UMA CHACINA E O SUICÍDIO DO JUIZ DE DIREITO
 
Éramos amigos desde que me conheço por gente. Tivemos uma infância pobre, mas divertida. Saíamos de casa pela manhã e voltávamos à tardinha. Nossas mães, ao contrário das de hoje, em nada se preocupavam. Até mesmo porque sempre voltávamos com um cacho de bananas, uma fiada de peixes, ou qualquer coisa para ajudar na alimentação dos irmãos ainda menores que ficavam em casa.

Aprendemos a nadar aos sete ou oito anos de idade em rios grandes e caudalosos que tangem minha cidade. Usando calção e camisa costurados à mão e pés descalços passávamos o resto do dia, após o horário de escola, brincando nos matagais, nadando e pescando em rios, que hoje, certamente, não arriscaríamos sequer a entrar.

Naquele tempo, pelo menos em minha cidade, não havia escolas particulares e ricos e pobres estudavam na única escola que havia, um "Grupo Escolar Estadual". O nome do meu inseparável amigo era Paulo Plácido Pereira, o Pêzinho, como o chamávamos pelos três P que formavam seu nome.

Desde criança, apesar de pobres, éramos chamados pelas demais crianças de "a dupla xixi - cocô", por sermos "diferentes", segundo eles. Isto só porque gostávamos de ouvir um programa da única Rádio da cidade que tocava música clássica ou orquestrada. O programa ia ao ar entre meio dia e meio dia e meia, apenas meia hora de duração. Entretanto, quando estávamos em casa não o perdíamos por nada. Além disso, gostávamos de ler demais, para seus gostos, mesmo que naquela época o prazer por uma boa leitura era considerado "coisa de pessoas normais". Acontece que realmente exagerávamos um pouco, pois quando podíamos marcávamos presença na pequena biblioteca pública da cidade, que ficava em uma salinha, logo a entrada da Prefeitura Municipal, à direita de que entrava.

Lembro-me que por esse gosto (pela leitura), meus irmãos reuniram suas economias e no começo do ano 1967 presentearam-me com uma Enciclopédia Barsa, a qual tenho guardada até hoje, e que até 1983 ainda recebia o "Livro do Ano". Eu iria completar doze anos e do meu "troféu" todo o colégio ficou sabendo, pois ter uma Barsa na época era coisa de ricaços.

Nesse tempo eu e Pêzinho estávamos iniciando o Ginásio. Daí em diante tomamos rumos diferentes. Soube mais tarde, contado-me por ele próprio, que havia enveredado para as bandas do Direito, enquanto que eu fui para o lado das ciências exatas. E mais tarde, depois da chamada meia idade e com a vida ganha, é que me aventurei pelo caminho das Ciências Sociais, tais como, Sociologia, Filosofia e por último ao da Literatura.

Pêzinho contou-me em um encontro mantido em minha cidade, que seu "desaparecimento" deu-se por motivo de sua família ter mudado de cidade e lá se bacharelara em Direito. Advogara por um bom tempo. Porém, aos trinta e cinco anos de idade, voltara-se à magistratura, após passar em um concurso público. Perguntei-lhe se estava feliz como Juiz. Olhou para cima, como quem busca uma resposta precisa, e respondeu-me com um "mais ou menos" visivelmente para "menos" do que para "mais". Diante da resposta do amigo e doutor Pêzinho, insisti do porquê da tristeza, uma vez que fora de sua escolha a nobre profissão. Então, contou-me de vários casos em que sentenciara prisão ou absolvição a muitos acusados com a neutralidade que a profissão exigia-lhe. Mas, que estas decisões tomadas iam, quase sempre, contra as suas convicções pessoais. Fossem de inocência ou culpabilidade, mas que em função da fragilidade das provas, fraqueza da defesa ou eloquência da acusação eram-lhe por demais desgastantes. Contou-me que a neutralidade do Juiz, que o cargo exige causava-lhe muito desgaste em sua consciência "de cristão justo" que se considerava ser. Inclusive, ilustrou-me tudo isso com vários casos por ele julgados e devidamente detalhados pela hermenêutica jurídica que, obviamente, não lhes sei contar com a devida exatidão por não dominar esse meio sistemático de textualização.

Em verdade, que mesmo dentro da minha ignorância sobre o assunto, era-me palpável que meu amigo, agora Juiz de Direito, não era um homem feliz.

