Seis Horas

Primeiro nasce a idèia. Uma cena de cinema. Um relógio digital, destes encontráveis em qualquer loja de departamentos, sobre uma mesinha de cabeceira, marcando exatamente seis horas da manhã, no exato momento que toca o despertador, acordando a jovem que dormia um sono angelical. Os olhos semicerrados, como quem dorme caminhando, dirige-se para o banheiro. Diante do espelho revela sua beleza exuberante. Enquanto a água escorre pelo seu corpo nu, fica imaginando as voltas que sua vida vai dando nos últimos dias. Tinha acabado um relacionamento de mais de dois anos, e que estava se arrastando á um fim melancólico a mais de seis meses. Seus olhos verdes, realçados diante da pele clara e seus longos cabelos crespos, negros como a noite, numa beleza exótica. Chora neste momento, tentando entender o que tinha feito de errado. Queria que a água que lavava seu corpo, pudesse lavar também sua alma. Não tinha como dar certo, ele era uma pessoa um tanto egoísta, ante ela, que dedicava seu tempo livre, para trabalhos de voluntariado, coisa que nem de longe, estava entre as prioridades da vida dele, que nascera numa família abastada, diferente da dela que estava na batalha pela vida, e ela tinha que trabalhar para poder estudar.

Comeu qualquer coisa para um desjejum, não dos mais saudáveis, sabia disso, mas era o que podia fazer, diante da correria diária que sua vida estava desde que decidira ir para outra cidade com a única finalidade de estudar, e mudar sua história. Toma o corredor do prédio onde mora, distraída em seus pensamentos, linda como sempre, distante da chorosa de instantes atrás. Brilhante e radiosa fecha a porta, distraidamente lhe cai à chave, no momento que despretensiosamente passa por trás dela, um cidadão, barba rala por fazer, cabelo despenteado, fuma um cigarro, e caminha devagar com as mãos nos bolsos. Sem ater-se a este fato, parte para mais um dia de jornada extasiante. Agora sua vida centrava-se novamente nos estudos, pela parte da manhã, já que pela parte da tarde, era balconista de uma farmácia. Suas noites agora seriam usadas para aprimorar suas leituras, já que antes tinha que acompanhar seu noivo.

Sua rotina foi abruptamente quebrada exatamente às seis horas e trinta e sete minutos, quando um brutamonte, segundo ela, atropelou-a na calçada, no instante que terminava de fechar a porta. Longe disso quem lhe derrubou foi um rapaz franzino, que corria pela calçada, sem preocupar-se com o que tinha pela frente. Diversos livros ficaram espalhados pelo passeio, enquanto o rapaz apaixonava-se. Um jovem magricelo, que corria para um encontro, numa cafeteria ali perto, antes de ir para a faculdade. Fizera uma aposta, e estava perdendo. Seus cabelos estilo anos setenta, deixam a garota um pouco assustada, não estava acostumada a encontrar um penteado destes todo dia. Usava óculos, redondo, destes que se costuma chamar de fundo de garrafa, um cavanhaque, se é que tinha alguém, além dele que o chamava assim, pois eram fios ralos embaixo do queixo, típicos de um adolescente que deixa barba para passar uma idéia de homem maduro. Ela supersticiosa por demais, resolve voltar para casa, não era mesmo para ir à faculdade, não queria encontrar o ex-namorado, esse pequeno acidente viera bem a calhar.

O jovem magricelo juntou seus livros, entre eles um dela, que pegara para ter uma desculpa de reencontrá-la outra vez. Esperava encontrar o numero do apartamento no caderno. Arruma seus óculos, e parte desesperado para encontrar sua amiga, antes das aulas. Precisava encontrar sua deusa da manhã, ainda hoje, antes do meio dia.

Sabia que ela não tinha notado sequer sua presença, provavelmente, imaginara ter trombado num poste. Ninguém nunca o notava. Onde quer que fosse, passava despercebido. Cursava cênicas para perder a timidez, e poder se mostrar, aparecer. Imaginava um dia receber um Oscar, devaneava sempre, queria ser astro. Viajando em sua fama e fortuna imaginaria, nem notou o homem parado ao seu lado no semáforo, usava óculos, possuía uma barba rala, cabelo despenteado, fumava um cigarro e uma das mãos nos bolsos. O sinal abre, os dois atravessam a rua, o jovem em sua corrida tresloucada, e o homem, dá uma baforada em seu cigarro, e parte com seus passos pesarosos e preocupados.

