Put the blame on Mane (ou quando Rita descobriu o Brazil)

Disseram que ela precisava aprender português. Ela começou a estudar. Sempre foi uma mulher obediente.

Começou a aprender português para poder ter um encontro com uma pessoa que disseram ser muito importante para ela. Inicialmente, precisava aprender poucas palavras, o que iria contar mesmo era a emoção, a surpresa, quando ele a reconhecesse. Sem ele, ela não poderia partir. Sem ela, ele não partiria.

Ele sabia da sua existência, mas nunca a vira pessoalmente. Agora, depois de tanto tempo, vai ficar difícil reconhecê-la quando ficar frente a frente com ela. Ela nunca soube da existência dele. Ele era apaixonado por ela, mas a detestava. Para tudo há de existir um jeito, até porque não dizem que existe um tal jeitinho brasileiro,que Deus é brasileiro e coisa e tal? Ela aprendeu essas peculiaridades na aula, quando soube que ele não era português, mas brasileiro. Sim, ela até perguntou espantada:”But, mas no Brasil não se fala espanhol? Espanol yo hablo! Me gusta mucho Carmen Miranda!!” “Não Rita, espanhol não resolve nada, apesar dele já ter passado por Buenos Aires. A Carmen nasceu em Portugal, foi para o Brasil menina e por favor, esquece essa história de Deus ser brasileiro, ainda mais agora que o Papa é argentino.”

Ela pensa que vai ser mais fácil ele segui-la, conforme parece ser o desejo de todo mundo, do que ela realmente aprender português. Essa língua que lembra o espanhol , se parece com francês e escorre pela boca da gente como se fosse açúcar, toda melosa, toda dengosa, seria perfeita para algumas cenas de amor, que ela vagamente tem idéia de ter assistido no cinema. Algumas palavras parecem que nunca vão terminar, mãoooooooooooooooo, mãeeeeeeeeeeeeeee . E mamãoooooooo? Quem inventou esse til ? Alguém disse ter visto um filme onde o ator dizia que o português era a língua dos passarinhos.

Ele na realidade poderia ter sido muito parecido com ela. Poderia ser disciplinado, receber orientações!Mas não! No máximo ele só fazia as marcações e queria mandar em todo mundo. Um astro, um show, e que temperamento!! Cabelos curtos, mas tem muitas semelhanças com os dela. Os cuidados com o cabelo, um luxo só. Bem, agora está meio difícil de reconhecer, mas os dela também já não estão com aquela performance toda; se depender do cabelo, eles vão se entender perfeitamente. Ela nem sabe por que tem que cuidar tanto dos cabelos. Ele sempre muito questionador, e ela... bem.. pensando bem, ela calculava que nem sabia conjugar esse verbo. E o que fora a sua vida inteira, senão um eterno ensaio e erro, obedecer, seguir marcações, ser dirigida, satisfazer ao pai, ao diretor, ao encenador, aos músicos, aos costureiros, aos cabeleireiros. Ah.. os seus cabelos! Eles eram uma história a parte. Será que algum dia pertenceram realmente a ela? Dormia morena, acordava ruiva ; começava o ano com os cabelos castanhos e terminava com eles louros. Curtos jamais, no seguro sempre. Eles precisavam seguir o ritmo das marés, ondulantes, ao redor da sua cabeça lunar. Mas, por que ela está pensando nisso? Que história é essa de marcações, encenador, diretor? Quem é ela afinal?

Ela sente uma leve dorzinha de cabeça e pensa: “Chega, eu tenho é que estudar português”.

Ela terminou hoje a aula setenta e nove de português e já está muito avançada. Vai encontrar com ele hoje .Tentar convencê-lo a ir com ela. Ir com ela? Mas ela nem sabe para onde tem que ir, como poderá pedir a ele para que a acompanhe? Ele vai achar tudo muito estranho! Ela própria está confusa e muito, muito curiosa. Afinal, terá que ir para onde? Dizem que é para ela não se preocupar, tudo vai ficar bem.

Só tem um probleminha. “Oh !!! My God!! sempre tem um probleminha nesses assuntos brasileiros”!!!

Ele não vai querer acompanhá-la, isso é quase certo, devido a ela ser quem é. Mas ele tem que superar isso; dizem que ele tem que ultrapassar essa fase; de alguma forma, deixá-la para trás e seguir com ela.

