O tempo-capítulo I - do livro "LAMENTOS'

LAMENTOS capítulo I

O TEMPO

Encostou o velho carro na garagem de cimento grosso. Pendurou o roto chapéu de massa, ornado com uma pena de papagaio, na parede escurecida pelo tempo. Sentou num banco de madeira na área da casa, bem junto ao carro que ainda fumegava o motor, pelo esforço dos dez quilômetros de subida do morro-Deus Me Livre- e, bastante cansado, enfiou o bico da botina do pé direito no calcanhar do esquerdo, tirando-a fora, repetiu o inverso e sacou a outra.

Ninguém em casa, somente seu cachorro de estimação latia dando-lhe as boas vindas! Abriu as pernas, pôs as duas mãos entrelaçadas atrás da nuca e esticou o velho corpo para descansar e gozar o prazer de estar sozinho.

Sentia muita sede, mas como era cheio de manias, não ia beber agora, primeiro tomava seu banho, deixando a água a escorrer pelos lábios, sentindo-a navegar boca abaixo, sem engolir, depois saía à cozinha comia um taco de raspadura demoradamente, pirraçando a sede, só depois sorvia um meio litro de água num copão que fizera de um litro de óleo de soja.

Napoleão foi ao quintal, deu uma olhadela nas galinhas, achou tudo em ordem. Entrou na cozinha, tomou um café frio de ontem, voltou para seu banco de madeira, acendeu um cigarro de palha, e como um monge, começou a meditar sobre o tempo. Como passou ligeiro! O tempo voou e eu não vi...

- Parece que foi ontem... faz pouquinho tempo, lembro-me de calças curtas a correr nas enxurradas da chuva, jogando bola de borracha na praça com o dedo amarrado por um pedaço de pano velho, pois machucado estava por um chute numa pedra de fogo. Parece que estou vendo, faz pouquinho tempo estava eu a estudar no segundo ano primário, tentando absorver os segredos das quatro operações matemáticas e esforçando-me para amolecer as juntas dos dedos no exercício de caligrafia. E agora! Não posso acreditar: vou fazer setenta e seis anos!!! Já andei muito mais que meio caminho de vida! Restam-me poucos anos! Melhor não pensar. Sinto-me jovem por dentro, tenho forças, saúde e sonhos, mas toda esperança desaparece quando deparo com o maldito espelho- Vou agora escovar os dentes e pentear os cabelos com os olhos fechados, é melhor, pensava Napoleão.

Napoleão ainda tinha algum tempo para ficar naquela letargia e lamentos, pois continuava sozinho, estatelado no banco de madeira. - Comecei a desconfiar que estava envelhecendo quando alguns jovens começaram a comentar: como você está parecido com seu pai!. Tratavam-me “ de senhor” - Era “sim senhor”, “não senhor”, “o senhor é mais velho, pode se sentar”. Daí para frente reparei que os outros estavam me vendo diferente do que eu me via .Me enxergava por dentro e os outros, por fora, e a velhice, muitas vezes, se estampa externa... Os anos foram passando e cada vez o mundo me dando mostras do meu envelhecimento. Na fila do banco um aviso “prioridade para gestantes, mulheres com crianças no colo e idosos acima de 60 anos”. Mas eu teimava, nunca entrei nessa fila.

Napoleão estava absorto em seus lamentos, quando foi interrompido pela chegada da esposa, filhos e netos. Recompôs-se, voltou ao seu mundo de ilusões, ficou jovem novamente, era o esteio da casa, não podia dar mostras de fraquezas, nem velhice. Napoleão, estamos sem carne, vai ter que ir ao supermercado! Disse Marina, sua esposa; precisa pagar a prestação do carro no banco, venceu ontem, disse a filha mais velha, e eu quero um dinheirinho para a festa de amanhã, lembrou-se Otávio o filho mais novo. Tudo bem, respondeu Napoleão com a paciência de Jó.

