Novo Amapá, um caminho sem volta.
Seis de janeiro de 1981, às onze e cinquenta da manhã, Dona Maria e suas três filhas despediam-se no porto de Santana de Raimundo, seu Marido e pai das meninas, pois iam passar uns dias com a família dele, em Laranjal do Jarí.
- Até a volta pai. Dizia dona Maria. Um beijo resumiu todo o sentimento, cujo efeito fora despertado pela algazarra das meninas.
- Pai, pai, pai...
- Calma filhas, uma de cada vez. Eram beijos, abraços e brincadeiras, como numa festa sem par. Assim outras e outras famílias que vinham chegando gradativamente.
Senhor Raimundo cortejou-as até a entrada do barco, conhecido como Novo Amapá. E ainda pode responder a alguns conhecidos, que já estavam armando as suas redes, pois o lugar era disputado por muitos.
Ainda no porto, o senhor Raimundo encontrou o senhor Domingos, que trabalhava na Icomi e viera deixar a sua sogra, que ia de volta a Monte Dourado, destino final da embarcação. E proseando os dois falavam:
- Ei Domingos, quando você vai pra Serra?
- Estou de folga hoje e amanhã, vim deixar dona Mimim aqui e já retorno pra casa, pois estava a mais de um mês fora, nas minas. E tu?
- Eu! Mais tarde prá lá. O Carro vem me buscar as oito e meia da noite.
- É. Puxa! Mas e ai. Quem vai ficar na casa?
- Por enquanto, acho que a dona Telma, com a sua filha Waneza. Elas gostam de estar lá.
- E a tua mulher?
- Ah rapaz, a minha mulher tanto que fez, que eu acabei concordando que ela viajasse para passar uma semana com a minha mãe, lá em Laranjal.
- O meu coração não pedia, mas sabe como é. As meninas estão em férias e a mulher, quando pega com uma coisa.
- Ah Raimundo, mulher é assim mesmo. A minha só não veio com a mãe porque o caçula está doente e lá o médico é mais precário. Pelo menos aqui temos a companhia, que faz de um tudo.
- É verdade Domingos. Se não fosse a companhia.
- Ei Raimundo, esse barco parece que tem muita gente, né?
- É Domingos. Já pensei em falar com alguém, mas nem vejo a Capitania por aqui.
- Essa é difícil, pois eles só passam por aqui. E isso, quando vem.
- É mas, não haverá de acontecer nada. Inclusive ouvi falar, que ele foi para reforma e ganhou mais um motor ou sei lá o quê? O Fato é que ele levava um dia e mio pra chegar a Monte Dourado e agora fará em menos tempo.
- Isso eu não sabia.
- É estão dizendo que ele deu uma reforçada na carcaça.
-Ah, então já fico mais aliviado. É sinal que ele está mais seguro.
- Pois bem Domingos. Tu vais ficar ainda ai?
- Vou por que?
- Não nada, é que eu tenho que fazer uns ajustes lá em casa e como a mulher não está, vou aproveitar pra limpar a caixa de água, o banheiro e cortar umas árvores. Afinal, além delas, vou ter outras pessoas tomando conta da casa e vou passar alguns dias fora também.
- Então vá meu amigo. Abraço.
Saindo dali Raimundo, com uma certa quantidade de tripulação na cabeça, a medida que caminhava via chegar mais pessoas. E como em Belém já trabalhara em embarcação se preocupou e disse consigo mesmo.
- Não sei não, mas parece que tem muita gente. E a embarcação não é lá essas coisas, mesmo com o reforço. Será que tem salva - vidas pra todos?
Depois desse pensamento procurou não conjecturar mais e se auto repreendeu.
- Caramba estou pensando e imaginando demais. Melhor deixar pra lá. Se a mulher tivesse aqui ela logo iria dizer que eu já estava agourando.
E sorrindo seguiu pra sua residência pensando em seus trabalhos domésticos.
No porto o alvoroço anunciava a despedida de pessoas, com alegria ou tristeza. O barco estava sendo abastecido com cargas e como era comum, as pessoas de fora e de dentro da embarcação apenas assistiam e não questionavam a lotação de pessoas ou a quantidade, o peso da carga embarcada, se era ou não adequada.
Dona Creuza, quando lá chegou, com as suas duas filhas já atrasadas, minutos antes da embarcação sair, com os seus bilhetes de passagens entregando ao cobrador na entrada, teve um segundo de si e olhou para dentro da embarcação e viu a quantidade de pessoas e logo disse:
- Ah meu Deus esse barco está acima da lotação.
E o despachante logo de pronto retrucou:
- Acho que a senhora está impressionada com as pessoas amontoadas, mas deixe o barco sair e todos se acomodarem, que a senhora vai ver que está tudo normal.
- Não meu filho. Não vou. Vou voltar pra casa com as minhas filhas. Obrigado.
