A prima
Sempre vi a morte como uma prima distante, aquela que ainda não conhecemos, mas que um dia aparece, com ou sem aviso, e invariavelmente nos leva. Às vezes ela pode ser bem rápida, agir sem demora, mas também pode dissimular, se demorar um pouco mais, mostrar o rosto e recuar como se estivesse desistindo da idéia, para voltar mais tarde e cumprir seu papel.
Era uma semana comum. Trabalhei o dia inteiro e só sai ao final da tarde. Gostava de andar pela cidade para desocupar a cabeça, e naquele dia não foi diferente. Caminhei pelas ruas, aparentemente tentando chegar a lugar algum. Não tinha pressa, mas tinha a sensação de que não poderia demorar muito. Pensamentos confusos vinham à minha mente, um misto de idéias que surgiam do nada, idéias um tanto conturbadas que me levavam a andar sem destino. Não, eu não estava delirando. Tinha plena consciência de meus atos. Tudo que fazia tinha um sentido prático, uma razão clara e específica, mesmo que nem eu pudesse sabê-la no momento.
Entrava nesta ou naquela rua sem titubear, pois estava certo do caminho a seguir. Não observava muitas coisas. Olhava sempre reto, vez que outra detendo meu olhar em alguma casa ou estabelecimento. Foi assim que cheguei à Rua Sem Nome, como informava a placa. Tal fato chamou minha atenção, pois sempre andei por aquela rua sem nunca me preocupar com nomes, para então descobrir que o nome da rua era Rua Sem Nome.
Observando atentamente agora, eu andava a passos lentos, parando quando achava algo interessante. A confusão de idéias sumiu por um momento, e assim eu pude apreciar o que via sem sofrer a angustia de ter que andar sempre. Vi os grandes cassinos, um ao lado do outro, mas poucas pessoas circulando. Na verdade parecia haver movimento somente em um ponto, bem ao final da rua, em frente ao maior cassino. Caminhei até lá tranqüilamente, sem a pressa que outrora me castigava. Ao aproximar-me, percebi a presença de um atarracado porteiro, não anão, mas um homem bem menor que a média, com braços e pernas pequenos, porém muito fortes. Ele permitia a entrada de uns e barrava a de outros.
Sem saber muito bem o porquê, fui até o porteiro, mesmo tendo a consciência de que ele não teria razão nenhuma para me deixar entrar. Estava enganado. O porteiro abriu um grande sorriso ao me ver, como se já nos conhecêssemos há tempos, e deixou o caminho livre para que eu pudesse passar. Fiquei sem ação. Não tinha pretensão de entrar, mas a insistência do porteiro acabou por me convencer.
Já dentro do cassino, pude perceber que nada do que eu pensava que acontecia lá era verdade, pelo menos assim, à primeira vista. Ali não havia homens armados, daqueles que jogam pensando na briga do final. Os jogadores eram pessoas comuns, pessoas que eu via todos os dias. Claro, sempre tem um que é mais, digamos, bem sucedido que os outros, mas isso acontece em todos os lugares.
O ambiente era bem iluminado e não era tão barulhento como sempre pensei que fosse. E as pessoas se divertiam. Não eram como as pessoas que eu conhecia. Riam, jogavam, bebiam sem se preocupar com coisas comuns como o porre e a dor de cabeça do dia seguinte. Na verdade, as pessoas se divertiam tanto que parecia até irreal, tanto se divertiam que fui compelido a usufruir deste mundo paralelo. Aproximei-me da roleta, e resolvi apostar em um número qualquer, já que não tinha conhecimento de macetes e probabilidades de jogo, e não acreditava em sorte.
