Inpirado em uma história real.
Todos os dias, mas todos os dias mesmo, Josilene chegava às sete da manhã na casa de Dona Maria Aparecida para arrumar a casa, e ajudar nos afazeres domésticos. Poucas vezes tirava folga, poucas vezes ia de má vontade – até mesmo nos dias frios e de chuva fina, que atiçam a preguiça – sempre estava lá.
Acordava cedo, saía de Marechal Hermes, ia ajeitando seu coque no trem, lia as noticias no jornal barato que comprava ao sair de casa, e ainda tentava cochilar... Porém, os vendedores gritando por suas mercadorias não permitiam essa façanha. Era uma mulher bonita, apesar de não se apegar muito à maquiagens fortes, roupas exuberantes ou com decotes. Era uma mulher simples. Com coração enorme.
Dona Maria cuidara dela e de sua mãe quando criança, e se tornou uma espécie de avó que a vida não lhe dera. E, desde então, após crescer e se formar – também com a ajuda da avó emprestada – passara a fazer de tudo pela senhora de quase noventa e cinco anos. Josilene era apaixonada pela sua avó. E era capaz de realmente tudo para o bem-estar. Os filhos de Dona Maria moravam no Maranhão, donos de uma empresa de materiais plásticos. Mandavam dinheiro para a mãe, contudo, só visitavam nas épocas festivas de final do ano, quando a cozinha era recheada com comidas tipicamente natalinas e mineiras.
Com mais de vinte anos trabalhando no mesmo lugar, a moça, que não era casada , nem tinha filhos, passou a fazer parte da rotina do prédio onde trabalhava/morava. Conheceu os zeladores, cada um mais diferente e engraçado que outro. Afinal, depois de vinte anos ali, o prédio mudara de empregados por quase quinze vezes. E Josi, fizera amizade, e quase se apaixonara, por todos. Porém, nunca dormira com nenhum.
Conhecera todos os carteiros, os vizinhos, os garis, o moço que consertava o interfone, o padeiro que entregava pizza na casa da solteirona do 307, a dona Fabíola, ex-atriz da Globo, e que agora se escondia no subúrbio, fugindo da fama de mulher fútil que recebera nas revistas que Josi comprava. E Josilene ainda fizera amizade mesmo, com outros vizinhos, como Seu Renato, o síndico do prédio. Dona Suellen, a manicure que sempre lhe dava descontos e atendia em casa. Com Seu Fábio, que prestava socorro quando Dona Aparecida tinha crises asmáticas, e até mesmo com o homem mais mal-humorado do local, um tal de Seu Francisco, que do alto de seus quase dois metros de altura, e dos setenta anos, tinha muita história e muito mal-humor para distribuir com quem lhe perturbasse o juízo, principalmente os adolescentes que ficavam conversando (ou berrando, segundo ele) bem debaixo da janela do seu apartamento, o 104.
Porém, nesses vinte anos, Josi fizera amizade com uma pessoa em especial. No andar de cima, bem em cima do apartamento onde trabalhava/morava, morava dona Edwiges. Uma senhora pacata, que morava sozinha no 201. Não completamente sozinha, pois com ela moravam dois gatos que ela adotara na rua. Para Josielene, aquela mulher lhe transmitia uma calma imensa. E sempre estava ali, num importava a hora do dia, fumando sentada no último degrau do primeiro lance de escadas de mármore da entrada 3. Fumava muito. Qualquer que fosse a hora do dia, lá estava aquela senhora rechonchuda, com seus vestidos molhados próximo à barriga, sentada e fumando. O local onde ela ficava era justamente em frente a porta do apartamento 101. E sempre que Josi chegava, ou tinha que ir na rua, lá estava. O cheiro de cigarro já nem a incomodava mais. Edwiges dizia que fumava na escada para que aquela fumaça cancerígena não intoxicasse seus gatos.
Muitas foram as vezes que Josi passou um café, e sentou-se ali com aquela senhora solitária.conversavam sobre o tempo, sobre a novela e o vilão sedutor. Sobre comerciais antigos da televisão, sobre o preço do tomate, da banalização do amor, sobre ex-namorados, e sobre os tempos de infância. Dona Edwiges aparentava ter uns cinquenta anos, porém, suas histórias lhe conferiam uma sabedoria impressionante, e isso cativara a bondosa moça.