Pensava nisso quando ele repentinamente quebrou o silêncio com o seguinte desabafo: - "pior, meu amigo, que ainda levo fama de verdugo, draconiano, etc, mas, sou apenas como outros profissionais que dizem "não ter coração", como os médicos, por exemplo. Sigo às regras, os protocolos, só isso. Um homem temente a Deus é o que realmente sou e por isso tenho procurado ser o mais justo possível. Apenas procuro seguir às Leis dos homens, como deve ser um magistrado, mas às Leis de Deus superam em minha confusa consciência aos meus estudos jurídicos."

Como meu grande amigo de infância temi por sua saúde mental e sugeri procurasse um médico. Disse que não o faria. Ansiava por "algo maior", queria deixar sua marca, uma coisa extraordinária, confidenciou-me.

De repente repensei nossa infância e arrepiei os pelos do corpo inteiro. Quando criança entrávamos em choque muitas vezes por sua conduta contraditória. Quando estávamos sentadinhos em algum lugar tranqüilo sonhávamos acordados em viver um futuro de abundância e riqueza. Tomar uma coca-cola das velhas garrafinhas e comer um pastel na cantina do colégio, por exemplo, já era grande sonho de consumo que só em pensar nos realizávamos. Pois, lembrávamos dos "ricos" comendo e nós só olhando e, isto naqueles momentos, era uma das viagens pelo mundo da "riqueza". A fantasia romântica de belas meninas sendo as nossas namoradas eram interrompidos quando ele via um inseto qualquer. Sentia um imenso e sádico prazer em torturar-lhes ou causar-lhes a morte. Lembro-me das experiências que fazia com inofensivos besouros, aos quais mutilava-lhes as patas ou asas e punha-os em um vidro e ficava um bom tempo observando para depois impiedosamente matá-los. Nesse ponto é que eu o achava contraditório e quando discordávamos para valer. Por outro lado, em determinados momentos falava em horror à injustiça o que desencontrava com seus atos cruéis para com os pequenos e indefesos animais. Muitas vezes confesso que o julguei meio maluco.

Então, no tal encontro, fiquei preocupado mas, não havia mais nada a ser feito a fim de ajudar meu amigo, além de recomendar-lhe um médico conforme eu havia dito. Ou que procurasse a Igreja, já que se declarava um cristão. Na Igreja talvez fosse melhor do que um médico para que talvez encontrasse a paz de espírito e a alegria de viver, caso a fé fosse-lhe verdadeira. Aliás, nenhuma religião - que eu saiba - aconselha matar, roubar ou causar o mal à alguém. Dizem, inclusive que, muitas igrejas roubam dos fiéis. Na verdade elas não as roubam. São as pessoas é que dão e assim são felizes. E se são felizes é lá o seu lugar. O que importa é a felicidade aonde elas escolheram estar. Quem somos nós humanos para julgar a fé e a liberdade de escolha religiosa de nossos semelhantes?

Bem, o fato é que recentemente recebi um extenso e-mail do doutor Pezinho, meu querido amigo de infância. Dizia o seguinte:

"Caro amigo, contarei um caso que eu premeditei detalhadamente e que por ele acho que fiz a justiça de que tanto busco. Hoje ocorreu um julgamento presidido por mim. Já sabia do caso e também de seu resultado. O cenário estava montado: advogado de defesa, promotor, escrivão, acusado, jurados, e guardas de segurança. Porém, eu, o Juiz, aguardava em uma sala ao lado.

Escutei fecharem as portas e então adentrei à sala de julgamento. Todos se levantam e eu, após pedir para sentarem-se, sentei-me no 'pódio', pois de lá o Juiz fica literalmente acima de todos. Isto já é psicologicamente preparado para constranger os demais com a 'figura do excelso', como o amigo deve saber.

O Julgamento era de um diretor de um presídio provisório da cidade, cujo fato acusatório era o de depositar verbas públicas (do governo estadual) em sua conta bancária particular. Foi lido o processo e dei-lhe a palavra (ao acusado) para explicar o fato dos depósitos ilegais, uma vez que sua defesa seria por conta de seu advogado.

O homem era muito conhecido na cidade, em especial por seu altruísmo, humanismo e honestidade. Comparado a muitos que estão soltos por aí poderia ser um Paráclito de qualquer acusado que julgasse inocente, tendo em vista sua retidão e ilibado caráter celebrados pelos moradores da cidade. Eu também o conhecia bem, e homologaria essa fama, Juiz não fosse.

