MASHIACH

"Em nome da liberdade,

Da fé em si mesmo e da paz,

Queimai as bandeiras,

Dizei não à religião!

E que o teu deus seja a canção

Composta com o coração

E que teu país seja onde te levem teus pés..."

(La Cantata Del Diablo – Mägo de Oz)

As ruínas de Jerusalém reuniam muito mais pessoas do que à época em que a cidade ainda existia. Mais de cinco décadas haviam transcorrido desde a catástrofe que decretara o fim da Cidade Santa, no entanto, a aura mística da grande encruzilhada do mundo se mantivera intacta. Dir-se-ia mesmo que o seu poder de agregar culturas as mais variadas se mantivera inalterado, não fosse por um simples detalhe: todos agora se uniam para realmente celebrar a paz.

- A “cidade da paz” – monologou Gamaliel – Que ironia! Foi preciso que a cidade desaparecesse para que a paz se materializasse...

- Perdão, vovô – interveio Joshua – Disse algo?

O velho rabino voltou-se para o rapaz sorrindo:

- Ah, Joshua. Estava divagando novamente! Coisas de um velho tolo que não consegue deixar de lembrar o passado cada vez que volta a estas ruínas.

Joshua era um rapaz de apenas dezessete anos, nascido num país que superara as agruras de um passado prenhe de intolerância e cizânia. Era a companhia predileta de Gamaliel, que via no neto caçula a continuidade de uma era de prosperidade e esperança como jamais supusera vislumbrar quando tinha a sua idade. Muito cioso das tradições de seu povo, descobrira da forma mais dolorosa que a verdade não era patrimônio exclusivo de um homem ou de um círculo cultural.

Duas gerações distintas, avô e neto. O passado e o futuro a caminhar sobre os escombros do que um dia fora uma das cidades mais belas e disputadas do planeta. De Davi a Pompeu, da Diáspora às Cruzadas, Jerusalém jamais fora sinônimo de paz, a despeito do nome que levava. Agora, porém, naquela véspera do Yom Kipur, uma celebração judaica voltada para a purificação da alma, era um espetáculo belíssimo o da confraternização entre islamitas, cristãos armênios, ortodoxos, coptas, judeus e católicos que ali tinha lugar. Um espetáculo tão tocante que o velho rabino não conseguia contemplar aquele momento sem que a emoção lhe marejasse os olhos.

- Vovô, o senhor se sente mal? – insistiu o mancebo visivelmente inquieto.

Gamaliel enxugou com as costas da mão uma lágrima que lhe correu discretamente pelo rosto.

- Não se preocupe, meu rapaz – disse com tranquilidade enquanto convidava o neto a tomar assento com ele à sombra de uma frondosa oliveira – É que ainda me parece um sonho ver uma confraternização como essa. Quando era pouco mais velho que você, a ideia de judeus, muçulmanos e cristãos se tratarem com tanto respeito soava como algo absolutamente inalcançável. Ver que isso realmente aconteceu alegra o meu espírito de uma forma que eu não seria capaz de traduzir com palavras.

- É verdade o que dizem? Que as pessoas se odiavam ao ponto de se matarem umas às outras quando Jerusalém existia? – aventurou-se Joshua.

O ancião olhou para o neto por alguns instantes antes de responder. Quão adorável era aquela geração, que só viria a conhecer o horror da intolerância pelos relatos históricos, a fim de que o passado não mais se repetisse.

- Sim, infelizmente é verdade – declarou por fim com um sorriso onde se mesclavam afabilidade e tristeza – E você nem imagina o quanto me alegra o fato de a sua geração se recusar a crer que a humanidade um dia foi capaz de cometer atrocidades como as que ocorriam na minha época. O exemplo de Jerusalém serviu para despertar consciências, para demonstrar de forma inequívoca que o valor da vida está acima de quaisquer tradições... Mas é lamentável que tantas vidas tenham sido sacrificadas para o reconhecimento de uma verdade que sempre esteve diante dos nossos olhos...

- E como isso aconteceu? Como uma cidade tão grande e bem vigiada como Jerusalém pôde ser destruída de um único golpe? – questionou o jovem hebreu.

Ah, Joshua – ponderou o rabino – Não foi de um único golpe. O que aconteceu na verdade foi uma sequência de eventos catastróficos, todos eles provocados pela mão humana. Jerusalém repousava sobre o orgulho inamovível de três grandes tradições, um orgulho tão imenso que os homens chegavam a confundir loucamente a sua própria soberba com a imagem da divindade.