E assim foi por quase quinze anos. Josi chegava, falava com Edwiges. Depois na hora do almoço levava um pedaço de sobremesa para ela, e na hora de ir embora, também passava no apartamento de cima para saber se tudo estava bem. Uma amizade serena nasceu ali. E era uma das coisas que fazia aquela mulher simples de Marechal Hermes ir trabalhar com gosto, com pessoas que podia dizer que amava. Era uma coisa fraternal. Um espírito de família que tomava seu coração quase que todos os dias. Josilene, apesar de algumas dificuldades financeiras, se considerava uma mulher feliz.
Então, Dona Maria viajou para a casa dos filhos no Maranhão. Josi ganhara duas semanas de folga. Nesses catorze dias, fora à praia, depois ao cinema – mas odiou o filme Cult que escolhera sem saber. – Foi ao shopping, à igreja quase todos os dias, e dormiu muito, mas muito até mais tarde. Mas sentia saudades. Sentia falta de Dona Maria e de Dona Edwiges. Às vezes, quando a novela vespertina estava desinteressante, pensava em ir até o prédio ver seus amigos de longa data. E um dia fez isso.
Dois dias antes de Dona Maria chegar de viagem, Josi ligou para o Maranhão e lhe pediu permissão para ir até o apartamento limpar os móveis que poderiam ter acumulado poeira, afinal, o prédio era bem em frente a mais movimentada avenida do subúrbio. Claro que conseguiu a permissão, e ainda ouviu o filho mais velho de sua avó-emprestada dizer que iria lhe mandar um cheque de cinco mil Reais pelos serviços maravilhosos que havia feito. Dona Edwiges a elogiara muito para os parentes no outro estado, e todos se sentiram obrigados a lhe presentearem com algo. Ela escondeu a alegria, mas por dentro, sabia que aquele dinheiro iria salvar sua ceia de natal... Sozinha.
Ao chegar ao prédio, sentiu algo diferente. As pessoas pareciam dispersas. O zelador cabisbaixo, os vizinhos no pátio conversavam em tom melancólico. Não que aquele fosse o prédio mais animado do mundo, até porque, cerca de setenta por cento de seus moradores eram idosos, ou mal humorados, ou as duas coisas. Mas havia algo estranho no ar.
Ela pegou a correspondência na caixinha do correio com o número 101, conferiu se todas eram mesmo de Dona Maria, ou em nome de algum de seus filhos, e andou até a portaria. Enfiou a chave e sentiu algo estranho tocar sua nuca. Um arrepio incômodo, mas não se abalou. Segurou as cartas debaixo de sua axila esquerda para melhor abrir a porta. A chave emperrava certas vezes, e até agora o zelador não tinha ido até lá consertar. Ao entrar no apartamento se deu conta de não ter sentido o cheiro de cigarro característico daquela hall. Saiu novamente, e sorriu ao ver Dona Edwiges sentada na mesma escada, apenas sem o cigarro.
- Parei de fumar! – disse ela sem que Josi tivesse lhe perguntado.
- Ah! Que ótimo! Agora a senhora vai sentir a diferença, meu amor!
- Já me sinto!
O telefone tocou dentro do apartamento.
- Opa! Deve ser dona Maria querendo saber do apartamento. Espera aí que já volto, viu? Quero saber das novidades dessas semanas que passei longe.
Dona Edwiges sorriu acenou delicadamente em retorno. Josi entrou no apartamento, ajeitou as cartas e atendeu ao telefone preso à parede da cozinha. Era realmente dona Maria, e sua voz não era das melhores. No começo ela perguntou como estavam as coisas, se Josi precisava de algo. Se o dinheiro estava dando. E até se ela queria ir para o Maranhão conhecer a casa dos filhos, que a moça rejeitou, prometendo ir numa outra oportunidade. Porém, o tom de voz daquela senhora ficou estranho, como se algo tivesse que ser dito, mas lhe faltasse coragem.
- Josi, alguém do prédio te deu a notícia? – perguntou a senhora com sua voz rouca, e agora chorosa.
- Não. Aconteceu alguma coisa? Aumentaram o condomínio?
- Não. Você não soube quem morreu?
- Quem? Quem morreu, Dona Maria?... Estive agora com a Dona Edwiges, e ela num me disse nada.
Houve um silêncio do outro lado da linha. Maranhão ficou mudo.
- Dona Maria? Quem morreu?
Houve um suspiro.
- Há dois dias... A Dona Edwiges faleceu, Josi. Não tem a possibilidade de você ter falado com ela hoje. Ela tinha... Parece que Câncer nos pulmões.
O telefone escorregou das mãos de Josilene. Ela imediatamente correu para fora do apartamento e parou diante da escada, agora vazia. Subiu os degraus correndo, e parou diante do 201. Colocou a mão sobre a maçaneta e empurrou a porta. Havia algumas pessoas lá, algumas senhoras, depois soube que eram primos e primas de sua amiga.