Então ele explicou a mim e a todos os presentes: 'pois não, meritíssimo! Como se sabe eu sou ou era o diretor do presídio da cidade. Há mais de seiscentos encarcerados em um lugar que caberia apenas duzentos. Mas, não é bem esse o problema. Ocorre que busco desesperadamente alimentar esse pessoal correndo atrás de donativos da sociedade e sobras da Ceasa, uma vez que o Governo do Estado nos envia em torno de R$. 3,00 por preso e ainda com três meses ou mais de atraso. Entretanto, é preciso comprar vários alimentos que não são doados e comprar fiado em nome do Governo Estadual é impossível, uma vez que ninguém sequer quer ouvir o nome do Governador. Então, doutor, eu sou obrigado a soltar cheques pré-datados meus na praça e quando vem o a verba do governo deposito em minha conta para cobri-los. Aliás, que quase nunca dá e tenho que recorrer a amigos para completar a conta no meu Banco. Todas as Notas Fiscais das compras efetuadas, certamente estão nos Autos, bem como cópia dos meus cheques enfim, várias prestações de contas. Mas, mesmo assim fui preso... Sei que isso não é certo perante a Lei, mas cansei-me de ver homens e mulheres presos e com fome e o governo que os mantém presos não atenderem meus diversos pedidos, conforme também constam dos autos... E até onde sei, Excelência, a Pena de Morte ainda não foi instituída no Brasil e muito menos através da fome do condenado...'

Como lhe disse, caro amigo, o desenrolar daquele julgamento eu sabia por fontes secretas de como e quando aconteceria. E, conforme previsto, o acusado ainda estava falando, quando as portas foram abertas e três homens entraram escandalosamente na sala. Acompanhavam-lhes vários repórteres e cinegrafistas com suas câmeras e luzes. Os três almofadinhas vestiam ternos bem cortados e lustrosos sapatos. Vieram direto a mim e apresentaram-se como 'Deputados Federais da Comissão Não Sei das Quantas'. Ato contínuo pediram a algema de um Policial e prenderam-na aos pulsos do Diretor do Presídio diante de mim e dos holofotes da imprensa. Então, eu lhes disse: 'esperem um pouco eu sou um Juiz e determino explicações (apesar de eu já estar informado de que aquilo iria ocorrer)!' Eles me disseram simplesmente que a autoridade deles estava acima da minha e que levariam com eles (não sei para onde) aquele homem.

A verdade, meu inesquecível amigo, é que se havia formado uma tal CPI, dentre tantas em Brasília, que 'apuraria' crimes de corrupção. Como ninguém até então havia sido punido e para mostrar serviço vieram até minha cidade para prender o Diretor. Pois, alguém do governo do estado havia-lhe denunciado para a tal Comissão Parlamentar de Inquérito, conforme eu havia sido informado por antecedência.

Nesse momento, peguei uma pistola ponto quarenta. Dezesseis cápsulas no carregador, que previamente havia posto na gaveta. Engatilhei e carreguei uma bala na câmara. Em seguida apontei para o peito de cada um dos três deputados, e disparei. Os três morreram imediatamente. Depois atirei no Promotor e terminei de descarregar o pente na imprensa, dos quais não sei precisar quantos morreram ou saíram feridos. Imediatamente, enviei-lhe este e-mail que estava preparado em meu note book. Quando recarregarei a arma com outro pente. Certamente sob os olhos atônitos e surpresos do diretor algemado, dos dois guardas, do escrivão, dos jurados e do advogado de defesa. Sentir-me-ei Deus, finalmente. Um verdadeiro orgasmo sentirei no breves segundos que me restarão. Verei com o mesmo prazer em que via os besouros, o medo a estampar-se nos olhos daquela gente que deixarei viver. Porque a verdadeira investidura do poder humano traduz-se por uma arma nas mãos. Com ela um homem é capaz de produzir o milagre da vida e da morte. E, antes da reação de qualquer um dos seres que Eu deixarei vivos, apontarei a arma para o meu próprio peito e dispararei. Quando você estiver lendo este relato já estarei morto. Adeus, meu grande amigo!"

Os traumas de infância, outros fatos que talvez eu não tenha sabido, a bi-polaridade de conduta demonstrada desde criança, a incoerência entre a fé religiosa e a injustiça, a impotência diante da obsessão pela neutralidade e a fama de verdugo foram decisivos no trágico final de carreira do doutor Paulo Plácido Pereira.

Concluo pois, naquele dia em que nos encontramos, a minha intuitiva preocupação não fora descabida mas, como eu poderia imaginar que meu amiguinho Pêzinho de outrora estava enlouquecido a tal ponto?
Luiz Carlos Gomes
Enviado por Luiz Carlos Gomes em 11/11/2015
Reeditado em 21/04/2016
Código do texto: T5445115
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