Longe demais

Num bairro pobre da Belém oitocentista, dentre tantas crianças, viviam dois garotos: Carlos e Eliseu.

Órfãos, cresceram pelas poeirentas ruas e vielas de chão batido, com algumas passagens em abrigos ou reformatórios. Porém, sempre permaneciam amigos, quer fosse o que acontecesse ou o tempo que passassem longe um do outro, numa internação ou outra. Sobreviviam graças a pequenos serviços entremeados com furtos e malandragens várias.

Mas o tempo passou e aquele mundo sofrido visto com a alegria dos olhos infantis foi-se indo, e os dois cresceram nas amarguras e na intensidade das contravenções. E, numa grande bobagem, acabaram presos e condenados à forca.

Por mais passagens pelas mãos da lei que eles tivessem, sempre sabiam que, mais cedo ou mais tarde, ganhariam a liberdade novamente. Mas, a experiência que possuíam lhes dizia que desta vez era diferente: só sairiam dali para o cemitério. Desta forma, a ânsia pela agora impossível liberdade tornara-se uma meta a ser atingida a qualquer custo.

Através da confusa segurança da penitenciária conseguiram pequenas ferramentas e, após algum estudo do terreno, não tardaram a cavar o solo arenoso que sustentava as pesadas pedras do chão da cela. Desta forma, toda noite, avançavam alguns centímetros para baixo da grande estrutura que os encarcerava.

Como a justiça tardasse a executar a pena capital de ambos, ao cabo dos anos foram trabalhando no túnel, sem despertar suspeitas ou a atenção dos guardas e carcereiros. Suas barbas cresciam, seus corpos envelheciam e ainda assim cavavam ao reencontro da lembrança cada vez mais vaga das ruas e seus aromas, suas luzes, seus desejos.

Num dia qualquer, Carlos, à frente, tateou algumas raízes no teto do túnel:

- Eliseu! Sinta isto!

- Raízes… Estamos conseguindo!

Um quase irreconhecível e jovial calor tomou conta do espírito dos dois, sacudindo a poeira do desalento que soterrava suas existências.

Carlos refez a rota do túnel para o alto e, após mais algumas noites de idas e voltas ao trabalho, rompeu a barreira de terra e pôs a cabeça para fora: Que delícia de ar puro e refrescante! E aqueles sons de insetos, grilos… Olhou para o céu que não via mais há anos e pôde se recordar da imensidão de estrelas que ele ostenta. Fechou os olhos e tentou dominar as emoções. Estava eufórico.

Mas, no meio desta torrente de sentimentos, um inesperado e repentino medo cresceu e dominou-o. Sentiu o corpo tremer e enregelar, e adentrou rapidamente o buraco, para surpresa de Eliseu:

- Carlos, que se passa?

- Eu… eu não sei se quero isso.

- Como?

- Estou velho, Eliseu… tenho medo. Me deixe voltar.

- De forma alguma! Viemos até aqui juntos e sairemos daqui juntos!

Após alguns minutos de desentendimento até então inédito entre os tão unidos amigos, sobressaiu-se violenta luta no breu claustrofóbico do túnel. Seus corpos e punhos exaustos e combalidos ainda tinham força para machucarem um ao outro. Carlos, então, alucinado pelo pavor da liberdade, pegou sua gasta e afiada pá e enterrou fundo no pescoço de seu amigo, que recuou ao som de um grunhido desesperado.

Na escuridão do buraco, o silêncio era quebrado apenas pela dolorosa agonia de Eliseu, ferido de morte. Carlos ficou paralisado, ouvindo os últimos momentos do amigo:

- Por quê… por quê, Carlos…? C-chegamos tão longe, por quê isso…?

Mas Carlos não tinha o que dizer. Sequer imaginava o porquê daquilo tudo. Também espantado com a situação, emudeceu até que o colega finalmente estivesse livre de suas dores.

Com a morte de Eliseu, Carlos finalmente chorou. Mas, um sentimento tão estranho quanto o medo que sentira logo estancou suas lágrimas: sobreveio a frieza, tornando-o insensível àquilo tudo. Talvez todos aqueles anos encarcerado o haviam transformado, e ele sequer se deu conta disso; ou o estresse da situação lhe havia gerado um trauma instantâneo.

Refletiu por algum tempo e não encontrou resposta ao turbilhão de questões e perplexidades que o invadiam. Por fim, desistiu de tentar entender-se e iniciou o longo caminho de volta, empurrando o cadáver do outrora amigo de infância à sua frente, pois não havia como ultrapassá-lo em caminho tão estreito.

Após algumas horas, exausto, chegou à cela. Reuniu suas últimas forças para jogar o defunto de lado no chão, e desmaiou ali mesmo, com apenas metade do corpo para fora do túnel.

***

Fora acordado pelos cutucões do cassetete de um dos carcereiros. Lentamente, olhou para cima e viu vários guardas curiosos e estupefatos com a cena. Virou-se para o lado e viu um endurecido Eliseu, lábios arroxeados e olhos arregalados em sua direção, com a expressão de horror ainda estampada em sua face petrificada.

Com um suspiro, parecia-lhe que a razão voltara a si.

Arrependeu-se.

Foi levantado com truculência e apanhou como nunca dantes.

Graças à adição de mais alguns crimes à sua ficha, seu esquecido processo de execução foi dado como prioridade e, após alguns poucos dias, lá estava ele no pátio da cadeia, cercado de eufóricos detentos que assistiam à cena de sua execução.

Pouco antes de ser vendado pelo carrasco viu, do alto do cadafalso, a triste e fantasmagórica expressão de Eliseu, vigiando-o, em meio à multidão anônima.

Sob o saco de tecido preto, sujo e malcheiroso colocado em sua cabeça, sentiu o remorso gritando em sua mente aturdida pelo alarido incessante da multidão sedenta de sangue.

A corda foi posta em seu pescoço, pinicando sua pele.

De repente, o chão desapareceu em um estalo, lançando-o em queda fatal. Pendurado dolorosamente ao sufocante nó que esvaía sua triste sina, a solitária e familiar escuridão do seu véu de morte transportou-o até aquela fatídica noite, e um pensamento foi-lhe martelando, cada vez mais distante e devagar, até desaparecer, em conjunto com sua existência:

- Longe demais...

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 24/11/2015
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