Mais calma, a moça retornou a ligação para o Maranhão e pediu desculpas pela sua reação, que claro, foi compreensível. Então, ao desligar, deitou-se no sofá e ficou encarando o teto, prestando a atenção nos detalhes do lustre. Então, seu pensamento foi tomado por lembranças daquela vizinha querida que partiu, mas aparentemente, não sem antes dar seu adeus.
Passara quinze anos ali, conversando com aquela mulher. Poucas vezes a viu longe da escada, poucas vezes perguntou sobre sua história. Geralmente, Dona Edwiges apenas ouvia e dava conselhos, sempre com aquele cigarro minguando entre seus rechonchudos dedos. Sempre com um sorriso tênue, um olhar que, apesar de triste, era carregado em milhões de emoções, numa metralhadora expressiva de carisma e conforto. Lágrimas escorreram aos poucos dos olhos de Josi. Estava arrepiada. Como poderia ter falado com uma mulher que há dois dias, havia se encontrado com o reino dos céus? Como poderia contar para as outras pessoas aquela experiência fantástica que tivera. Ao menos, seu coração estava confortável. Sabia que ela estava bem, sem fumar, e provavelmente cercada de pessoas que a admirariam, onde quer que ela estivesse, onde quer que fosse...
Aos poucos a rotina foi sendo retomada. Josi continuou trabalhando e cuidando de Dona Maria, até que, dois anos mais tarde, ela também se foi. Serenamente, enquanto dormia, e justamente quando Josilene resolvera em cima da hora, dormir no apartamento. A dor foi sentida. Mas não pensem que o mundo caiu. Pois os filhos daquela senhora, apesar de distantes, possuíam o mesmo coração bom de sua mãe. E presentearam aquela boa moça, que tanto dedicou sua vida aos cuidados de uma senhora que lhe trouxera para dentro de sua família, com aquele apartamento. Agora o 101 era dela, e dentro dele, dentro daquele lugar qual passara quase sua vida inteira, ela teria todas as melhores lembranças.
Às vezes, ainda hoje, ela senta-se nos degraus, e tenta acreditar que sentirá aquela incômodo cheiro de cigarro, mas que vinha acompanhado de milhares de histórias incríveis, sobre pessoas incríveis. Sua família.
Todos os dias, mas todos os dias mesmo, Josilene chegava às sete da manhã na casa de Dona Maria Aparecida para arrumar a casa, e ajudar nos afazeres domésticos. Poucas vezes tirava folga, poucas vezes ia de má vontade – até mesmo nos dias frios e de chuva fina, que atiçam a preguiça – sempre estava lá.
Acordava cedo, saía de Marechal Hermes, ia ajeitando seu coque no trem, lia as noticias no jornal barato que comprava ao sair de casa, e ainda tentava cochilar... Porém, os vendedores gritando por suas mercadorias não permitiam essa façanha. Era uma mulher bonita, apesar de não se apegar muito à maquiagens fortes, roupas exuberantes ou com decotes. Era uma mulher simples. Com coração enorme.
Dona Maria cuidara dela e de sua mãe quando criança, e se tornou uma espécie de avó que a vida não lhe dera. E, desde então, após crescer e se formar – também com a ajuda da avó emprestada – passara a fazer de tudo pela senhora de quase noventa e cinco anos. Josilene era apaixonada pela sua avó. E era capaz de realmente tudo para o bem-estar. Os filhos de Dona Maria moravam no Maranhão, donos de uma empresa de materiais plásticos. Mandavam dinheiro para a mãe, contudo, só visitavam nas épocas festivas de final do ano, quando a cozinha era recheada com comidas tipicamente natalinas e mineiras.
Com mais de vinte anos trabalhando no mesmo lugar, a moça, que não era casada , nem tinha filhos, passou a fazer parte da rotina do prédio onde trabalhava/morava. Conheceu os zeladores, cada um mais diferente e engraçado que outro. Afinal, depois de vinte anos ali, o prédio mudara de empregados por quase quinze vezes. E Josi, fizera amizade, e quase se apaixonara, por todos. Porém, nunca dormira com nenhum.
