900-O FANTASMA DO BEM -
Ao completar dezoito anos, em 1955, viajei de Belo Horizonte, onde residia com meus pais, para o Rio de Janeiro, em busca de uma oportunidade de trabalho. Meu tio Juvenal era jornalista e eu gostava muito de escrever. Pensava que poderia enveredar por essa profissão, com ajuda de titio.
Fiz questão de viajar em alto estilo, o que na época significava ir pelo trem Vera Cruz, noturno com cabines com leitos. Quero que o Tio Juvenal veja que sou classudo! pensei ao comprar a passagem.
Embarquei minutos antes das 23 horas, quando o trem partiu. Entrei na minha cabina, deitei-me e logo, embalado pelo troc-troloc das rodas sobre os trilhos, dormi.
Acordei algumas horas depois, com batidas na porta da cabine. Ao abri-la, ainda sonolento, um empregado do trem me avisou:
— Devemos descer. Houve um deslizamento de barreira sobre os trilhos. Recolha seus pertences e venha.
Desci, com os demais passageiros do vagão-leito. Todos estávamos assustados, o que não era para menos: ser acordado no meio da madrugada, o trem impedido de prosseguir... sabe-se o que lá mais.
Entretanto, um ônibus enviado pela ferrovia nos aguardava ao lado da linha. Embarcamos sem atropelo, as malas foram acomodadas no local apropriado e seguimos viagem.
Estávamos perto da cidade maravilhosa, aonde chegamos por volta das quatro da madrugada.
— Vou deixá-los na Central do Brasil. Lá é fácil tomar ônibus ou taxi.
O ônibus foi encostado numa rua lateral á Praça da Republica, que fica nas proximidades da Central. Enquanto desembarcávamos e recebíamos as malas, houve algumas reclamações de outros passageiros, mais experientes em viagem.
— Esta região aqui, nesta hora, é perigosa demais prá gente ficar esperando taxi – disse um senhor de cabelos grisalhos.
— Olhem ali, aquelas “meninas” procurando clientes. Na certa tem bandido ai dentro da praça. — disse outro.
Senti medo. Não passava taxi nenhum, ao contrário do que havia dito o motorista do ônibus. Frio. Névoa. E nós esperando a passagem de pelo menos um taxi. E precisávamos de vários, pelo menos uns vinte.
Foi quando vi, saindo das sombras das árvores da praça, um homem trajando roupa escura, chapéu cuja aba larga caia-lhe sobre o rosto, escondendo suas feições. Dirigiu-se diretamente para mim. O medo generalizado transformou-se em pavor. Olhei para onde estavam os meus companheiros de viagem, e NÂO VI NINGUÉM!
O homem chegou perto de mim e me disse:
— Venha, vou lhe arrumar um taxi. — A voz era calma, normal, e me infundiu confiança.
Ele caminhou uns vinte metros pela calçada e parou à beira do meio-fio. Imediatamente passou um taxi, que não atendeu ao aceno do misterioso homem. Este levou então um assovio à boca e assobiou alto. Vi o taxi diminuir a velocidade e parar a uns duzentos metros. As luzes de ré se acenderam e o taxi chegou até onde estávamos.
O homem abriu a porta do taxi e mandou que eu entrasse, dizendo:
— Pode ir. O taxista já sabe onde levar você.
Aí, sim, que quase borrei as calças
— Levar pra onde?
O taxista, sem se voltar, falou:
— Rua do Catete, cento e quatro. Não é prá lá que quer ir?
Os cabelos da minha nuca arrepiaram-se.
Virgem Maria! É o endereço da casa de meu Tio! Como é que ele sabe?
Voltei-me para encarar o estranho que havia providenciado o taxi mas ele havia DESAPARECIDO!
Cheguei são e salvo à casa de Tio Juvenal às 5 da manhã. Paguei o taxista, peguei minha maleta e apertei a campainha da porta. Ainda meio apavorado com os acontecidos naquela madrugada.
Meu tio atendeu, já trajando um terno impecável, gravata, talvez de saída para o trabalho.
— Ora, ora, chegou antes da hora. O trem só chega às nove. Eu ia até a Central esperá-lo. Mas já que está aqui, não fique com essa cara de assustado ai na porta. Entre, entre.
Tia Jovina apareceu quando já estávamos tomando café na mesa da cozinha. Entre abraços apertados e beijos no meu rosto, foi pedindo notícias da família e Belo Horizonte, como tinha sido a viagem, essas coisas do primeiro momento de reencontro de parentes.
Dei as notícias, contei as novidades e relatei da parada o trem, a viagem de ônibus. Só não falei nada do homem misterioso nem do taxista que sabia do endereço sem que eu dissesse nada.
Deitei-me após o café para repousar e acordei quando meu tio chegou par almoçar. Somente depois do almoço, quando eu e titio estávamos sozinhos na sala, é que relatei o fato misterioso e —porque não? — sobrenatural.
Ele me escutou sem se espantar. Era um jornalista antigo, de experiência, jamais se escandalizava com nada, mas detestava notícias falsas, fofocas, invencionices, mentiras.
Me olhou com um olhar frio, que se tornava gelado nos seus olhos azuis. Pensei:
La vem bronca, ele está pensando que estou inventando coisas.
— É, já ouvi histórias desse homem misterioso que ajuda as pessoas lá pelas bandas da Central do Brasil.
— Será... será que é... um fantasma? — ousei perguntar.
— Sim, pode ser. Mas neste caso é um fantasma do bem.
E deu uma piscada com o olho esquerdo, que até hoje não sei se é de gozação ou de crença na minha experiência.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 5 de junho de 2015
Conto # 900 da Série 1.OOO HISTÓRIAS