É como o despachante falara, muitas pessoas da região amazônica estavam acostumadas a andar nos barcos, meio de transporte regional, sem questionar os itens de segurança. Os órgãos de fiscalização passaram mais cedo autorizando aquela viagem e pelo visto era comum, como comum é ainda hoje se observar, ou melhor, não ser nenhum pouco mais criterioso, quando a carga principal é nada mais, nada menos que a vida. A todo instante em qualquer parte do país há a negligência, a omissão do Estado, correligionária da corrupção de pessoas, entre outras qualificações extremamente absurdas, quando o quesito prioritário em qualquer Democracia é o bem estar social. Passados exatos trinta e quatro anos e ainda na Amazônia, no Brasil em si temos a mesma cumplicidade, no que diz respeito a banalizar os serviços, os direitos e tantos outros pontos, quase sempre testemunhados pelos nossos jornais, TVs, rádios e revistas. E nós seguimos nos omitindo das nossas responsabilidades.
Assim naquela tarde, às 14hs, o barco visivelmente lotado, com aquela carga dentro dos porões desatracava do porto de Santana rumo a Monte Dourado, entre alegria de ir, com acenos e o sorriso desenhado na face e a tristeza em deixar amores, amigos ou o local. Domingos que permaneceu até a partida apenas acenou a sua sogra, que retribuirá do camarote em que estava.
Dona Maria, deitada na rede com uma das filhas pedia as outras duas que se acomodassem na rede ao lado. Enquanto o Capitão insistia em pedir que todos se acomodassem em seus lugares, para que o barco seguisse com o devido equilíbrio.
De um a dois apito o barco anunciava a sua saída das imediações de Santana. E algumas pessoas, logo se dirigiram ao bar para conversarem e se distraírem, pois a viagem iria durar até a noite.
Dona Creuza saiu do porto, deixou as filhas em sua casa e foi até a Capitania denunciar o que vira, mas pouca atenção deram aquela senhora. E o barco rumou ao seu destino assegurado pela negligência humana.
Lá pelas 20hs:30min se aproximando da foz do rio Cajarí o senhor Carlos levantou-se para ir falar com o Comandante seu conhecido, que estava no camarote jogando baralho com dois marujos. E lá chegando falou:
- Posso entrar?
- Mas é claro. Puxa que satisfação Carlos reencontrá-lo aqui.
E nesse ínterim, quando o Comandante estava apresentando os dói colegas de viagem e tomou as mãos a garrafa de café pra oferecer um gole ao conhecido, o barco deu um tombo para um lado e para o outro. E Carlos perguntou se aquilo era maresia e o comandante rindo com ironia disse:
- Nessa região Carlos, estou acostumado a navegar é não tem maresia.
Simultaneamente a resposta do comandante em sua rede, o senhor Paulo, que estava em frente a dona Mimim olhou em seu relógio para falar-lhe a hora:
- Senhora são exatamente 20hs45min.
Quando o senhor terminou de falar a embarcação tombou e ele, como muitos foram parar dentro d’ água. As luzes da embarcação apagaram e a escuridão da noite, que se fazia identificava só os gritos e o desespero no silêncio das águas barrentas e matas ao redor. Ninguém sabia o que fazer, quem salvar e pra que direção nadar, tudo estava muito confuso e a embarcação afundava gradativamente. No coração da Amazônia mais uma vez a imprudência alheia, a ganância, a corrupção e a negligencia, bem com a falta de compromisso com a sociedade escrevia nas páginas da história um triste destino.
Paulo e Carlos, conseguiram se desvencilha daquela turbulência e ainda sem rumo certo, sem entender direito o que acontecera saiam das águas a buscar socorro. Paulo fora ao Jarí, enquanto Carlos rumou para Macapá na tentativa desesperada de encontrar ajuda.
No outro dia, quando chegou a Santana Carlos procurou os órgãos do Estado e um radialista que estava de plantão no palácio do governo tomou conhecimento, e se interessou pelo caso e começou a noticiar a lista de passageiros, que constava somente cento e quarenta e seis pessoas.
Descobrindo-se depois que haviam cerca de seiscentos e noventa e seis pessoas e uma tonelada de mercadoria numa embarcação que tinha a capacidade para quatrocentas pessoas e apenas meia tonelada de carga.
Na época e ainda hoje se pergunta pela justiça, pelo compromisso com a sociedade e o que mudou na região após aquele acidente trágico, mas a resposta, ainda naufraga na indignação de quem perdeu o seu ente querido e no silêncio que permeia cada novembro, cada janeiro, cada dia que se vê, passados mais de trinta anos, o descaso com que se tratam os cidadãos de um país como o nosso. E para perpetuar o verdadeiro teor de como se é realmente tratado, a revista “Eleja” publicou que o a embarcação, que naufragou, foi retirada do fundo do rio Cajarí e já está em pleno vapor noutro lugar, com outro nome e com novos passageiros.