Conhecera todos os carteiros, os vizinhos, os garis, o moço que consertava o interfone, o padeiro que entregava pizza na casa da solteirona do 307, a dona Fabíola, ex-atriz da Globo, e que agora se escondia no subúrbio, fugindo da fama de mulher fútil que recebera nas revistas que Josi comprava. E Josilene ainda fizera amizade mesmo, com outros vizinhos, como Seu Renato, o síndico do prédio. Dona Suellen, a manicure que sempre lhe dava descontos e atendia em casa. Com Seu Fábio, que prestava socorro quando Dona Aparecida tinha crises asmáticas, e até mesmo com o homem mais mal-humorado do local, um tal de Seu Francisco, que do alto de seus quase dois metros de altura, e dos setenta anos, tinha muita história e muito mal-humor para distribuir com quem lhe perturbasse o juízo, principalmente os adolescentes que ficavam conversando (ou berrando, segundo ele) bem debaixo da janela do seu apartamento, o 104.
Porém, nesses vinte anos, Josi fizera amizade com uma pessoa em especial. No andar de cima, bem em cima do apartamento onde trabalhava/morava, morava dona Edwiges. Uma senhora pacata, que morava sozinha no 201. Não completamente sozinha, pois com ela moravam dois gatos que ela adotara na rua. Para Josielene, aquela mulher lhe transmitia uma calma imensa. E sempre estava ali, num importava a hora do dia, fumando sentada no último degrau do primeiro lance de escadas de mármore da entrada 3. Fumava muito. Qualquer que fosse a hora do dia, lá estava aquela senhora rechonchuda, com seus vestidos molhados próximo à barriga, sentada e fumando. O local onde ela ficava era justamente em frente a porta do apartamento 101. E sempre que Josi chegava, ou tinha que ir na rua, lá estava. O cheiro de cigarro já nem a incomodava mais. Edwiges dizia que fumava na escada para que aquela fumaça cancerígena não intoxicasse seus gatos.
Muitas foram as vezes que Josi passou um café, e sentou-se ali com aquela senhora solitária.conversavam sobre o tempo, sobre a novela e o vilão sedutor. Sobre comerciais antigos da televisão, sobre o preço do tomate, da banalização do amor, sobre ex-namorados, e sobre os tempos de infância. Dona Edwiges aparentava ter uns cinquenta anos, porém, suas histórias lhe conferiam uma sabedoria impressionante, e isso cativara a bondosa moça.
E assim foi por quase quinze anos. Josi chegava, falava com Edwiges. Depois na hora do almoço levava um pedaço de sobremesa para ela, e na hora de ir embora, também passava no apartamento de cima para saber se tudo estava bem. Uma amizade serena nasceu ali. E era uma das coisas que fazia aquela mulher simples de Marechal Hermes ir trabalhar com gosto, com pessoas que podia dizer que amava. Era uma coisa fraternal. Um espírito de família que tomava seu coração quase que todos os dias. Josilene, apesar de algumas dificuldades financeiras, se considerava uma mulher feliz.
Então, Dona Maria viajou para a casa dos filhos no Maranhão. Josi ganhara duas semanas de folga. Nesses catorze dias, fora à praia, depois ao cinema – mas odiou o filme Cult que escolhera sem saber. – Foi ao shopping, à igreja quase todos os dias, e dormiu muito, mas muito até mais tarde. Mas sentia saudades. Sentia falta de Dona Maria e de Dona Edwiges. Às vezes, quando a novela vespertina estava desinteressante, pensava em ir até o prédio ver seus amigos de longa data. E um dia fez isso.
Dois dias antes de Dona Maria chegar de viagem, Josi ligou para o Maranhão e lhe pediu permissão para ir até o apartamento limpar os móveis que poderiam ter acumulado poeira, afinal, o prédio era bem em frente a mais movimentada avenida do subúrbio. Claro que conseguiu a permissão, e ainda ouviu o filho mais velho de sua avó-emprestada dizer que iria lhe mandar um cheque de cinco mil Reais pelos serviços maravilhosos que havia feito. Dona Edwiges a elogiara muito para os parentes no outro estado, e todos se sentiram obrigados a lhe presentearem com algo. Ela escondeu a alegria, mas por dentro, sabia que aquele dinheiro iria salvar sua ceia de natal... Sozinha.
Ao chegar ao prédio, sentiu algo diferente. As pessoas pareciam dispersas. O zelador cabisbaixo, os vizinhos no pátio conversavam em tom melancólico. Não que aquele fosse o prédio mais animado do mundo, até porque, cerca de setenta por cento de seus moradores eram idosos, ou mal humorados, ou as duas coisas. Mas havia algo estranho no ar.
