Ascanthopédia - Parte 9 – A Campina Sagrada do Bosque
Enki-du olhou ao redor, na esperança de encontrar o ancião, mas não vira nem sinal dele. Mesmo assim, não imaginou que pudesse pertencer a ele tal preciosidade, pois que estava praticamente enterrada na lama, e por sua humilde carroça, julgara não ser ele possuidor de tal riqueza. Sabia, porém, que também não pertencia ao seu castelo, pois que lá havia em abundância ouro e prata, e outros metais maravilhosos desconhecidos em outros mundos, mas nada que ostentasse tal magia e beleza. Ah, se houvesse, haveria ele com certeza de se lembrar.
Pensou em esperar o velho homem, mas concluiu que já o
havia aguardado demais, e não gostaria de ter de voltar para
casa à noite, passando pelo bosque e por Nubelar, nas horas
soturnas da tarde e início da noite. E assim, guardou o achado em sua bolsa, e seguiu o seu caminho, deixando a carroça já em
condições de seguir a sua viagem, caso o ancião retornasse com os seus cavalos.
Enquanto seguia o seu caminho, vieram-lhe pensamentos a
respeito do homem que encontrou próximo ao rio. De onde teria ele
surgido, se jamais havia visto alguém em Limelim, que
não fossem seus criados ou alguém de suas relações. E logo ali, naquele dia estranho, esse estranho peregrino... Enki-du começou a lembrar-se das histórias de assombrações que contavam a respeito do
bosque, e das coisas estranhas que aconteciam por lá, agora aqui. E ficou a pensar se o que acontecera com ele fora real, ou mais um
conto a ser adicionado no rol já tão absurdo de suas desventuras. Ora, desde que deixara o castelo, coisas estranhas tinham acontecido. Mas também ele nunca havia-o deixado, como saber se coisas assim não seriam perfeitamente normais no mundo aqui fora? Perguntou-se a si mesmo, procurando tranquilizar-se. Mas, enfim, não era a hora e nem o lugar de imaginar esse tipo de coisa, a tarde caía, e a luz do dia
começava a esmaecer... Não queria ficar ali imaginando coisas.
E, logo, estaria finalmente chegando à colina, o lugar de seu fado. No final das contas, estava vencendo, ainda que aos trancos e barrancos, os grandes medos da sua infância. O misterioso jardim ficara para trás, e o insólito bosque não era mais segredo para ele.
Agora, tudo ao redor denunciava a sua proximidade com uma
parte atípica da floresta. O terreno subia gradualmente, até
formar uma pequena colina gramada. A luz lá em cima era
diferente, resplandecia mais livremente do que nas densas
árvores mais abaixo. Além de se converter num dourado
pálido, resultado de arboretos de folhas amareladas,
abundantemente espalhadas. Uma escada de pedras brutas, tão velha quanto o tempo, levava até o alto do morro. Talvez, o próprio deus do tempo subira por ela, pé ante pé, arrastando a sua enorme barba branca chão a fora, quando toda a realidade ainda estava sendo formada.
Enki-du sabia que havia chegado. Em nenhum outro lugar
do bosque fora visto lugar tão singular, de atmosfera algo
indizível e morna... Como se houvesse, um dia, saído de algum
sonho e ido pousar ali, por mero capricho. Era tão deslocado,
quanto o sol que aparece no horizonte, numa tarde chuvosa.
Assim, com esses pensamentos, o jovem príncipe transpôs os
primeiros metros em direção ao topo.
À medida que se aproximava, torres começavam a se revelar, prateadas e brancas, reluzindo como se estivessem acesas, e um suntuoso prédio verde, coberto de musgo, erguia-se no centro delas.
Árvores petrificadas sustentavam o teto principal, de onde desciam corredeiras de águas sem fim, que não se sabia de onde vinham, nem para onde iam. No chão, com exceção de pequenas trilhas, o resto todo eram como piscinas rasas, que davam a impressão de se caminhar sobre as águas. Alguns trechos funcionavam como ilhas, onde cresciam árvores altas, de pequeninas folhas que pendiam da copa até o chão, fazendo lembrar cascatas vegetais.
Miríades de borboletas trançavam de um lado para o outro,
frágeis e transparentes, em seus milhares! E doces sons de
inúmeros pássaros, que jamais eram vistos, ecoavam distantes, em sons metálicos e alegres.
Enki-du ficou estático. Seu olhar se perdia nos espaços, o vento
acariciava-lhe os cabelos. O verde e o dourado pareciam
fundir-se numa cor desconhecida, ali, onde o céu e as árvores
davam-se as mãos. O azul refletia-se no chão, e os sons das
águas cochichavam estripulias com o farfalhar das folhas. E lentamente as suas pálpebras pesaram, e um torpor irresistível o
dominou. Sendo assim, deitou-se num pequeno gramado ao pé
de uma macieira, e se entregou ao sono. O que um dia - faria
questão de se lembrar - ter sido o melhor de toda a sua vida!