Esta noite
Esta noite
Ele acabara de discursar para platéia de 500, talvez 550 pessoas. Foi ovacionado. Uma noite abafada de outubro, a iluminação ajudava a esquentar o local. Era seu trabalho, representava pessoas, precisava motivá-las. No início de 2001 seu corpo apresentou sinais de distúrbios, o que o levou a consultar especialistas e realizar exames. Em instante algum houve divergências no diagnóstico - uma doença grave, não muito comum, capaz de ocultar os sintomas durante longos períodos até começar a exibir as garras. Sua esposa é cirurgiã torácica. Ele desceu do palco, indo a seu encontro. Casaram-se em 1975, as crianças chegaram de bate pronto. Com os primeiros fios de cabelos grisalhos passou a confidenciar aos íntimos que pagar a universidade dos filhos era tarefa de gente madura, gente séria. Não dizia isso com orgulho. Dizia apenas. Uns não podem, outros não querem, outros nem pensam nisso. Quando podem, e o fazem, "bem, afirmava ele, é empreita da maior seriedade". Não conheceu nenhum guerrilheiro durante a ditadura. Conheceu pessoas que trabalhavam. O Manoel, que vendia automóveis, novos, semi novos e usados. Expandiu. Perdeu tudo, ganhou de novo. O Carlos, dono de um restaurante de bairro que chegou a ter filiais noutras cidades. O Eliseu, que aposentou o diploma da politécnica e foi criar cabras em Itapetininga, chegou a exportar queijos nos anos 90, depois teve um problema cardíaco. A platéia ainda aplaudia. Afrouxou a gravata e pensou na vida, coisas rápidas sucediam à mente, amigos de longa data, os filhos, os afazeres de amanhã. Aos 65 anos, ainda motiva pessoas. Sua esposa veio com um copo de água. Ele recusou, disse que estava ótimo, só um pouco cansado. Ela tornou a oferecer a água. Em seus lábios um sorriso meigo, em seus olhos um tênue marejo. Miraram-se. Ele indagou: como você sabe que eu não consigo segurar o copo? Ela manteve a mesma expressão ao dizer: sou médica. Ele balançou a cabeça. Sentaram-se numa poltrona, atrás do palco. Ela passou a mão em volta de seu ombro e explicou que daqui para frente esses sintomas irão recrudescer. Ele assentiu, então disse: ainda temos esta noite, certo?
(Imagem: Celestografia de August Strindberg)
Esta noite
Ele acabara de discursar para platéia de 500, talvez 550 pessoas. Foi ovacionado. Uma noite abafada de outubro, a iluminação ajudava a esquentar o local. Era seu trabalho, representava pessoas, precisava motivá-las. No início de 2001 seu corpo apresentou sinais de distúrbios, o que o levou a consultar especialistas e realizar exames. Em instante algum houve divergências no diagnóstico - uma doença grave, não muito comum, capaz de ocultar os sintomas durante longos períodos até começar a exibir as garras. Sua esposa é cirurgiã torácica. Ele desceu do palco, indo a seu encontro. Casaram-se em 1975, as crianças chegaram de bate pronto. Com os primeiros fios de cabelos grisalhos passou a confidenciar aos íntimos que pagar a universidade dos filhos era tarefa de gente madura, gente séria. Não dizia isso com orgulho. Dizia apenas. Uns não podem, outros não querem, outros nem pensam nisso. Quando podem, e o fazem, "bem, afirmava ele, é empreita da maior seriedade". Não conheceu nenhum guerrilheiro durante a ditadura. Conheceu pessoas que trabalhavam. O Manoel, que vendia automóveis, novos, semi novos e usados. Expandiu. Perdeu tudo, ganhou de novo. O Carlos, dono de um restaurante de bairro que chegou a ter filiais noutras cidades. O Eliseu, que aposentou o diploma da politécnica e foi criar cabras em Itapetininga, chegou a exportar queijos nos anos 90, depois teve um problema cardíaco. A platéia ainda aplaudia. Afrouxou a gravata e pensou na vida, coisas rápidas sucediam à mente, amigos de longa data, os filhos, os afazeres de amanhã. Aos 65 anos, ainda motiva pessoas. Sua esposa veio com um copo de água. Ele recusou, disse que estava ótimo, só um pouco cansado. Ela tornou a oferecer a água. Em seus lábios um sorriso meigo, em seus olhos um tênue marejo. Miraram-se. Ele indagou: como você sabe que eu não consigo segurar o copo? Ela manteve a mesma expressão ao dizer: sou médica. Ele balançou a cabeça. Sentaram-se numa poltrona, atrás do palco. Ela passou a mão em volta de seu ombro e explicou que daqui para frente esses sintomas irão recrudescer. Ele assentiu, então disse: ainda temos esta noite, certo?
(Imagem: Celestografia de August Strindberg)