Elogio do Quintal

Meu irmão e eu aproveitávamos a chuva torrencial para brincar de barquinhos de papel nas correntes que se formavam no quintal. De quando em vez algum gafanhoto desavisado caía em nossas garras. Era o pirata. Em tempos secos quatro tijolos serviam de traves de campo de futebol, uma algazarra só a meninada vizinha correndo de cá para acolá. O espaço grande, com mangueira, cajueiro, o poço, a antena, a caixa d’água, ideal para brincar de esconde-esconde O primeiro beijo em Rafaela naquela noite.

Foi um qüiproquó a chegada do casal espanhol. Tão afoitos ficamos os dois que perdemos todas as bolinhas de gude para as gêmeas da rua de baixo; e perder para menina significava ter a própria honra escorrida por entre os dedos. Conversa de adulto, difícil de decifrar. Boa coisa não poderia ser. Trancaram-se no escritório. A entrada no escritório só era permitida a papai, mamãe, à empregada e gente ruim. Sim, quando outra pessoa entrava lá sinal de mau agouro. E o mal prevaleceu. Casa vendida.

O tempo é imune a sofrimentos. Vai, vai, vai. Aquela redoma de verde-árvore e branco-terra sumiu na poeira dos anos. Ontem meu irmão disse que nunca se sentiu livre depois que o quintal se esvaiu, ele tomou nojo de espanhol. Exagero dele. Quando nos encontramos (o que é raro acontecer) não há outro assunto: o antigo santuário da infância. Ah, se tivéssemos mais uma chance tenho certeza que ganharíamos as bolinhas de gude das gêmeas.

Alessandro Humme
Enviado por Alessandro Humme em 29/10/2015
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