UMA SORTE ÚNICA E DOIS DESTINOS

Hoje me veio à mente o tema da honestidade. Refleti e cheguei à conclusão que o honesto nem sempre é correto em tudo. Em outras palavras, o honesto só é correto naquilo que para ele é um valor inafiançável e nunca haverá um preço ao que possa ser vendido.

Para o honesto, ou a honesta, como queiram, essa qualidade intrínseca ao seu caráter, sempre custa o sono tranquilo de uma noite, ou seja, a paz e o sossego, dois valores invendíveis.

Pois bem, ouso afirmar que para o desonesto, tudo é comprável, negociável e vendível, inclusive a alma para o Diabo, se é que ela ainda conta numa sociedade cada vez mais laica e materialista e mercantilista, em que a saúde, a educação, a liberdade de ir e vir do cidadão e até mesmo a fé é negociada, comprada e paga, pelos necessitados, a quem se apresenta com a chave do cofre desses valores sem preço, mas que uma vez roubados e entesourados por eles, só os entregam a peso de ouro.

Feito este introito, passo a falar de um grande amigo que tive e que não está mais entre nós e pelo qual sempre senti e sinto ainda, além da saudade, grande admiração. Esse amigo meu, coincidentemente, foi meu colega de trabalho por mais de trinta anos, eu e ele sempre trabalhando na mesma empresa, ou seja num Banco Comercial.

Isso naquele tempo que o bancário fazia carreira e de contínuo chegava até a ser gerente um dia, se desse ao Banco sangue e suor e todo seu tempo disponível. Conheci um que chegou ao posto máximo, isto é, tornou-se presidente e se aposentou com uma renda polpuda.

Eu e este amigo meu não passamos do cargo de caixa, depois de sermos escriturários e trabalhando até além do expediente, perdendo aulas no colégio e depois na faculdade, ou nos privando da companhia da esposa e dos filhos, que nos abraçavam cheios de carência e saudades, tão logo chegávamos em casa exaustos e estressados, por tanta cobrança no trabalho.

Eu e ele, que estudávamos no mesmo colégio Estadual, saíamos do trabalho sempre tarde e chegávamos atrasados para as aulas, sempre nos prejudicando, mas enfim concluímos com muito sacrifício o segundo grau. Ambos fizemos o vestibular e passamos. Ele para Administração de Empresas e eu para Ciências Econômicas, nós dois sonhando fazer carreira no Banco em que trabalhávamos.

Antes de continuar essa minha narração, aqui vou fazer um parêntesis para falar de nossa vida pessoal, desde que nos conhecemos no trabalho até nosso churrasco em comemoração por termos conseguido passar no vestibular. Para esse churrasco, convidamos muitos amigos e amigas, inclusive do trabalho, mas também outros e outras conhecidas de per si.

Voltando um pouco no tempo, gostaria de falar desse meu amigo dos tempos colegiais, em que trabalhávamos datilografando fichas, registrando cheques, fazendo relatórios, cada um de nós com sua máquina de escrever comum e calculadoras antigas em nossas mesas, lado a lado.

Nesse tempo de nossa juventude, eu namorava firme e só me casei após terminar a faculdade de Economia, mas meu amigo era muito namorador e mulherengo e, ao que me parece, não ficava ansioso e deprimido como a mim, devido a pressão no trabalho.

Eu e ele éramos pontuais, fazíamos horas extras e nunca as recebíamos. Mas no dia do pagamento, eu sacava meus proventos e depois de pagar a mensalidade da pensão onde eu morava, num quartinho quente e infestado de baratas, aplicava o restante numa poupança na Caixa Econômica Federal.

A estas alturas, meu amigo se casou por ter engravidado a namorada e, como ele era muito responsável, pelo menos quanto a isso, assumiu a paternidade e formou uma família, que, aliás, honrou pelo resto da vida. Tiro aqui meu chapéu para ele.

Mas ainda dentro do parêntesis que ao leitor pedir permissão, vou falar um pouco dele antes de se casar e se tornar um marido e pai exemplar.

Como eu disse, a maior parte de meu salário eu poupava, mas ele, como morava com os pais e irmãos, não se preocupava muito com isso. Só que dava sua colaboração mês a mês e não vivia à custa de sua família. Como ele divertidamente me dizia, pagava seu prato de cada dia, mas ao se casar, saiu de casa e assumiu sua nova responsabilidade.

Só que antes disso tudo, o divertido era quanto chegava o dia do pagamento. Cada funcionário do Banco fazia o que deveria ser feito. Eu sacava, pagava minhas dívidas e o resto poupava. Não soube nunca o que cada funcionário ou funcionária fazia com seus salários. Mas eu sabia, e acho que nem só eu sabia o que meu colega e amigo bancário fazia com seu dinheiro. Ele sacava tudo e saía falando alto e dando risadas (bem entendido, antes de se casar), desfolhando aquelas notas entre os dedos:

- Hoje à noite, as putas vão estar endinheiradas. Há, há, há...!

