AS VACAS DE GERVÁSIO
Já eram cinco e meia, a madrugada começava a dar lugar à luz, meio na penumbra ainda e Gervásio já havia iniciado a ordenha das vacas de leite; coisa pouca, cerca de 20 cabeças.
A ordenha era feita de modo artesanal, na mão, com o peão sentado num banquinho de madeira pra tirar leite, ou simplesmente banquinho de leite, bezerro amarrado na pata dianteira com os olhos esbugalhados, encarando Gervásio enquanto aguardava o momento em que seria permitido sua primeira “mamada” do dia. Gervásio levanta-se e desamarra o bezerro e no momento em que despejava o leite no grande latão percebe a chegada esbaforida de Fabrício, garoto de 12 anos que tinha o costume de ir buscar o leite toda manhã e, que morava na Vila Grotão, na direção oposta da cidade, local em que Gervásio não fazia entrega de leite.
- Seu Gervázi... Passando pela chácara do uósxitu, “vi ele” sendo levado pela polícia. Parece que foi preso.
Gervásio termina de despejar o leite.
- Humm... É... Se a polícia o estava levando, provavelmente estava sendo preso mesmo... – diz com certo sarcasmo - Também, o que esse tal de Washington apronta por aí, num é brincadeira...
- Ouvi o pessoal por ali dizer que alguém tinha ‘entregado ele’ lá na delegacia. Parece que ele era responsável por um montão de droga que foi pego pela polícia, e que teria outro tanto aqui na chácara dele.
- E a mulher dele? Foi presa também?
- Parece que ela não estava lá. Não foi encontrada. Deve “de” ter fugido.
- Bom, de qualquer forma, isso não me interessa. Apesar de sermos vizinhos e mantermos certa cordialidade, nunca gostei daquele sujeito; não me inspira confiança. E se for culpado de alguma coisa, que pague pelo seu erro - Eleva os ombros em sinal de pouca importância - E vamos trabalhar que é o que importa. Dá cá esse vasilhame.
Terminado a ordenha, Gervásio libera as vacas pro pasto dos fundos, pouco depois sai pra entrega do leite, tinha que ir cedo pra fugir da fiscalização. Tinha clientela fiel, que gostava do leite puro. Cidadezinha pequena ainda não se adaptara totalmente às normas de cidades grandes. Ao voltar, Justina lhe diz que Seu Álvaro, outro vizinho, tinha vindo informar que a porteira dos fundos, com saída pra estrada das posses estava aberta e por pouco as vacas não haviam saído. Disse ainda que havia fechado e amarrado com um arame.
- Diacho!! Deve ter sido algum moleque que veio roubar manga e deixou aberta de propósito. Mas “deixa estar”! Vou deixar preparado a espingarda com arroz e sal e vou sapecar os fundilhos deles da próxima vez.
Sempre atento a novas incursões dos “ladrões” de manga, passam-se alguns dias com Gervásio seguindo normalmente em sua rotina na lida com o gado. Porém... Bem, ele nota que as vacas, apesar de terem aumentado a quantidade de leite, não se importavam tanto com suas crias, perdendo aquele excesso de zelo. Os bezerros cada vez mais ávidos pra mamar.
Cada vaca respondia pelo nome, ou pelo menos pelo tipo de som sabia identificar ter chegado o momento em que sua cria seria libertada do chiqueiro para a ordenha. Ultimamente elas já não mais respondiam a esse estímulo, tendo o peão que conduzir os bezerros às suas mães. “Diacho! Que será que ta acontecendo com essas vacas? Parece que vão desmamar... Mas tão cedo? Num pode ser. Senão num teria aumentado a produção de leite...”
Fabrício chega pra buscar o leite e pega Gervásio absorto em seus pensamentos.
- Dia, Seu Gervazi.
- Bom dia Fabrício. Chegando mais cedo. Bom ver sua animação.
- É... Ultimamente tenho tido uma leseira no início da noite, indo dormir logo cedo. Em compensação tenho acordado mais cedo, com a corda toda pra vir buscar o leite. Deve ser a por causa de meu novo emprego, como lavador de carro lá no posto.
- Sinal que quem não tem medo do trabalho. Isso é bom num homem de brio.
- O senhor vai à cidade hoje, entregar o leite?
- Claro! Hoje é domingo, dia de missa. Um homem de bem não pode se esquecer das coisas de Deus. Isso é sagrado. Faço a entrega do leite e aproveito pra ir à igreja agradecer pelo que somos e recebemos Dele. E pra não haver problema, a primeira entrega é do padre, que é pra não atrasar o horário da missa.
Mais tarde, na cidade, Gervásio recebe mais encomenda de seu leite e queijo. Como nem ele nem Justina gostavam de leite puro, todo excesso de leite era destinado à fabricação artesanal de queijo.
- Modéstia à parte, o queijo já era bom, mas ultimamente temos acertado a mão. O queijo tem feito bastante sucesso.
Conversava com todos seus clientes, e ultimamente cada um tinha uma estória estranha a relatar, coisas que fugiam de suas rotinas. “Pelo menos tenho coisas novas pra ouvir, e não sempre as mesmas estórias” – pensou ele. De um ouvia elogios aos seus produtos, uma nova encomenda de queijo, um menino com leseira ali, outra mais ativa dali, outra com vômitos, fraqueza, sem apetite pra uma verdura, preferindo o leite.
