DO SOFRIMENTO AO CÉU
Lembro-me de quando nascemos, éramos muitos, mas apenas dois de nós sobreviveu, meu irmão e eu. Nossos donos diziam que éramos “macho” e “fêmea”. Pensei serem os nossos nomes. Até porque não nos chamavam de mais nada.
Minha mãe estava cada vez mais abatida e magra, e nós só queríamos saber de mamar, dormir e brincar. Era muito gostoso dormir aninhada ao meu maninho e progenitora tão quentinhos.
Um dia veio a nossa casa uma mulher acompanhada de um pequeno garotinho e simplesmente levou meu irmão embora. O coitado chorava e se debatia entre os dedos magros do menino, mas de nada adiantou. Ele se fora...E os nossos donos apenas diziam: “ – Graças a Deus o levaram!”
Como eu sentia falta dele. Pensava em como estaria. Se o tratavam bem, em como dormia, se sentia nossa falta. E mamar? Quem ia lhe dar de mamar?
O tempo foi passando e certo dia parou a nossa porta um gigante com uma boca enorme e bem aberta (depois soube que o nome daquela coisa horrorosa era caminhão), e eu corri a me proteger perto da minha mãezinha.
Bem o fato e que esse negócio ai, tocou a engolir tudo que havia dentro de nossa casa, e por fim até nossos donos entraram nele e se foram.
Quando sairam, tentamos entrar na casa, mas a porta não abria. Por mais quem arranhássemos ou batêssemos, era inútil. Cansadas, deitamos ali mesmo e esperamos. Mas minha mãe dizia chorosa: “ –Eles não vão voltar!”
Agora entendi porque ouvi meu dono dizer: “- Deixem-nas aí mesmo, vira-latas gostam mesmo é da rua!”
Na hora não compreendi, mas agora sim, estava claro que havíamos sido abandonadas, que estávamos sozinhas. E que negócio é esse de vira-lata? Que diabos é isso? Nunca virei lata alguma, e nem minha mãe.
Ai começaram os problemas....o leite da minha mãe já havia secado, e a fome começava a apertar...a doer....Então decidimos que era hora de partir. Ir a busca de alimento e abrigo.
Era muito difícil viver nas ruas. Éramos enxotadas dos restaurantes e apedrejadas das portas das casas para onde íamos atraídas pelo cheiro da comida. Ora!!! Só tínhamos fome! O que custava darem-nos ao menos as sobras??
Mas não!!! Éramos tocadas muitas vezes a vassouradas, isso quando não recebíamos um balde de água fria. Nossa!!! Quando isso acontecia nós corríamos muuuito nos lambendo para secarmos.
Ano após ano foi assim a nossa vida. Nas ruas ganhei mais irmãos e filhos também. Os que não saíram pelo mundo afora e nunca mais vi, foram atropelados, pisoteados ou mortos a pauladas por gente ruim.
Ninguém nos recolheu, ninguém nos enxergava, a não ser para dizerem que éramos coitadinhas. Ficávamos a cada dia mais feias, envelhecíamos pelos maus tratos e nossa vida se abreviava pelas doenças....sim...doenças...tínhamos carrapatos, sarnas e muitas feridas. Nossas costelas apareciam de longe, e já era difícil caminhar. Muitas vezes sem alento, rastejávamos.
Procurávamos forças para revirar os lixos em busca de comida (quando achávamos), bebíamos água do esgoto e dormíamos em qualquer lugar que nos abrigasse da chuva, do sol ou de pessoas ruins.
Uma vez ou outra, quando víamos sobras de boa comida, num prato qualquer, comíamos tudo, aliás engolíamos rápido, com medo de que aparecesse o dono do alimento e nos chutasse dali.
O tempo continuava a passar e com ele nossa juventude. Em todos os anos que se seguiram, mamãe e eu não nos separávamos, sempre juntas a perambular por aí... Nunca encontramos nossos filhos, não sabíamos deles, talvez estivessem por ai como andarilhos, assim como nós, os que não tem nada....se agarrando apenas a um fiapo de respiração, e procurando forças para rastejar mais um pouquinho.
Mas estávamos mais esgotadas que nunca, não conseguíamos nem respirar direito, a fome nos incomodava muito. Tínhamos dores em nossos corpinhos, as feridas estavam abertas e as moscas já se acomodavam tranquilamente, pois não tínhamos mais forças para espantá-las
Avistamos uma praça, e fizemos mais um esforço para chegar até ela. Quem sabe achávamos comida lá. Era um lugar bonito, com árvores, flores...tinha gente passeando, rindo....mas nós éramos invisíveis, nenhuma migalha de pão, nenhum ossinho, nada.
Deitamos embaixo de um banco distante e adormecemos aninhadas uma a outra......Que sono bom!!! Sentimos como se flutuássemos!!!
Fomos acordadas por uma mão macia que gentilmente nos ofertou carinho (aprendi essa palavra nesse dia). E depois de abrirmos os olhos vimos que estávamos num lugar lindo, cheio de belas árvores de tamanhos e formas diferentes, havia flores, muitas delas de todos os tipos tendo por base uma grama verdinha e macia. Mas não era nem de longe a praça que havíamos parado para dormir. Era muito mais lindo o lugar que estávamos.
