ESTRELITA

Sou uma pessoa comum!

Não é a apresentação que gostamos de fazer a nosso próprio respeito, mas geralmente, é mais sincera. Gostaríamos de ser um Indiana Jones, Madre Tereza, James Bond, Mahatma Gandhi ou até algum artista medianamente famoso, desde que não fôssemos, simplesmente, comuns, anonimamente comuns.

Estrelita era uma menina comum, e nisso residia o seu maior trunfo.

Todos temos nossas idiossincrasias (será que isso morde?). O que vale dizer que temos defeitos, virtudes, tendências de caráter, que moldam nossa índole. Visamos grandes realizações, e não admitimos que não temos condição de ir longe e executar enormes planos, pois superestimamos nossa capacidade de concretização do proposto. Se nos tornamos gananciosos, acabamos mesquinhos e arrogantes, e se nos desapegamos de valores materiais, abraçando ideais fraternos, acabamos exigindo gratidão e reconhecimento, porque temos em nosso íntimo (bem escondidinha) a idéia de que sejamos missionários que vieram cuidar dos pobres sofredores, que vivem perdidos neste mísero planeta.

Na maioria das situações queremos ser o foco da atenção, especiais em alguma área de atividade. Mas como isso é enganoso e decepcionante!

Estrelita era uma adolescente graciosa, nos seus, talvez, dezesseis anos. Sorridente e afável. Não me recordo claramente de seus traços, mas guardo nítida lembrança desse sorriso cativante, vez em quando seguido de uma seriedade bem contrastante, geralmente quando se preparava para ler algum poema de sua autoria ou falava de coisas que a impressionavam. Privei de sua companhia por quatro dias e nunca mais nos vimos, nem soube algo a seu respeito, então me permito viajar na maionese da imaginação, para compor a figura que permaneceu viva na memória. E olhe que já se passaram mais de quarenta carnavais.

Hoje, já um burro velho, consigo vislumbrar melhor a trama que permeia e entretece nossos procedimentos, mas até algum tempo atrás, cobrava dos céus e das gentes que me rodeavam, inda que sutilmente, compensações e o devido reconhecimento por meus feitos, pretensamente inteligentes e superiores. Pode!?!

Quando comecei a observar melhor as coisas pequenas, os menores e mais simples gestos, fui me lembrando de diversas ocasiões, pessoas, histórias e detalhes marcantes de tudo que já me aconteceu.

E me ocorreu à mente o encontro com Estrelita.

As circunstâncias em que nos conhecemos não servem de pano de fundo a nenhuma cena romântica, nem fornecem qualquer combustível etéreo para fazer funcionar a imaginação do mais otimista sonhador, mas se prestaram a aproximar meus ouvidos do que a boca dessa menina tinha a dizer.

Ela disse pouco, no pouco tempo em que estivemos juntos, porém ...

Quanto teor e quanta abrangência em tão pouca quantidade de palavras!

Estávamos, eu e duas amigas, no interior de São Paulo, nos altos da Mantiqueira, em pleno inverno, e chegamos à cidade tarde da noite. Não a conhecíamos, e colhendo informações ainda na mini estação rodoviária, fomos até a casa de outra pessoa amiga, onde nos hospedaríamos. Era bem distante e, quando ali chegamos, não encontramos ninguém.

Não tínhamos, no entanto, dinheiro para pernoitar num hotel.

Éramos adolescentes numa viagem aventureira (e friorenta), então tivemos que passar a noite ao relento, congelando. Pela manhã, voltamos à casa, que permanecia vazia. Só bem depois soubemos, pelos vizinhos, que ela pernoitara na agência funerária.

- Alguém morreu?

- Não! A agência pertence ao pai de uma amiga, e às vezes ela pernoita lá.

Seguimos para o funesto local e, efetivamente, a encontramos. Após as saudações, ela nos apresentou à filha do agente funerário. Era Estrelita!