Só um detalhe e muito importante: Antes de gastar o seu dinheiro, provia a compra do mês e ia de mesa em mesa dos colegas pagando até o último centavo do que devia. Nunca deu calote em ninguém. Para mim, isso é honestidade com H maiúsculo.

Caro leitor e leitora, paciência mais um pouco, logo interromperei meu parêntesis e prosseguirei meu conto até o fim, mas isso que estou contanto, também faz parte de meu conto, entende?

Falta-me dizer e o digo com muito orgulho deste meu amigo. Antes dele gastar seu dinheiro com bebidas e mulheres, curtição dele só nos fins de semana, ele primeiro pagava suas dívidas que, aliás, não eram muitas. Só emprestava dinheiro dos colegas de trabalho na segunda quinzena do mês, apenas para tomar suas biritas, dinheiro de cachaça, vamos dizer logo de uma vez.

Lembro-me de que um dia ele parou seu carro junto ao meu num sinal vermelho. Abriu a porta do meu lado e me pediu um empréstimo, dizendo:

- Estou louco pra tomar um “arco” e sem um tostão no bolso. Me dá aí uns dez contos e no pagamento eu te pago.

Eu puxei a carteira enquanto esperava o sinal abrir e lhe dei nem sei quanto, porque não tive tempo de contar. Ele estendeu a mão, pegou as notas e saiu acerelado, o sinal abriu e cada um de nós dois foi para um lado, mas no dia do pagamento ele sabia o que me devia, sem nem mesmo eu saber da quantia. Este era um amigo de verdade, porém mais que isso, era honesto.

Honestamente como fora meu amigo, não só a mim, mas a todos sem distinção, quero dizer a quem me lê, fechando o parêntesis e prosseguindo este conto para o fecho final.

Pois bem, eu e meu amigo e colega bancário continuamos inseparáveis. Por um bom tempo ele morou com os pais e irmãos, enquanto eu, que provinha de cidade distante, morava numa pensão, compartilhando um quartinho privado, sozinho e com baratas subindo pelas paredes de tábuas. Mas eu dava graças a Deus porque meu quarto era privativo e eu tinha as chaves para abrir a porta ou fechá-la, quando bem quisesse.

Como não sou muito afeiçoado a mudanças, fiquei nessa pensão até me formar e pouco tempo depois me casar. Mas aqui começa outra história de vida, que não vem ao caso, porquanto mais que falar de mim, quero falar de meu amigo e colega bancário.

Como já deixei claro, ele não era um bom sujeito em muitos aspectos, pois que era boêmio, bebia, farreava muito, porém era autêntico e sincero. Assumia todos os seu atos e não enganava ou prejudicava ninguém. Nunca roubou, nem jamais foi preso por embriaguez ou desordem.

Mas desistiu do curso de Administração de Empresa pela pressão no trabalho e outros problemas e, por amor à família, dedicou-se somente a trabalhar no Banco até de noite, sem receber horas extras, com também eu.

Como sóis acontecer, ambos fomos demitidos do Banco já perto da aposentadoria, eu era recém formado Economia e ele casado, com uma filha adolescente e a esposa gravidade novo.

Eu já tinha me casado, mas nunca é demais dizer: Os banqueiros não poupam ninguém. Para eles o que importa é o lucro e, assim, nunca se importam com o drama das famílias. É o rentismo, é a selvageria do capitalismo financeiro, infelizmente.

Fomos demitidos por contenção de despesas e, desempregados, entramos com uma ação na Justiça do Trabalho. Depois de muito tempo, ganhamos, fomos ressarcidos das horas extras, majoração no Fundo de Garantia, mas até então comemos o pão que o diabo amassou. E isso não há dinheiro que pague.

Quanto a vida que eu e ele estamos levando, nada a acrescentar, prefiro guardar silêncio. Para aquietar aos que me leem, digo que eu e meu amigo sofremos muito. Mas não esqueçam que nós somos apenas protótimos de uma realidade injusta e, de nossa parte, vamos sobrevindo.

Por fim, só quero acrescentar uma coisa importante e terminar concluindo que ser correto, cumprindo leis e regulamentos, nem sempre é fazer o melhor. Querem saber o que bom mesmo?

É seguir o desejo do coração.

Sabem por que?

Porque o coração tem razões que a razão desconhece, como afirmou acertadamente Blaise Pascal.

Este meu amigo só seguiu os ditames de seu coração. Eu, ao contrário, preferi ouvir o que me dizia a razão. Ao que parece, nossos destinos não foi tão diferente.

Uma coisa aqui eu acrescento com saudade, respeito e admiração:

- Que terá sido desse meu amigo de quem nunca mais tive notícia!