O jovem desajeitado em questão, dirige-se ao café costumeiro da rua doze, lá uma moça gorda, sua colega esperava-o para uma reunião derradeira sobre a aposta em vigor entre eles. Fizeram uma aposta depois de verem um filme, em que dois desajeitados personagens apostavam para ver quem conquistaria um namoro antes. Feita há vários meses, o prazo encerrar-se-ia impreterivelmente nesta segunda ao meio-dia. Estava certo que venceria esta aposta, pois pelo que sabia sua desastrada amiga não obtivera sucesso no final de semana. Não queria virar monge, nem tampouco virar padre, pois era um irrequieto ator, não poderia viver o resto de sua vida meditando, seria melhor jogar-se da ponte. Isso seria uma perda lastimável para a arte nacional, pois era um ator de primeira, mas não puxava o saco de ninguém para conseguir trabalho. Tinha atores pífios, inclusive colegas de faculdade que eram chamados para fazer filmes e series até fora do país porque eram bonitos ou faziam coisas que ele julgava inadequados, mas não iria entrar no mérito desta questão agora, pois precisava decretar a entrada de sua amiga no mosteiro. Prometeu para si mesmo que seria um dos principais visitantes do monastério para ver sua amiga.

Sua incrível excitação inicial foi murchando como uma flor solta no deserto, ao tempo que se aproximava da porta do café, lembrando que sua amada atropelada na calçada, precisava ser conquistada, e seu tempo diminuía a cada avanço do ponteiro do relógio que carregava consigo. Poderia parar o ponteiro tirando a pilha, mas pararia apenas aquele, não os demais. Quase o atirou na parede.

Assim que adentrou ao recinto onde uma moça gorda, que preferia ser chamada só de gordinha como se isso diminuísse seu peso, com suas indefectíveis tranças louras, duas parecendo àquelas mulheres viquingues, só faltando o chapéu com os chifres, sorria alegremente, mais que isso, tinha no rosto uma suavidade infantil, ao mesmo tempo com um sarcástico olhar de vitória. Tremeu por dentro, caminhando ao encontro dela, preparando-se para o pior. Já tivera percorrido aquele caminho milhares de vezes, eram sabe-se lá, talvez dez ou doze metros, nunca o medira, apenas supunha, mas que hoje lhe parecia mais de um quilometro. Tentou recuperar a alegria pós-acidente, um acidente de percurso que poderia mudar sua vida para sempre, parecia ser para o bem, agora lhe parecia tão mal. Caminhava mecanicamente, a passos fúnebres, tentando pensar mais um pouco, mas as vozes dos clientes se misturavam numa algazarra tamanha que nem seus pensamentos podiam ser ouvidos.

O que ele temia aconteceu. Ele perdera a aposta. Sua amiga conseguira um namorado. Foi pela internet, passara a noite toda na rede, marcara um encontro para aquela manhã, proximo ás dez horas no parque da cidade. Sua única esperança é que algo saísse errado, embora não quisesse que sua grande amiga sofresse, sabia como era duro ser só. Deu-lhes os parabéns, pediu um café e procurou consolar-se na cafeína, a derrota que sofrera lhe traria conseqüências incalculáveis no momento, mas no futuro... Passou a mão pela vasta cabeleira, já se imaginando careca. Resolveu contar sua desventura desde aquela manhã.

Ela consultou o relógio eram quase nove horas, precisava ir ao encontro de seu amor virtual. Deixou o amigo desesperado, entrou na fila do caixa, onde um homem magricelo, de cabelos despenteados, barba rala e de óculos, comprava um maço de cigarros. Paga a conta e na saída quase esbarra com este homem que parou para acender um cigarro. A estudante de medicina, que tem o sonho de se tornar psiquiatra, ainda em conflitos com seu id, que não lhe ajuda neste momento de precisão, que precisa abandonar este rotulo de encalhada que lhe cunham desde a oitava série primária. Como sempre, chegou antes do horário marcado, era britânica neste quesito. Seus atritos com a madrasta decidiram seus passos profissionais, apressou a saída de casa, indo para outra cidade cursar faculdade, e recebia uma mesada de seu pai, escondido da mulher. Ria da hipocrisia, pois para toda a sociedade posavam de casal perfeito.

Passou as mãos pelas tranças, um pouco impaciente, já era quase nove e meia da manhã e nada do seu príncipe encantado aparecer, viu o cavalo branco trotando rumo a ela, trazendo seu musculoso e valente príncipe, com uma longa capa esvoaçante, vermelha como sangue, uma coroa de brilhantes cintilando ao sol.

Acordou com um homem lhe cutucando o braço. Já lhe conhecia, um jovem, de pouco mais de vinte anos, lindo, visto nas colunas sociais da cidade, em grandes eventos. Também pudera, seu pai era um grande empresário. Esfregou os olhos para tentar ver melhor, pois só podia ser miragem. Estava em meio a uma miragem, passara a noite acordada e agora dormia no parque. Mas era assustadoramente real. Perdeu as palavras. Não conseguia expressar um aí que fosse. Logo depois já recuperada, passou a conversar naturalmente com o rapaz, descobrindo que era bem mais velho do que aparentava, era formado em direito, mas que não exercia a profissão, alegando não haver necessidade. Não demorou muito tempo, para os dois estarem discutindo, pois a garota descobriu ser ele um grande mentiroso, coisa que ela não tolerava em hipótese alguma. Ela punk, ele janota. Não deu outra, saíram um para cada lado esbravejando, ele contra a baleia chata que encontrara, ela contra o mauricinho engomado que lhe enganara.