Gamaliel deteve-se por instantes, esquadrinhando os refolhos da memória à cata dos elementos que compuseram aquela tragédia inolvidável. A oliveira sob cuja fronde agora se encontravam ficava no topo de uma colina. Ao redor se viam os escombros do que parecia ter sido um templo. Mais abaixo, os cânticos cristãos se casavam às orações entoadas pelos muçulmanos, numa harmonia única e inefável.

- Vê onde os islamitas se reúnem para orar? – indagou do neto designando com um gesto da mão o referido local – Ali se erguia a mesquita do Domo da Rocha, o maior templo maometano de Jerusalém. Foi um dos alvos principais da ofensiva terrorista, junto com a sinagoga central e a Igreja do Santo Sepulcro. A religiosidade de Jerusalém sempre foi um espetáculo a parte e, infelizmente, foi também a razão principal para a sua queda.

- Como assim?

- Tudo começou com a ascensão de um “salvador da pátria” – Gamaliel fez questão de sublinhar com desprezo o epíteto – ao posto de primeiro ministro. Com a alegação de que era necessário resgatar as tradições do povo judeu, colocadas em risco pela excessiva presença de muçulmanos e outras etnias, o novo chefe do parlamento decretou uma série de medidas arbitrárias, dentre as quais pontificava o fim da laicidade do Estado de Israel. O país voltaria às antigas tradições religiosas e exigiria de seus cidadãos, dentre outras coisas, a imediata submissão aos princípios da Torá, que agora passaria ao status de código civil e penal do país. Evidentemente, a medida desagradou em muito aos muçulmanos, já bastante calejados por um interminável festival de violações e opróbrios a que vinham sendo submetidos desde a fundação do Estado de Israel. Os partidários de Maomé não deixaram de externar publicamente a sua indignação, o que forneceu ao parlamento o ensejo para uma ofensiva militar esmagadora contra o frágil embrião do Estado Palestino. Foi então que teve lugar o Grande Expurgo, quando todos os civis residentes na Faixa de Gaza e na Cisjordânia foram expulsos, tanto os árabes quanto os israelenses. Tropas militares passaram a ocupar em caráter permanente as duas regiões que foram convertidas em campos de concentração, numa grotesca repetição dos horrores nazistas que haviam vitimado muitos de nossos ancestrais na primeira metade do século XX. Diante de tudo isso, a situação se tornou insustentável. Os contínuos abusos do premier acabaram por unificar a indignação de judeus, islamitas, cristãos e grupos não-religiosos. Na tentativa de conter a sublevação popular, o tirano mandou prender rabinos, xeques, padres e patriarcas, a fim de deixar claro que não toleraria qualquer tentativa de questionamento aos seus perversos ditames. No auge de sua criminosa loucura, dissolveu o parlamento e tomou para si o epíteto de Mashiach, alegando agir em nome de Deus para restaurar a grandeza pretérita dos descendentes de Abraão.

- Ele ousou tomar para si o título do Messias? – aventurou-se o rapazote horrorizado – E como esse blasfemo foi detido?

- Para determinar a queda desse verdadeiro agente da escuridão, foi necessário unir forças e deixar de lado as diferenças culturais e étnicas – respondeu o ancião – A princípio, o tirano contava criar uma atmosfera de desconfiança e preconceito, onde ele se apresentaria como a única solução para salvar o país. Com tais promessas é que logrou alcançar o cargo mais alto da nação. Uma vez no poder, contudo, viu ruírem as suas pérfidas ambições tão logo se viu confrontado, pois jamais imaginou que judeus, cristãos e muçulmanos colocariam de lado as diferenças para combater o mal que ele encarnava. Quando foi forçado a reconhecer o erro em que se demorava, lançou mão de uma estratégia suicida: decidiu-se por destruir Jerusalém. Pela primeira vez desde que a crise política se instaurara, o déspota dirigiu-se a Israel em cadeia nacional de rádio, televisão e internet, ameaçando estraçalhar o mais sagrado patrimônio do país, se os insurgentes não depusessem suas armas.

- E o que aconteceu? – indagou Joshua cada vez mais ansioso pelo desfecho daquela história.

Gamaliel respirou fundo antes de retomar a narrativa. Os lances que viriam a seguir eram assaz pungentes.