Napoleão foi para o quintal, porque lá, sozinho com as galinhas podia dar vazão as suas reminiscências sem ser perturbado. Emendou o fio dos seus pensamentos anteriores e continuou: Recordou o dia que foi jogar futebol de salão. Jogava na zaga, era destemido e imbatível zagueiro, saiu com a bola dominada procurando o companheiro para despachar a pelota, um menino de dezesseis anos dá-lhe um encontrão, suas pernas travam, não obedecem, cai de maduro no cimento da quadra, tomam-lhe a bola e é gol adversário. Cabisbaixo, fingindo estar contundido, pede para sair, e foi a última vez que jogou, tinha cinquenta e cinco anos... – A sim, aí começou a chegada da terceira idade, recordava... Certo dia estava a ler a revista veja, quando as letras começaram a se juntar, escorrer aquela aguinha quente pelos cantos dos olhos, não conseguiu continuar a leitura, veio os óculos que aumentaram de graus à medida que os anos chegavam. Por vaidade, não carregava os óculos quando saía à rua. Um dia foi ao Baco e não conseguiu sacar nada, pois estava sem os óculos e não enxergava as letrinhas dos terminais, voltou em casa e já veio com os óculos pendurados por um cordão preto. As necessidades foram maiores que a vaidade. Os cabelos, outrora negros, teimavam a embranquecer como capuchos de algodão, pintava-os com tintas baratas, mas disfarçava bem, contudo por desmazelo ou preguiça, ficavam mais tempos brancos que disfarçados, cansou das maquiagens capilares e deixou-os seguir como Deus quer...Parou, fumou um cigarro, descansou seu juízo e após pequena pausa alinhavou novamente seus pensamentos. E os dentes, tão lindos que eram, grandes brancos com uma pequena falha na frente, emprestando ao sorriso graça e harmonia. Também esses jaz... O primeiro, me lembro bem, assim murmurava, foi no sertão: comia um feijão tropeiro, com torresmo e farinha, quando senti ter mordido uma coisa dura, com a língua localizei algo estranho na boca, com paciência fui trazendo o objeto para os lábios, saí à porta e cuspi, e para meu espanto o que eu pensei tratar-se de uma pedrinha, era na verdade um dente de estimação. Corri rápido para o chão da porta a fim de recuperar o dente, tarde de mais! a galinha carijó já esticava o pescoço empurrando o dente para o papo. Os outros dentes foram seguindo o mesmo caminho, carcomidos pela ação inclemente da gengivite que se aliara ao tártaro. Êta, vida malvada!, como diz Rolando Boldrin.

- Napolão foi despertado dos seus lamentos, por voz áspera e estridente de Marina, sua esposa: -Miserável! Ainda não foi comprar as coisas que lhe pedi? – É isso mesmo, que ouvi: Miserável, que nome tão infame, outrora era “meu bem...”, “amor”, mas tudo passa, e isso também passou... O amor de mulher e marido também estão fadados a passar com o tempo, somente o amor de pai e mãe pelos filhos perduram, são eternos... aumentam de intensidade com o passar dos anos, o mesmo não posso dizer ao contrário: dos filhos para os pais, esses por sua vez, em muitos casos, já se iniciam nulos, “se os filhos amassem os pais, a metade que os pais lhes amam, o mundo seria outro, matutou Napoleão.

FUNERAL

Napoleão tinha um medo danado de morrer. Com toda razão, quem não tem? Ninguém sabe como é o outro lado, ninguém voltou para explicar esse mistério. Na dúvida é melhor ir ficando por aqui! Dizia ele sempre que pensava na malvada da morte.

Seus amigos, iam se indo um atrás do outro. Frequentava assiduamente um barzinho perto da rodoviária, contudo , foi observando que seus companheiros volta e meia partiam dessa para melhor, ou quem sabe para pior. Primeiro viajou Boanerge, estava lavando os pratos quando deu um catiripapo e caiu duro; depois foi a vez de Orozimbo, vinha dirigindo do sertão quando um carro a 120 por hora, ao desviar de um vaca não conseguiu desviar-se do seu carro, morreu a caminho do hospital, e assim por diante foram-se indo um depois do outro em pouco espaço de tempo. Tá danado, restam poucos, melhor mudar de bar. E assim o fez.

A cidade é pequena, mas uma epidemia de doença da próstata não perdoava ninguém . Fulano tá com mal do prosta, dizia um, e sicrano também, operou ontem. - Melhorou? perguntou um. Tá melhor mas ficou broxa. Quantos anos tem esses que adoeceram?- cinquenta e pouco à sessenta anos, não passa disso. Napoleão que já tinha mais de 70, pensava consigo, será que estou com a merda dessa doença. - Ou Juca você já foi operado, parece que melhorou, né? quais são os sintomas meu amigo? No meu caso não teve sintoma nenhum, mas falam que muitos começam a urinar muitas vezes à noite. - E como você descobriu que tava doente?- Foi num exame que o médico pediu. Napoleão ficava calado, mas pensando, matutando sua situação. Bem eu não levanto para urinar a noite e em médico eu não vou, portanto acho que estou livre dessa. Mas não conseguia se livrar completamente dos seus receios. Lembrava que vez em quando tinha que ir ao banheiro correndo, para urinar, caso não corresse urinava nas calças. Hummm, vou tomar uns chás de carrapicho, deve ser alguma infecção bouba, qualquer comprimido de tretex alivia isso...E assim ia indo, driblando qualquer enfermidade...

Um belo dia foi no super-mercado fazer umas comprinhas para fazer uma feijoada. Chegou, escolheu uns pés de porco, as orelhas, feijão preto e demais iguarias e quando foi fazer o pagamento no caixa, sentiu uma tontura e..puffe caiu durinho ali mesmo. Em segundos se reergueu, ficou de pé, pegou seu cartão, não, não conseguiu pegar o cartão, mas se afastou do caixa. E olhando para trás viu uma multidão em volta de seu corpo, jaz inerte esticado ali no chão.- Que porra é essa, eu aqui e eu ai, não estou entendendo. Aproximou-se da aglomeração que o rodeava e e escutou atônito as exclamações: Coitado de Napoleão, tá mortinho da silva.- Deve ter sido coração, bebia demais, falava outro,.-Avisem a mulher dele, eu tenho o telefone dela- chamem a ambulância, talvez ainda esteja vido, dizia outro.