Mimado como fora a vida toda, não hesitou em dar no pé, a garota além de ser enorme, ainda era muito brava, gostou da personalidade dela, mas não para conviver. Mas foi melhor assim, a garota lhe disse umas verdades, que todos aqueles que o rodeavam não tinha capacidade moral de lhe dizer. Por alguns instantes esteve perplexo, não iria tolerar insultos horríveis vindo duma desconhecida qualquer. Parou á uma boa distancia, perdeu alguns segundos pensando em virar-se e dizer poucas e boas para aquela viquingue metida a besta, quando um homem, magricelo, de cabelos despenteados, usando óculos, e com a barba rala, lhe pede o fogo para acender o cigarro. Acendeu o cigarro do estranho, tentando ver nele alguém conhecido, depois acendeu ele um cigarro, olhou para trás, a moça das tranças já desaparecera.

Escorado á uma arvore, refletiu as palavras duras da jovem que conhecera na internet. Deu razão á ela, precisava deixar de ser mesquinho, tinha terminado um relacionamento longo na tarde anterior, com uma mulher que ele amava, devido as suas mesquinharias, agora mesmo iria até a casa dela, chegaria lá pelas onze, nas segundas-feiras ela sempre chegava neste horário da faculdade. Desandou numa correria louca pela rua, ao sair da calçada joga longe o cigarro do homem magrelo, grita desculpas para o tal que calmamente recupera seu cigarro e segue seu caminho sem mais preocupações.

Para seu total desespero, sua mente estava vazia, carregava consigo um caderno. Precisava de uma história pronta até o meio dia, e já passava das onze horas. O garçom já lhe conhecia, o homem magricelo de cabelo sempre desgrenhado, barba sempre por fazer, óculos e fumando um cigarro, sempre pedia uma cerveja. Depois de uma batalha contra as baratas, conseguiu por seu caderno sobre a mesa, estava enrolado, dentro do bolso a manhã inteira, enquanto percorria a cidade em busca de uma inspiração. Estava bolando uma estória com quatro jovens universitários entre seus tumultuados romances, mas não encontrava um meio para ligar as histórias todas. Olhou o relógio, eram onze horas, tinha mais uma hora, mas a cabeça estava vazia. Deixou-a cair sobre a mesa.

Usando uma calcinha e um robe cor de rosa quase transparente, sua roupa favorita de ficar em casa, a garota que desistira de ir a faculdade por superstição, preparava o almoço, á tarde trabalhava como atendente numa farmácia. Toca a companhia. Coloca uma camisa de flanela, talvez deixada pelo seu ex-namorado, agora sim acertara. Abriu a porta, deparando-se com um rapaz alto, cabelo grande, estilo anos setenta, usando óculos, fios de ralos simulavam uma barba. Reconheceu-o. Era o cara que a atropelara na saída do prédio pela manhã. Ele trazia um caderno, o seu e um buquê de rosas vermelhas. A garota viquingue, de dupla trança amarela e corpulenta, desanimada da vida, vai chegando em casa, e se depara com o mauricinho de seu desastrado encontro.

A cena patética de cinema, ou novela de segunda se completa. Os quatro encontram-se no corredor do prédio. Foi uma interminável discussão. Um queria saber o que o outro fazia ali diante da namorada seminua na porta. Esta queria saber o que ele tinha com isso, pois eram ex-namorados. O outro se desculpava por não saber de nada, viera devolver um caderno, e as flores? A outra entra no assunto tentando entender o que estava acontecendo.

Minutos mais tarde, estavam os dois amigos, no apartamento dela, discutindo o bem que tinham feito, unindo um casal que nascera um para o outro, mas não tinha achado o ponto certo da união. Agora tinham reatado num típico final feliz. Ele não aceitava o preço. Queria ir para o monastério, afinal, depois de perder uma mulher como esta que encontrara, só lhe restava este caminho.

Enquanto colocava um ponto final na história, num bar proximo ao parque leste da cidade, um homem de cabelos desgrenhados, usando óculos, com a barba por fazer, deixou cair o cigarro da mão, tombou a cabeça sobre a mesa. Uma barata tentava entrar no seu ouvido. Eram doze horas.

Conto II - 06:00hs.

J B Ziegler
Enviado por J B Ziegler em 27/06/2007
Reeditado em 11/07/2007
Código do texto: T543352
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