- A fim de deixar claro que não toleraria o menor sinal de rebelião, o déspota explodiu a sinagoga central de Jerusalém, depois de trancafiar no interior do edifício uma multidão de inocentes. Todo o país acompanhou em tempo real aquela cena dantesca. Não há palavras para descrever o horror, o ódio e o desespero que um ato tão vil despertou no coração de todo Israel, justamente por ocasião do Pessach, quando a Cidade Santa estava repleta de peregrinos. O mefistofélico tirano, não satisfeito, ameaçou repetir o gesto com a Igreja do Santo Sepulcro e com a Mesquita do Domo da Rocha, estabelecendo um prazo de seis horas para a rendição incondicional dos revoltosos. Em suas últimas palavras quando da transmissão, asseverou que estava disposto a aniquilar o orgulho de Israel para demonstrar o seu divino poder. Submissão ou morte, era o que impunha aos seus opositores, mas todos sabiam que a submissão representaria a morte em qualquer circunstância. Não houve acordo. De todos os lados de Jerusalém, irromperam brados de liberdade e a luta ganhou contornos dramáticos. Os patriotas marcharam sobre a sede do governo, ao mesmo tempo em que tropas legalistas eram duramente batidas pelo povo enfurecido. Os reféns nos templos foram libertados... Apenas para abraçar a morte a céu aberto.

A voz do rabino embargou-se. Houve mais um interregno antes da conclusão. Joshua olhou fixamente para o avô, que levava mais uma vez a mão ao rosto para enxugar as lágrimas.

- O falso messias foi derrotado, mas teve o cuidado de preparar a sua retaliação com antecedência. O seu alvo não eram apenas os templos, era Jerusalém como um todo. Uma vez acuado, o pérfido ativou um dispositivo que havia plantado no subsolo da cidade para ser detonado assim que ele morresse. Um ribombo atroador brotou das entranhas da terra, devorando toda a área de Jerusalém e adjacências num gigantesco turbilhão luminoso, como se o próprio sol fosse emergir das profundezas. Em fração de segundos, toda a história, toda a beleza e glória de Jerusalém foram reduzidas a nada. Sequer houve tempo para os que estavam entre suas muralhas gritar em desespero antevendo o fim, tal a celeridade com que aquela supernova tragou tudo que havia ao redor. O hediondo verdugo matou-se com um tiro na boca, a fim de não ser capturado e punido pelos imensos crimes perpetrados. Mas antes de perpetrar a derradeira iniquidade, declarou que privaria todos, judeus, cristãos e muçulmanos, do tesouro supremo de sua fé, como punição pela desobediência de Israel aos seus infames desígnios.

Gamaliel alcançara o final do relato com os olhos marejados de pranto. Joshua abraçou-se com o avô sentindo-se duplamente compungido, pela dor que o narrador experimentava naquela reminiscência e pelo terrível destino que assinalara Jerusalém.

- Desculpe, vovô – arriscou-se o rapaz experimentando certo remorso por ver o progenitor naquele estado – Uma história tão triste deveria ser esquecida para sempre. Eu não devia ter feito o senhor se lembrar de um passado tão doloroso.

- Engano seu, meu neto – obtemperou o ancião com um sorriso – Não existe futuro para aqueles que ignoram o passado. O presente é o resultado natural das escolhas que fizemos antes do agora, assim como o porvir o é deste momento. Se não fossem as duras lições que esse passado nos ensinou, dificilmente estaríamos aqui agora, testemunhando uma era de respeito e fraternidade. O desgraçado tirano que usurpou o nome do Messias não alcançou o poderio com que sonhava, mas mesmo as suas ações tenebrosas nos foram úteis, pois nos fizeram ver o mal que existe na incapacidade de ouvir e acolher o outro. Foi necessário que a liberdade nos fosse sequestrada para aquilatarmos do seu real valor. Apenas sob o guante iníquo da opressão é que nos foi dado saber quanto mal fizemos aos islamitas, alegando superioridade racial ou um injustificável favor divino. A destruição de Jerusalém é um episódio que jamais deverá ser esquecido, de forma que jamais tentamos reerguer a cidade dos escombros. A lembrança dolorosa deste vazio onde perdemos tantos entes queridos, é o que hoje nos irmana. Das ruínas do orgulho sectário que os templos representavam, elevou-se a convicção de que nenhum templo é mais digno do Altíssimo do que a própria natureza, assim como nenhum homem jamais logrará alcançar a comunhão com o Universo, sem se despir da prepotência vazia com que se deixa ornar inadvertidamente pela cultura. Perdemos a cidade de Jerusalém, restou-nos a paz que a cidade jamais logrou materializar enquanto existia. Essa sim é uma conquista verdadeiramente celestial.

E como o neto ainda demonstrasse certa incredulidade diante daquelas colocações, arrematou:

- Não há nada que nos faça compreender melhor o real valor de algo do que o fato de perdê-lo, Joshua. Diante da perda, somos todos iguais, todos retornamos à condição de liberdade inicial a que, sem o saber renunciamos. A ausência liberta e plenifica de uma forma que a presença raramente é capaz de fazer.

Alan Thanatos
Enviado por Alan Thanatos em 11/10/2015
Código do texto: T5411641
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