficamos amigos.
 
Assim, crescemos juntos, o menino e eu. Ele fazia de tudo para livrar-me das surras do seu irmão mais velho, que enfurecido pela fome e pela desesperança, encontrara em mim um tipo de válvula de escape. A dor que ele sentia pela sua vida triste, ele descontava em mim. Sempre que o pai pedia-lhe que fosse buscar água no ribeirão lamacento, Corisco, o mais velho, pegava algumas vasilhas e colocava sobre mim, arrastando-me sob o sol escaldante; a ida era sempre mais fácil, mas voltar com os pesados cântaros machucando minha carne, que se abria de encontro aos meus ossos, sangrando, era muito difícil. Ele não compreendia meus relinchos de dor, e brandindo o chicote, fazia com que ele estalasse sobre minhas pernas para que eu andasse mais rápido, causando ainda mais dor. Quando chegávamos à fazenda, Pedrinho, o mais novo - meu amigo - vinha correndo para livrar-me do peso, e depois, limpava-me as feridas com um pedaço de pano umedecido, desinfetando-as com suas lágrimas de dó. 
 
A vida na fazenda era difícil para todos, pessoas e animais. Não sei como sobrevivi; às vezes, eu escutava as pessoas falando sobre alguém chamado Deus, que providenciava tudo, que criava a vida e mandava a morte. Um Deus que gostava de ser adorado e respeitado, sem jamais ser contestado em seus propósitos (que até hoje, não descobri quais são). Um Deus forte, que criou todas as criaturas, humanos e animais, plantas e pedras, sol e chuva. Um Deus que morava lá longe no céu, e que às vezes mandava um milagre para que todos soubessem que Ele ainda estava lá, zelando por suas criaturas, e por causa desses milagres - que aprendi, eram coisas que aconteciam quando ninguém mais acreditava que elas fossem acontecer - Ele ainda tinha muitos seguidores.
 
O primeiro milagre que eu ouvi falar aconteceu na pequena vila  perto da fazenda; Havia uma menina chamada Maria, muito fraca e doente. Magrinha e barriguda como todas as outras criaturas. Um dia, ela morreu. Vi quando o cortejo passou. Dias depois,  seu irmão menor perdeu-se no deserto enquanto brincava. Foram vários dias de procura. Eu mesmo fui montado por Corisco, e vagamos pelo deserto durante três dias e três noites de muito sofrimento para mim, pois ele não me deixou descansar e nem me deu de beber ou comer. Mesmo assim, não conseguimos achar o pequeno.
 
Quando voltamos à vila, eu estava cansado e faminto, além de sentir uma sede que ia além de todas as sedes que eu já sentira na minha curta vida de cavalo, e fiquei aliviado quando vi Pedrinho se aproximando com um balde de água e algumas cenouras murchas que ele guardara para mim escondido do pai. Ele me abraçou o pescoço e alimentou-me, levando-me de volta para a fazenda, onde cuidou de minhas feridas, lavou meu pelo com um pouquinho de água e levou-me para descansar à sombra do curral. Corisco zombava sempre quando via o irmão cuidar de mim; dizia: "Por que você está desperdiçando água com esse cavalo tonto? Desgraceira de moleque!" Mas o pai dizia que eu era o único que podia transportar água, agora que o boi teve que virar carne seca, e que portanto, eu tinha que ser bem cuidado.
 
Cinco dias mais tarde, o menino sumido apontou lá longe, no meio da poeira da cidade, caminhando tranquilamente  em direção às pessoas que se encontravam reunidas na praça. Era de tardinha, e nunca me esqueci da imagem do menino, primeiro pequenininha e desfocada pela poeira, e depois ficando cada vez mais nítida à medida que ele se aproximava de nós. Acho que eu fui o primeiro a vê-lo. Relinchei para chamar a atenção, sendo calado pelo chicote de Corisco. Mas quando o menino chegou mais perto, seus pais o viram e correram em sua direção, abraçando-o e chorando. 
 
As pessoas perguntavam como ele havia achado o caminho de volta, e como era possível que ele não tivesse morrido após tanto tempo perdido naquele deserto escaldante. O menino, tranquilo e sorridente, apenas respondeu: "Maria me trouxe! Maria me deu de beber e de comer!" Todos caíram de joelhos no meio da praça, e naquela noite, houve romaria. 
 
Há muito tempo que não aparecia um padre por aquelas bandas, mas a igrejinha caiada de branco era limpa e consertada por Seu Cândido, um velhinho que morava na casinha dos fundos, um local que chamavam de sacristia. Mas naquela noite, o padre veio, e todos rezaram para agradecer pelo milagre. A igreja branquinha estava toda iluminada pelas velas, e eu, lá da porta, escutava as vozes e os cantos. 
 
Logo depois, o céu tornou-se negro e as nuvens fecharam o azul-marinho como se fossem enormes portais de algodão cinzento, escondendo as estrelas e a lua. Caiu chuva. Muita chuva. Eu nunca tinha visto água caindo do céu. Aprendi logo que Deus existia, e que Ele realmente podia fazer milagres, e que o maior deles, chamava-se chuva. Até eu passei a acreditar! Era muito bom sentir aquela água toda caindo sobre meu corpo dolorido! Era tão refrescante! As pessoas estavam felizes, e dançavam e cantavam, as mãos estendidas para o céu, algumas de joelhos no chão onde pequenas poças começavam a se formar. Até mesmo Corisco estava feliz, e esquecera-se de torturar-me.
 
Em pouco tempo, a paisagem cobriu-se de verde, e as pessoas começaram a plantar e colher. Um raio de esperança chegou até a vila. O pai e os meninos conseguiram comprar comida para eles e ração para mim. O capim era rico e gorduroso, e pela primeira vez, eu não sentia fome ou fraqueza. Foram épocas muito felizes, nas quais o menino e eu cavalgávamos juntos pelas colinas verdejantes sob o sol mais brando, e eu o levava para nadar no riacho, onde eu ficava bebendo à vontade à sombra de árvores frondosas. A paisagem agora era colorida. Havia flores amarelas, vermelhas, brancas. Os tons de verde eram muitos. A água dos rios refletiam o céu azul, e formavam lindos anéis quando a chuva caía. Gosto de lembrar-me daqueles dias de glória... tão felizes e prósperos! 
 
(continua...)


Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 26/11/2015
Reeditado em 26/11/2015
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