– Pelo menos isso - diziam os clientes – Leite é sabido que é saudável.
Alguns sentiam melhora de sintomas após tomarem leite. E assim ele ia colhendo todo tido de história contada por seus clientes. O queijo fizera tanto sucesso que havia encomenda até de municípios vizinhos. Encontrara-se com Dona Raimunda e seu marido, um senhor de quase noventa anos de idade. Ela estava puro sorriso, de orelha a orelha. Toda assanhada ela diz:
-Eita que esse leite é dos bons. Meu marido tá com a corda toda...
Gervásio não entende direito e nem dá muita atenção.
Durante a missa, o padre que sempre fora sério, parecia bem solto. Em sua pregação, se mostrou bem mais liberal, com frases do tipo “vamos soltar a franga”, “vamos ser livres”, “deixa tudo acontecer”, “nem tudo é pecado”... Algumas pessoas acharam estranho, mas a maioria compartilhava da “alegria” do padre, e se exaltava durante a pregação, inclusive o delegado e sua esposa.
O próprio Gervásio, apesar de manter sua postura reservada, sentia-se bem disposto. Notara que isso acontecia após comer de seu queijo com café. Agradecia a Deus por sua produção estar fazendo tanto sucesso. Volta mais cedo pra casa e mal solta o animal da carroça, entra em casa procurando por Justina, buscando um chamego.
- Eita homem! Tá de dia...
- E daí? Assim é que é bom!
- Arre que você tá que tá hein!?
Naquele dia, ao apartar os bezerros ele sente falta de uma de suas vacas com sua cria. Sai pelo pasto dos fundos em busca dos fujões, encontrando-os próximo da aguada. Nota também que a cerca ao fundo esta com os fios partidos.
- Diacho! O que será que aconteceu pr’aquela cerca estar arrebentada?
Antes de atravessar a pequena pinguela ele nota alguma movimentação na chácara ao lado, do tal Washington. E logo depois percebe a aproximação de um policial, vindo em sua direção, encontrando-se com ele no meio do caminho.
- Bom dia – cumprimenta o policial.
- Dia seu moço.
- Quem é o senhor e o que está fazendo por aqui?
- Uai sô! Eu sou o caseiro dessa chácara aqui. Eu tava campeando uma vaca quando vi essa cerca arrebentada. Foram vocês que abriram aqui pra passar?
- Eu to chegando agora por aqui. A gente entrou pela entrada normal, do outro lado. Vimos o rastro de um triciclo e segui até aqui. Provavelmente quem estava nele é que arrebentou os fios da cerca. O senhor não viu nada acontecendo por aqui alguns dias atrás?
- Não. “Num vi nada não”. Diacho sô! Será que foi a mulher do Washington que fez esse estrago todo?
- Ao que tudo indica, sim. Embora próximo da cerca arrebentada esteja toda pisoteada pelo gado, tenho certeza que ela passou por aqui, fugindo, no dia da prisão do marido.
De longe Gervásio pode observar a movimentação de um trator, juntando algumas ramas em uma área aberta. O delegado da cidade acompanhava tudo, junto com alguns agentes da Polícia Federal.
- Olha moço. Espero que minhas vacas não tenham estragado qualquer coisa por aí. Só estou percebendo agora que elas pastavam por aqui. Mas se tiver causado qualquer prejuízo pode dizer que eu pago.
- Não se preocupe com isso. Na verdade seu vizinho tinha um bela plantação de “canabis” ali. Mas já estamos dando um jeito naquilo.
- Uai, sô! Num sabia que ele plantava cana “não”! Sabia que ele tinha um barracão de onde saía muito barulho... Era um alambique?
O policial sorri.
- Não, num era nada não – e apontando pra cerca – Melhor arrumar isso aqui logo pro seu gado não passar pra cá.
- Só vou pegar as ferramentas e já conserto tudo isso.
Passou-se algum tempo e, ainda que a maioria dos sintomas tenham desaparecido, todos os clientes continuaram fieis aos produtos de Gervásio, sendo que a maioria preservou os novos hábitos adquiridos naquele período. O padre continuou a pregar a liberdade, Dona Raimunda apresentava-se sempre com seu sorriso largo, outras clientes continuaram mais soltas e acessíveis... enfim, todos continuaram se mostrando como realmente eram e tinham receio ou vergonha de se deixarem transparecer e que só se manifestaram assim, graças aos milagrosos produtos do leite tirado por Gervásio
Logo depois, quando Gervásio me contou toda a história, tentando entender o acontecido, eu também sorri. Achei melhor não entrar em detalhes.
- Melhor deixar quieto, Gervásio. Vizinho desordeiro, melhor deixar pra lá.
Gervásio foi cuidar de seus afazeres e eu fiquei ali, matutando. Havia parado de fumar a custa de promessa. Por isso gostava de ir ao sítio, respirar ar puro. E lá no fundo, mas bem lá no fundo mesmo, logo abaixo da lerdeza, no cantinho, ao lado da sem-vergonhice, uma sensação de perda por, antes, não ter ido passar uns dias no sítio, comer queijo fresco, tomar um leite tirado na hora, respirar ar puro... “Que lástima!!!”
Walter Peixoto
Set/15