899-BRASIL? NUNCA MAIS! - Criminal

Jean-Pierre Satenaux (pronuncia-se Satenô) pedalava ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas, como fazia sempre, aproveitando a frescura do amanhecer carioca. Devidamente protegido, com luvas, capacete apropriado para ciclistas, óculos escuros de lentes polarizadas, joelheiras, luvas e tênis resistentes; a bicicleta era a mesma com a qual ganhara inúmeros prêmios em certames internacionais.

A diferença entre os tempos de ciclista participante de torneios e agora, um exitoso homem de negócios, era a velocidade com que pedalava: tranquilamente, maravilhado sempre com a beleza do lugar. Porém, atento aos mínimos detalhes do caminho e arredores, tal qual como se estivesse numa corrida de tempos vividos com emoção.

Por isso, viu num relance a aproximação do rapaz alto, forte, correndo em sua direção e com algo na mão direita. Vinha numa rota de choque. A reação de Jean-Pierre foi imediata: retesou os músculos e imprimiu velocidade à bicicleta. Quando o encontrão aconteceu, foi um golpe que pegou o rapaz de surpresa e o jogou ao chão. Jean-Pierre saltou da bicicleta, caindo de joelhos sobre o moço a tempo de aparar o golpe que este desferia na direção de seu pescoço, com uma lâmina brilhante. Uma faca que passou rente à jugular de Jean-Pierre e traçou um risco no rosto claro, logo minando sangue.

— Fils de pute! — gritou Jean, ao mesmo tempo em que segurou ambos os punhos do agressor e lhe aplicou uma poderosa joelhada na região escrotal, arrancando um grito de dor lancinante.

Jean-Pierre afrouxou as mãos quando viu o adversário encolher as pernas, ato instintivo, que foi, na verdade, uma alavanca para empurrar o francês com os joelhos. Jean soltou os punhos e caiu de lado. Parecendo meio tonto, o rapaz tentou levantar-se e Jean o puxou pelas pernas. Perdendo o equilíbrio, o assaltante caiu de novo, e de forma grotesca, que resultou na queda sobre a mão que segurava a faca, e de forma tal que a lâmina entrou com força entre as costelas do lado esquerdo de seu peito.

Jean-Pierre levantou-se. Limpou o sangue que corria pela face e observou o jovem virando-se de costas, seu ultimo movimento antes de ficar imóvel.

O ciclista abaixou-se e examinou o rapaz. Extraiu a faca do peito, de onde jorrou sangue abundante. Mexeu na cabeça do jovem.

— Mon Dieu! Está morto!

Olhou para um lado, olhou para o outro. Não viu ninguém. Olhou o relógio de pulso: marcava cinco e trinta.

O sol já despontava num alvorecer alaranjado, intenso, brilhante.

— Connard! Que hora ruim pra morrer. E ninguém por perto para me ajudar. Parece que todo mundo desapareceu.

Impávido, Jean-Pierre tomou o celular e digitou os três números da polícia. Informou o ocorrido e ficou ali, entre a ciclovia e o canteiro de proteção, de pé, olhando em todas as direções, a ver se via alguém.

Alguns minutos e aparece um carro da policia. Brecado com violência, dele saíram três policiais. O ciclista aguardou de pé a aproximação dos fardados. Antes mesmo que falasse qualquer coisa, foi empurrado por um, enquanto os dois outros o prenderam pelo bíceps, ajuntaram seus punhos nas costas e o algemaram.

— Alors qua? — surpreso, Jean Pierre protestou mas os policiais pareciam surdos.

— Calado, gringo! Entra aí!

Empurrado para o porta-malas do carro, transformado em jaula, foi forçado a encolher-se enquanto a tampa batia ao seu lado.

Na ciclovia ficaram o cadáver, a faca e a bicicleta.

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Na delegacia de polícia a situação não foi aliviada para Jean-Pierre nem mesmo quando identificado como cidadão francês residente no Rio, proprietário de uma fabrica de roupas intimas para mulheres. Após as primeiras declarações, pode chamar seu advogado.

— Metam ele na cela quatro, enquanto o advogado não chega! — foi a ordem do delegado.

Na cela quatro, abarrotada de marginais, foi vítima de gracejos mesmo antes de adentrar-se.

O advogado da firma chegou com uma rapidez inusitada e liberou Jean-Pierre daquele constrangimento. Ainda estava na delegacia quando chegaram sua esposa Lucinde as duas filhas, Susanne e Dina. Os abraços mancharam os vestidos de lágrimas e sangue.

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Os trâmites legais foram um pesadelo para Jean-Pierre tal qual um conto de Kafka.

—Você está sendo acusado de ter assassinado Maike Jaquison (era o nome do assaltante) com uma facada no coração. — Disse o advogado.

— Quoi? Ele me assaltou com a faca, me defendi como pude, lutamos e ele caiu sobre a lâmina.

— O delegado não acredita na sua história. É mesmo muito estranha, pois aqui ninguém reage a um assalto e muito menos mata o assaltante. E não há testemunha. É só sua palavra

— Zut! Zut! — Minha palavra não vale nada?

Jean-Pierre escapou da prisão pelo flagrante graças às tortuosidades das leis e dos procedimentos legais. Mas as vezes sem conta em que teve de comparecer à delegacia para depoimentos e depois, no julgamento a que foi sujeito, constituíram um verdadeiro rosário de tortura moral.

Foi absolvido pelo júri popular, por unanimidade, pois se a polícia indicou assassinato, os cidadãos e cidadãs do júri, cariocas escolados, sabiam bem como eram conduzidos esses assuntos, das mutretas da policia e das manhas dos advogados.

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Desgostoso, Jean-Pierre decidiu voltar ao seu país, a Dulce France, como dizia. Negociou sua fábrica, vendeu o apartamento e encerrou definitivamente suas atividades no Rio de Janeiro.

Escolheu um suave lugar próximo a cidade de Nice, no sul da França, onde passou a cultivar uvas. Não demorou muito e já produzia vinho de boa qualidade.

Durante algum tempo foi assediado por repórteres e jornalistas, interessados no acontecimento do qual fora protagonista principal e que lhe trazia amargas lembranças.

Então, encerrava qualquer possibilidade de entrevista respondendo laconicamente:

— Brésil? Jamais!

Que os repórteres brasileiros traduziam corretamente, mas nunca publicaram:

— Brasil? Nunca mais!

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 3 de junho de 2015.

Conto # 899 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

contato: argobbo@yahoo.com.br

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/11/2015
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