Ela pegou a correspondência na caixinha do correio com o número 101, conferiu se todas eram mesmo de Dona Maria, ou em nome de algum de seus filhos, e andou até a portaria. Enfiou a chave e sentiu algo estranho tocar sua nuca. Um arrepio incômodo, mas não se abalou. Segurou as cartas debaixo de sua axila esquerda para melhor abrir a porta. A chave emperrava certas vezes, e até agora o zelador não tinha ido até lá consertar. Ao entrar no apartamento se deu conta de não ter sentido o cheiro de cigarro característico daquela hall. Saiu novamente, e sorriu ao ver Dona Edwiges sentada na mesma escada, apenas sem o cigarro.
- Parei de fumar! – disse ela sem que Josi tivesse lhe perguntado.
- Ah! Que ótimo! Agora a senhora vai sentir a diferença, meu amor!
- Já me sinto!
O telefone tocou dentro do apartamento.
- Opa! Deve ser dona Maria querendo saber do apartamento. Espera aí que já volto, viu? Quero saber das novidades dessas semanas que passei longe.
Dona Edwiges sorriu acenou delicadamente em retorno. Josi entrou no apartamento, ajeitou as cartas e atendeu ao telefone preso à parede da cozinha. Era realmente dona Maria, e sua voz não era das melhores. No começo ela perguntou como estavam as coisas, se Josi precisava de algo. Se o dinheiro estava dando. E até se ela queria ir para o Maranhão conhecer a casa dos filhos, que a moça rejeitou, prometendo ir numa outra oportunidade. Porém, o tom de voz daquela senhora ficou estranho, como se algo tivesse que ser dito, mas lhe faltasse coragem.
- Josi, alguém do prédio te deu a notícia? – perguntou a senhora com sua voz rouca, e agora chorosa.
- Não. Aconteceu alguma coisa? Aumentaram o condomínio?
- Não. Você não soube quem morreu?
- Quem? Quem morreu, Dona Maria?... Estive agora com a Dona Edwiges, e ela num me disse nada.
Houve um silêncio do outro lado da linha. Maranhão ficou mudo.
- Dona Maria? Quem morreu?
Houve um suspiro.
- Há dois dias... A Dona Edwiges faleceu, Josi. Não tem a possibilidade de você ter falado com ela hoje. Ela tinha... Parece que Câncer nos pulmões.
O telefone escorregou das mãos de Josilene. Ela imediatamente correu para fora do apartamento e parou diante da escada, agora vazia. Subiu os degraus correndo, e parou diante do 201. Colocou a mão sobre a maçaneta e empurrou a porta. Havia algumas pessoas lá, algumas senhoras, depois soube que eram primos e primas de sua amiga.
Mais calma, a moça retornou a ligação para o Maranhão e pediu desculpas pela sua reação, que claro, foi compreensível. Então, ao desligar, deitou-se no sofá e ficou encarando o teto, prestando a atenção nos detalhes do lustre. Então, seu pensamento foi tomado por lembranças daquela vizinha querida que partiu, mas aparentemente, não sem antes dar seu adeus.
Passara quinze anos ali, conversando com aquela mulher. Poucas vezes a viu longe da escada, poucas vezes perguntou sobre sua história. Geralmente, Dona Edwiges apenas ouvia e dava conselhos, sempre com aquele cigarro minguando entre seus rechonchudos dedos. Sempre com um sorriso tênue, um olhar que, apesar de triste, era carregado em milhões de emoções, numa metralhadora expressiva de carisma e conforto. Lágrimas escorreram aos poucos dos olhos de Josi. Estava arrepiada. Como poderia ter falado com uma mulher que há dois dias, havia se encontrado com o reino dos céus? Como poderia contar para as outras pessoas aquela experiência fantástica que tivera. Ao menos, seu coração estava confortável. Sabia que ela estava bem, sem fumar, e provavelmente cercada de pessoas que a admirariam, onde quer que ela estivesse, onde quer que fosse...
Aos poucos a rotina foi sendo retomada. Josi continuou trabalhando e cuidando de Dona Maria, até que, dois anos mais tarde, ela também se foi. Serenamente, enquanto dormia, e justamente quando Josilene resolvera em cima da hora, dormir no apartamento. A dor foi sentida. Mas não pensem que o mundo caiu. Pois os filhos daquela senhora, apesar de distantes, possuíam o mesmo coração bom de sua mãe. E presentearam aquela boa moça, que tanto dedicou sua vida aos cuidados de uma senhora que lhe trouxera para dentro de sua família, com aquele apartamento. Agora o 101 era dela, e dentro dele, dentro daquele lugar qual passara quase sua vida inteira, ela teria todas as melhores lembranças.
Às vezes, ainda hoje, ela senta-se nos degraus, e tenta acreditar que sentirá aquela incômodo cheiro de cigarro, mas que vinha acompanhado de milhares de histórias incríveis, sobre pessoas incríveis. Sua família.