O homem girou a roleta com força. A única coisa que podia ver era um borrão de cor que girava veloz, enquanto o som da bolinha enchia o ambiente, que por um segundo ficou silencioso. A tensão tomou conta das pessoas em volta de mim, e eu não conseguia tirar os olhos da roleta. Quem viu meus olhos naquele momento jurou que eu era um daqueles fracassados que apostavam tudo que tinham de uma vez e rezavam para ganhar, pois disso dependiam suas vidas. Mas não era assim. Eu olhava sem ver, porque no mesmo compasso das voltas da roleta, comecei a lembrar das coisas que me atormentavam enquanto eu caminhava, coisas que havia esquecido há muito tempo, e que nos últimos dias resolveram voltar.
Lembrei de como eu adorava matar as formigas, e de como passei a gostar de ver os pássaros morrendo quando batiam na vidraça fechada da janela. Que coisas estranhas para lembrar, o momento não era apropriado, mas não conseguia me desligar destes pensamentos. Antes era fácil, eram apenas lapsos, mas agora era uma massa uniforme, distinta em todos os aspectos. Lembrei ainda de quando vi um gato morrendo lentamente. Fiquei preso entre horror que era aquela morte e o desejo de vê-la até o fim. E o desejo fora mais forte que o horror.
A roleta ainda girava, e as lembranças jorravam como uma fonte sem fim. Lembrei de quando decidi ser médico porque sabia que poderia ver pessoas mortas, e que talvez algumas morressem na minha frente. Podia ver nas voltas da roleta a satisfação que senti quando abri meu primeiro cadáver. Engraçado como alguns de meus colegas de faculdade, se me permitem o trocadilho, morriam de medo da morte. Muitos não conseguiam nem ver os corpos que já desmaiavam. À época eu não entendia este sentimento, por que eu próprio não o sentia. Nunca senti medo da morte.
Comecei a perceber matizes de cor na roleta, e o silêncio pesava de tal forma que todos se curvavam gradativamente. A bolinha se tornou bem visível, e algumas pessoas tinham espasmos de nervosismo. Lembrei que aprendi a provocar uma morte, se fosse preciso. A famosa eutanásia. Nunca o fiz. Gostava da espontaneidade, da ordem natural das coisas. Queria saber da morte como ela realmente era, e não como ficava quando provocada.
A roleta parou. O silêncio era doloroso. Todos esperavam a voz que o quebraria. E a voz falou. E a calmaria aparente do silêncio foi totalmente massacrada pela tempestade de gritos, aplausos, risadas que se seguiram. Por algum tempo não percebi o ocorrido, tão atordoado que fiquei com o choque brusco da algazarra. Só percebi quando os mais próximos começaram a dar tapinhas em minhas costas. Olhei para a roleta e vi a bolinha branca sobre o número que escolhi. Alguém comentou a altos brados que o prêmio era de um milhão. Não registrei isso no momento. Como um fantoche gigante, fui levado a uma sala onde um homem carrancudo me entregou a maleta, e depois até a saída, onde um grupo eufórico se aglomerava para ver o grande vencedor da noite.
Ainda estava em estado de entorpecimento quando percebi que andara até a minha rua, as idéias todas girando em minha mente, uma após outra, misturadas às lembranças. Entrei em casa. Todos dormiam profundamente, mas eu não tinha o mínimo sono. Fui para meu escritório, servi uma taça de vinho e parei rente à janela, observando a ausência de movimento àquela hora. Não lembro onde larguei a maleta, lembro que fiquei um tempo ali parado, pensando nas coisas que recordei. Naquele momento a confusão pareceu sumir por completo. Uma paz me dominou e só então percebi a decisão que tomara.
Peguei a chave que mantinha escondida em minha gaveta, abri o armário de medicamentos e retirei um pequeno frasco, segredo da época de faculdade, onde eu roubara um pouco de estricnina, veneno potente que era usado para fabricação de um medicamento comum na época.
Despejei todo o conteúdo do frasco na taça de vinho que bebia, fui até a sacada e sentei-me tranquilamente na cadeira que havia ali, bebendo de uma só vez o vinho que restara.
Sempre vi a morte como uma prima distante, aquela que ainda não conhecemos, mas que um dia aparece, com ou sem aviso, e invariavelmente nos leva.