Ela entende menos ainda. Como será possível ao mesmo tempo deixá-la e seguir com ela? Isso cheira a filme existencialista. Ela balança a cabeça, imaginando como o diretor vai resolver essa questão. Lembra de Casablanca; a cena do avião, a mocinha partindo, ele ficando. Ou seria o contrário? Já não lembra muito bem, pois nos últimos tempos sua memória falhou terrivelmente e só agora começa a voltar. Será por isso que não sabe quem é ele? Dizem para ela que não. Afirmam que ela nunca o viu mas percebe a sua existência. Ela sorri e lembra de uma musica ensinada na aula de português :“deixa a vida me levar”, e ela pensa: “Deixa a morte me levar”...

Dizem que por causa dela ele já xingou meio mundo. “Então ele me conhece, ele me ama?” “ Não necessariamente Rita. Atenção Rita, ele está chegando. Ali, sentado naquele banco de pedras, perto do lago. Pode ir lá e conversar com ele”. “Mas, qual é o nome dele?” “Voce vai saber quando sentar perto dele”. “Ah! Que coisa complicada, falar com uma pessoa que eu nem sei o nome e nem sei quem é...” “Vai Rita . Vai...”

Ela caminha devagar em direção ao lago e senta perto dele. Imediatamente sente uma emoção que percorre todo seu corpo. Ele realmente parece não reconhecê-la, mas ela sabe instintivamente, que é importante para ele. Agora percebe que a sua vida tem urgências com a dele. Seu olhar está perdido no tempo, triste e melancólico. Ela toca no seu ombro e sem que se de conta do que está acontecendo, o chama pelo nome: “Heleno!!”. Os dois se surpreendem. Ela, por saber o nome dele,ele, não acreditando no que está vendo. Olha para ela e pergunta incrédulo: “Gilda?” Ela olha nos olhos dele, profundamente, e se vê, dançando, linda, num vestido provocante, ombros nus, retirando languidamente uma luva , com todos inebriados à sua volta, com a sua atuação, cantando Put the Blame on Mame. A surpresa a faz falar mais do que o aprendizado de português: “Mas.. mas... eu sou ela, eu sou Gilda, eu sou Rita Hayworth e você... voce também é Gilda”!!!! Ele olha para ela desesperado e grita ; “Nãoooo!!! Naooo!!, Eu não sou Gilda!! Eu sou Heleno, ouviu bem? Heleno. Heleno, mineiro,velho, acabado, louco varrido, mas muito macho”! Ela se atropela no português e balbucia: “My dear , please... isso agora não tem importância.Olhe para mim, olhe bem nos meus olhos, como eu olhei nos seus para que você possa ver quem você é de verdade”. Ele a encara com perplexidade e espanto, os olhos fora das órbitas, e vê, dentro dos olhos dela, ele, lindo,másculo, cabelos sedosos e perfumados,vestindo um uniforme de futebol, uma estrela solitária no peito, o estádio de futebol em peso o aplaudindo. Do seu peito sai um grito de felicidade; “Eu sou Heleno. Eu sou Heleno de Freitas”!!!! . “Sim, você é Heleno de Freitas, e eu sou Rita Hayworth e todos nós, homens, mulheres, diretores, atores, maquiadores, platéia, treinadores de futebol, americanos , brasileiros, eu e você, criamos Gilda, a mulher e o homem inesquecíveis.Vivemos com todos eles as alegrias e as fantasias do cinema , do futebol e da vida .” Ela levanta e estende a mão para ele.”Venha meu querido, agora já podemos partir, nós nos encontramos!”. Ele segura na mão dela e pergunta: “Partir? Partir para onde?”

“Não sei ainda exatamente,my dear ; mas nós podemos descobrir juntos. Provavelmente poderemos ir para onde quisermos.” Ele oferece o braço à ela, ela sorri para ele e começa a cantar baixinho só para ele:

“Put the blame on Mame

Mame kissed a buyer from out of town

That kiss burned Chicago down

So you can put the blame on Mame, boys

Put the blame on Mame.”

Obs.: esse conto é uma homenagem ao grande jogador de futebol brasileiro Heleno de Freitas. Desde quando soube da sua biografia senti uma vontade muito grande de que ele pudesse, de alguma forma, encontrar-se com Rita Hayworth, uma grande estrela do cinema americano, que protagonizou o filme Gilda, que era o apelido de Heleno, o qual os adversários usavam para azucriná-lo. Espero, que mesmo na fantasia, tenha conseguido transmitir minha admiração pelo trabalho dessas duas personalidades que jamais se conheceram na vida real e foram tão importantes na sua época para nos alegrar a alma.

Gelson Costa Lima
Enviado por Gelson Costa Lima em 19/10/2015
Reeditado em 22/08/2017
Código do texto: T5419367
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