Menina simples, clara, cabelos curtos, tímida, sorridente e sonhadora. Logo nos mostrou versos e textos que recém havia escrito. Entre algumas previsíveis dissertações apaixonadas, próprias da adolescência, percebi derivação filosófica mais consistente. Em especial, uma frase que se destacava de todo o resto:

O pior cego é aquele que não enxerga Deus em torno de si!

Sempre senti em minhas entranhas, de forma inconfundível, a certeza da imanência de Deus, entremeando tudo e todos, mas nunca pensara de forma tão simples nesse tão complexo conceito filosófico. Realmente, se Deus criou tudo a partir de si, e nada mais existia além de sua própria substância, inimaginável à nossa capacidade de raciocínio, óbvio concluir que tudo, absolutamente tudo vem de Deus, é feito de Deus, possui a substância divina, desde a coisa mais reles até a mais importante, desde a menor até a mais gigantesca, desde a mais feia ou nojenta até a mais elevada, soberba, sublime, desde os abismos infernais e seus demônios, até os indescritíveis píncaros celestiais e seus anjos.

Nos dias seguintes ainda conversamos um pouco e passeamos pela cidade. Não senti atração física, nem me entusiasmei com qualquer aproximação afetiva maior, apesar de Estrelita ser atraente. Eu sentia admiração por sua sensibilidade e confuso, perante tanta despretensão, por parte de alguém que soube condensar o princípio do reconhecimento da divindade a partir de sua obra universal, com simplicidade desconcertante, como que por inspiração direta da fonte criadora. Mesmo tocado pela simplicidade sublime do momento, não deixei de prosseguir em minhas bobagens egóicas, e ao longo das últimas décadas, perpetrei muitos desacertos. Continuava a me iludir, fazendo grandes planos, traçando estratégias na fumaça de sonhos megalomaníacos, enquanto em volta, na fácies concreta do cotidiano que se impõe, via-me obrigado a todo tipo de expediente para obter os recursos necessários à subsistência, no que dificilmente era bem sucedido, sem desgaste excessivo. Demorei a me enxergar como realmente sou: alguém comum, sem grandes conhecimentos, limitado para diversos afazeres, saúde relativa, cheio de complicações psicofísicas e sem maiores atributos a me tornarem apto à realização de ideais superdimensionados.

Estrelita já não é mais menina e não sei se continuou a viver na mesma cidade, se sua vida tomou rumo diferente, mas em meu íntimo continuará a existir aquela figura mítica da menina simples, sorridente e despretensiosa, que sentia prazer em dizer apontamentos poéticos, como a compartilhar seus sentimentos. Anos atrás, em uma tarde de descanso, eu ouvia coletânea de canções e uma delas me causou, ao mesmo tempo, angústia e prazer, com tal intensidade que a ouvi dezesseis vezes seguidas, sem entender, de pronto, o porquê.

Ao verificar seu nome, fiquei estupefato: ESTRELLITA. Composta pelo músico mexicano Manuel Maria Ponce, era muito conhecida em seu país. Mesmo com dois eles, ela traduzia com proximidade, a sensação que o teor substancial da frase de Estrelita (com um ele) produziu em minha mente.

Quantas vezes e para quantas pessoas já repeti aquela frase!

Quantas vezes e para quantos enfatizei o teor filosófico que ela encerra!

Quantas vezes pequenos acontecimentos, manifestações simplórias, frases comuns ou gestos simples, detonam mudanças em nosso comportamento, em nosso modo de agir e pensar.

Estrelita nem imagina que sua frase desencadeou tanta transformação, e talvez nunca tenha sequer atribuído alguma importância a ela, mas é assim que a natureza age, tirando daqui e pondo ali, depois traz de volta ou esparrama, o que sugere impulsos aleatórios, mas que escondem uma sincronicidade fantástica, a permear a vida de todos, sem exceção.

Eu também ainda não deslanchei no conhecimento da vida, e só consegui identificar um quinhão minúsculo de tudo que está disposto em derredor, mas já me sinto vitorioso e privilegiado, nessa minha catarata espiritual.

O pior cego é aquele que não enxerga Deus em torno de si!

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 07/10/2015
Código do texto: T5407716
Classificação de conteúdo: seguro