Napoleão, diante de tanta confusão, sentou-se no meio fio da calçada, pôs a mão na cabeça para ver se seus pensamentos parassem de girar, girar como uma roda gigante...Levantou-se decidido e tentou entrar no seu corpo, mas esse não respondia, já se encontrava frio, imóvel, endurecido, afastou-se decepcionado e muito triste. Viu a ambulância chegado às pressas, os enfermeiros suspendendo-o para colocar no carro, e sair em disparada para o hospital. Como um raio, pegou voou e saiu atrás do veículo com a esperança de que os médicos o reanimariam, o trouxessem à vida. Sua angústia era imensa, não podia morrer agora, considerava-se novo ainda , e com saúde e forças para viver mais anos.

Chegou no hospital primeiro que seu corpo. Sacudiu os auxiliares do hospital no intento de que eles fossem logo pegar seu corpo. Ainda dava tempo, seu corpo ainda estava quente! Devia ter apenas desmaiado. Nas suas lembranças, recordou-se de pessoas que foram consideradas mortas, mas no entanto estavam vivas, lembro-me de um filme que assisti quando rapazinho, "Terrível obsessão". acho que esse era o nome, lembro-me o sujeito foi enterrado, era muito rico, e passados uns dias seu filho havia sonhado que seu pai fora enterrado vivo, e assim sendo, diligenciou-se a abrir a sepultura do pai, e foi grande seu espanto quando viu seu pai debruço no caixão com as unhas crispadas e machucadas devido a luta que teve, em vão , de se livrar do caixão que o prendia, agora para a morte certa.

Precavido o filho, cuidou-se para nada semelhante acontecesse com ele a exemplo do pai. Pois foi detetado que a família sofria de catalepsia (doença que se caracteriza pela imobilidade e rigidez do corpo do indivíduo que muitas vezes é dado como morte). Como era muito rico, se preparou como pode: Só se casaria com mulher digna, de confiança, que sabendo de sua moléstia não o enterraria antes de se passarem das vinte e quatro horas após sua morte, mandou construir seu mausoléu com uma escada de cordas que ia do topo a beira de seu caixão lá embaixo, num cálice guardado numa caixinha de aço, veneno letal suficiente para matar um elefante, caso não conseguisse se safar do sepulcro, tudo bem organizado. Casou-se com a dama perfeita que antes do matrimônio foi avisada do mal da família e que concordou com mil juras que jamais adiantaria a realização do seu enterro antes das vinte e quatro horas do seu falecimento.

Aconteceu que o rico cidadão veio a falecer mais tarde , ainda jovem, contudo não tinha morrido estava vivo e vendo tudo a sua volta.

Ficou tranquilo, sua esposa fiel sabia do seu mal e não ordenaria seu enterro antes das vinte e quatro horas, e bem antes disso tinha certeza que voltaria a si.

Mas não foi isso que aconteceu. A noitinha quando todas as pessoas se afastaram da visita, ficaram somente na sala com o defunto , sua mulher e seu advogado. Como tudo via e ouvia, mas não podia se mexer, viu sua esposa nos braços do seu advogado murmurar ..- Vamos fazer o enterro logo amanhã bem cedo para acabar com esse tormento-Concordo disse o amante-O pseudo defunto quase se levantou do caixão, tanta foi a decepção que teve nesta hora...-Traidora, covarde gritou o infeliz, mas ninguém o escutou...

Pela manhã chegou o padre, os amigos, a família e se dirigiram para o cemitério , todos à pé, teimava neste instante uma chuvinha fria e fina.

No trajeto para a última morada, tinha o morto-vivo a esperança de que alguém o fosse ver pelo vidro que tinha no caixão e com certeza o salvaria , pois que neste momento ele conseguiu abrir os olhos e piscava

repetidas vezes pelos que passavam a sua volta. Mas por incrível que pareça ninguém se aproximou do caixão e à medida que se aproximava a turba do cemitério suas esperanças se esvaiam.

Conclusão, ninguém reparou que o morto estava vivo, foi enterrado em seu mausoléu às pressas e os acompanhantes deram as costas para o cemitério e foram-se.

O morto-vivo, ainda tinha uma carta na manga, conformou-se, vou melhorar e vou embora daqui a pouco, dizia...

Passado umas quinze horas do seu enterro o cidadão recuperou-se do seu desmaio, apertou um botão do caixão e esse se abriu rapidamente, levantou-se de imediato e se dirigiu as escadas de cordas, acionou o segundo botão e as cordas sairam do topo da sepultura descendo às suas mãos, contudo devido ao longo tempo que havia de sua construção e fixação no sepulcro as cordas estavam em estado lastimável, toda corroída pela ação do tempo.

Laerte Rocha
Enviado por Laerte Rocha em 10/10/2015
Reeditado em 29/09/2019
Código do texto: T5410269
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