FOLHA SECA

FOLHA SECA

Sentado à beira da janela, numa bela poltrona vitoriana com detalhes extremamente sofisticados, observava calmamente minha estante de livros repleta de clássicos que nunca li e de novidades já relidas.

Deveria ser proibido alguém sentar numa poltrona tão bela e deixar os clássicos, como um “Guerra e Paz”, ou um “Crime e Castigo”, mofando na estante. Porém, esta era a situação e não posso adorná-la de maneira diversa. A mentira tem mais do que pernas curtas, ela também dá um jeito de confundir o cérebro e dominar a língua, fazendo com que esta, mais dia, menos dia, enuncie a verdade antes travestida.

A tarde quente convidava para uma bela soneca embaixo de alguma árvore frondosa, prazer inofensivo ao qual não me entregava havia muito tempo. Porém, reticente a esta provocação climático-biológica, mantive-me no local em que estava, belamente sentado, agora com os olhos voltados para o pátio que se descortinava a perder de vistas.

Vi uma, duas, três, centenas de árvores e arbustos. Flores e abelhas. Formigas mil. E uma folhinha seca. Sim, uma contundente folha seca, vistosa, esbelta e que me fitava loucamente. Folhinhas podem ser bem interessantes e esta fez meu coração vibrar. Ela piscou para mim. Mas não foi uma piscada normal, foi “aquela” piscada. Rebolou também, mas não foi um simples jogo de cintura qualquer, e sim um rebolado rítmico, sensual e indescritível, vibrando juntamente com o vento que começava a aumentar de intensidade.

De repente, e não mais do que isso, a bela folhinha foi arrebatada. O vento era ingente e as forças da pequenina não conseguiram impedir que o vilão carregasse seu pequeno corpo para longe, muito longe. Saí em desabalada carreira, não sem antes largar o livro cuja leitura tinha iniciado antes de avistar a folhinha, pular a janela e levar um baita tombo. Olhei aqui, acolá, por ali e por lá. Nada.

Retornei para minha poltrona. Alcancei o livro para dar continuidade à leitura. Um belo clássico moderno, moderníssimo. Na verdade os contos também podem ser clássicos e os de Edgar Allan Poe estão nesta categoria, imagino eu. Mal folheei o livro e deparei-me com uma dificuldade. Duas folhas faltantes e que, juro, estavam lá. O vento danado, só poderia ser ele, deu um jeito de levar consigo uma parte de meu livro.

Pulei a janela e caí novamente. Esta idiotice de não usar portas ainda vai me matar! Tateei, olhei, cheirei e ouvi. Esgacei os olhos. Forcei todos os sentidos na busca pelas duas folhas, as quatro páginas de meu livro levadas pelo senhor vento sul. Ao longe avistei-as, mas algo errado estava acontecendo. Eu não estava acreditando na imagem lançada em minha retina velha...

Duas folhas e uma folhinha seca. Minha pequena folha seca, entrelaçada nas duas folhas do livro, dançando alegremente. Era mais do que dança. Na verdade era uma espécie de dança qualificada pelo teor sensual. A pequenina rebolava, esgueirava-se entre as duas folhas maiores. Eram núpcias em forma de movimento, uma união a três, sem regras de moral.

De chofre, ela me observou. Fixou seu lindo olhar no meu, deu uma pequena risadinha, como que num adeus mudo de quem não pode ser de apenas uma pessoa, e finalizou a dança num entrelaçamento tão intenso que não pude mais discernir o que era uma coisa, o que era outra.

Para alívio de meu coração, o senhor do mal, o vento sul, intensificou suas forças e arremessou aquelas folhas para longe, muito longe. O alívio foi parcial. Sentia como se algo tivesse saído de mim. Algo importante. Voltei pensativo para a minha poltrona, não sem antes rememorar as cenas desde o primeiro encontro com a folhinha até a derradeira dança.

Cabisbaixo, olhei ao redor. Fitei a estante, os livros. Olhei também para o pátio, onde mirei muitas folhinhas secas. Observei o céu e as copas das árvores. Senti o vento sul, que sempre retorna.

Acalmei meu coração.