O animais corriam a vontade, aliás, havia uma variação enorme deles. Mas uma das coisas que mais nos chamou a atenção foram as inúmeras vasilhas de comida e água fresca espalhadas por todo o jardim. E o melhor, constatamos literalmente que elas nunca esvaziavam, quanto mais comíamos e bebíamos, mais elas enchiam. Tinha uma bela cachoeira com água cristalina que corria para um riacho que também era ladeado com belas flores. Se eu estava maravilhada com tudo, mamãe já sentia-se a vontade. Ela rolava na grama, latia e corria...parecia uma criança de novo.
“ –Ué, que lugar é esse?”
O anjo (descobri o que era um também nesse dia), aquele que nos acordou disse-nos que ali era o “CÉU DOS ANIMAIS”, e que agora não precisávamos mais pensar no que sofremos antes, porque tudo já havia passado. Nós estaríamos ali seguras por toda a eternidade.
Percebemos que nossas feridas sumiram, não tínhamos mais sarna, carrapato e as nossa pelagem estava de volta e não éramos mais feias e de ossos á mostra...éramos lindas.....
Demos uma olhada em volta, e imaginem só.... vimos nossos filhos, aqueles que a maldade do mundo não deixou que tivessem uma vida plena na Terra. Vieram ao nosso encontro, e foi aquela festa! Muitas lambidas e latidos de felicidade!
Mamãe apontou-me os outros animais que ali viviam, e independente da espécie ou tamanho, estavam todos em harmonia. E a cada dia o Céu recebia mais e mais animais, e eram sempre recebidos da mesma maneira pelos anjos.....com afagos, carinho e amor.
Se existia dias, não percebemos pois o tempo não é contado no Céu, e já estávamos completamente adaptadas a nova vida. Felizes!!! E quem não se acostuma a viver feliz? Tínhamos comida, água, lazer e fizemos muitos amigos de outras espécies....gatos, elefantes, cavalos,e aves...nossa como no céu tem aves.....
Porém, um belo dia, o anjo que nos acordou quando minha mãe e eu chegamos aqui, nos chamou e disse que precisávamos ver algo muito importante.
Nos encaminhou por uma rua onde o chão era feito de mosaico colorido e ladeada de flores onde seus miolos eram pequenas pedrinhas brilhantes e reluzentes. E lá no final dessa rua havia duas nuvens douradas em forma de janela.
O anjo nos apontou e primeira e disse: “ – Cheguem mais perto e olhem o que tenho a mostrar a vocês.”
Mesmo não entendendo nada, fizemos o que o anjo pediu, mas quando olhei e vi que era a Terra, fiz menção de sair virando as costas, não queria me lembrar dela,mas ele me interpelou: “-Não vá, fique, pois o que tenho a lhes mostrar realmente é importante.” Então apoiei-me com as patas dianteiras na nuvem janela e mamãe fez o mesmo.
O anjo apontou uma casa e pediu que a olhássemos com atenção. E lá vimos um homem com seu cachorro deitado em seu colo. O homem chorava muito, e o cachorro estava inerte. Não se movia, tinha os olhos fechados. Vimos que ele tinha uma pelagem bonita, era forte, de um aspecto saudável. Seu corpo era banhado pelas lágrimas do homem, que parecia realmente desolado. Só não entendíamos porque. Então o anjo percebendo nossas indagações, cuidou em explicar:
“-Vocês lembram de uma mulher que uma dia fora a casa que moravam acompanhada de um garotinho? Aquela que levou um cachorrinho em suas mãos? Pois é, ele é seu filho (apontou para mamãe) e seu irmão (apontou para mim) o menino cresceu, tornou-se homem, e o caõzinho cresceu também. Eram mais que amigos, companheiros de longos anos, de várias aventuras. Mas o cachorrinho envelheceu com o passar dos anos, ficando mais fraco e adoeceu. Enquanto o seu tutor ainda estava no vigor da vida. Mas ele ficou a seu lado sempre. Tinha tudo que um animalzinho merece: casa, comida, água fresca, caminha quentinha, veterinário para cuidar da saúde (nem sabia que existia doutor de animais).
Mas nem assim, impediu que sua hora chegasse, e é por
isso que o homem está tão triste, porque perdeu seu fiel amigo. Desde a criação do mundo, a morte é nossa inimiga cruel, mas no Céu ela não pode entrar, então ela faz o que quer na Terra, mas um dia, Deus a eliminará, e homem e animal, jamais morrerão de novo.
Enquanto o anjo ainda falava, o homem levou o seu amiguinho e o enterrou no quintal, embaixo de uma bela árvore, a mesma que eles apreciavam tirar sonecas a tarde.
Ficamos abismadas com a cena que passava diante dos nossos olhos. Como fora diferente a vida do meu irmão e a nossa. Como mamãe e eu sofremos pelo mundo, abandonadas, enquanto meu irmão macho, viveu como rei. Não! Não era justo isso!
O anjo viu minha expressão de raiva e deduziu o que eu pensava, e cuidou de não me deixar guardar rancor, explicando: “- Alguns homens na Terra, não entendem as mensagens de Deus. Não compreendem a missão que a eles foi destinada, e cuidam em destruir o que o nosso Pai fez com tanto carinho e amor. Isso inclui os animais. Há aqueles que nasceram para estarem em lugares próprios a seu porte e espécie, e outros para estarem pertinho do homem, como vocês, os cães. Vocês são anjos da guarda do homem, são amigos fiéis, a personificação e imagem do Senhor. Mas se há quem despreze a Deus, que dirá sua criação. Não e culpa dos animais os tutores que lhe foram destinados, sendo bons ou ruins.”
E continuou: “-Mas também há aqueles que entendem e recebem de coração aberto a missão que Deus lhes entregou, e cheios de amor cuidam, amam e protegem seus companheiros e o mesmo recebem deles em troca.”
Explicou que machos e fêmeas não são nomes de ninguém como eu pensava, mas designava o sexo dos animais, minha mãe e eu éramos então meninas, ao passo que meu irmãozinho macho era menino. Também disse que meninas eram mais desprezadas principalmente por procriarem muito. E nós sendo duas, piorava ainda mais a situação.
Da segunda janela, podemos ver um casal já envelhecido pelos anos, mas que eram inconfundíveis....Sim eram eles...nossos antigos donos.
Mas, ué!! Eles tinham um cachorro em casa. Um peludo enorme, bem forte. Meu Deus, quantos dentes grandes! Parecia ser bem cuidado, e ainda bem ativo!
“- Não entendi nada. Por que nos abandonaram, já que iriam pegar outro cachorro? Nós os amávamos, lhes éramos fiéis? Não bastávamos?” – perguntei.
O anjo calmamente respondeu:
“ –Muitas pessoas dão valor a raça, pedigree, classe. Seja para exibir, para parecerem melhores diante dos outros ou para própria contemplação. E vocês eram chamadas de vira-latas, o que para muitas pessoas seria consideradas sem valor. Tiveram o ‘azar’ de serem meninas e vira-latas.”
Pelo menos agora eu entendia o que diabos era vira-lata. E ainda tem a tal da RAÇA. Ahhh!! Madita essa sujeita...essa tal de RAÇA!!
Percebendo minhas dúvidas o anjo se adiantou dizendo que vira-latas seria aqueles animais sem raça definida, popularmente chamados de não diferenciados, sem classe.....raça não era alguém, mas um designação de uma espécie dentro da própria espécie.
Enquanto isso, pelo portão principal, feito de pedras preciosas e grades de ouro, entrava correndo nada mais, nada menos que o meu irmão. Aquele cujo dono fora-lhe zeloso até o último instante. Ele entrou correndo, latindo e trombou comigo e com mamãe nos derrubando. Ai foi aquele cheira-cheira, lambidas pra todo lado. Assim como nós, ele não apresentava nenhum sinal de doenças. Estava jovem de novo e cheio de saúde.
Depois de tanto alvoroço, ele foi conhecer sua nova morada e eu olhei para o anjo num misto de felicidade e mais perguntas. Estava confusa com tantas cenas vistas....e palavras ainda meio complicadas....uns amam, outros abandonam....raça....classe.... vira-latas....afff!!!
O anjo, como sempre me socorre com suas respostas:
“- Assim como existem aqueles que apenas se interessam por animais de pedigree, porque desejam status, para dizerem que tem animal de raça essa ou aquela, também existem aqueles que se desdobram por seus amiguinhos independente do que sejam. Para essas pessoas, tanto faz se é macho, fêmea, com uma raça definida ou não. Recebem de braços e coração abertos a missão que Deus lhes destinou de cuidar do seu bichinho e fazer-lhe feliz até o dia em que eles vem para cá, para o Céu dos Animais. E isso, vocês viram nesse momento, pela primeira janela. E posso assegurar-lhes que o mesmo acontece ao contrário. Ás vezes quem adquiri um animal de raça, não cuida, e so se interessa por ele enquanto ainda não está adulto.”
E continuou: “- Mas aqui no Céu, todos são tratados igualmente. Não há aqui raça, cor ou espécie. Isso não é importante. O que importa é viverem bem, dignamente, por todo o sempre. O nosso Pai-Maior, não ama pela aparência.”
Eu perguntei como se chamavam aqueles que amavam e protegiam os animais na Terra antes que eles fossem para o Céu. O anjo abriu um belo e largo sorriso brilhante e respondeu:
“- Chamam-se ANJOS, mas são mais conhecidos por HUMANOS!”
E saímos todos felizes. E chamamos meu irmão recém-chegado, para o levarmos até a presença do CRIADOR!
(NA TERRA TODOS SÃO HOMENS, MAS POUCOS SÃO VERDADEIRAMENTE HUMANOS)
( AUTORIA: LUISE VIANA - 19-11-2015)