Desejos de Vitória

Esse conto teve como inspiração as obras que iniciaram o Realismo. Madame Bovary, na França, e O crime do Padre Amaro, em Portugal. Uma simbiose de referências dos dois romances adaptado para os dias atuais.

Lembro-me de Vitória ainda menina. Quando fez sua primeira confissão, inventou alguns pecadinhos para não ficar diferente das amigas. Menina maluca! E me admira muito que nos dias de hoje, sendo assim como ela é, ainda frequentasse a igreja, e tenha a mim, um padre, como amigo. Sonhadora e romântica que só. Eita menina que aspirava o amor. Eu a avisava para ter cuidado com a vida... ela ansiava com uma paixão dessas de cinema. Religiosa, protetora dos animais, adorava uma novela ou um filme de amor. Enquanto sonhava, Vitória era pura singeleza. Fina doçura de menina. Mas desde sempre e para sempre mulher! Sei de tudo sobre ela através de suas confissões... que muitas vezes mexeu com meus nervos e instintos. Tantos namoricos pela adolescência, desses cheio de picuinhas... perduraram até o dia do estopim.

Esse dia foi quando ela começaria a ser tantas dela: o dia 22 de setembro de 2013. Ela saiu do cinema com os olhos marejados e um sorriso de canto de boca. Ah, como ela queria viver um amor como o daquele filme. E ela tinha certeza que viveria. Ela, que era do tipo de moça que ia ao cinema sozinha... ela se apaixonaria à primeira vista pelo homem perfeito, e acontecesse o que acontecesse tudo superariam juntos, até porque o destino sempre conspiraria para manter ela e seu verdadeiro amor juntos. Ah, quanta ingenuidade! Depois de suspiros e expectativas que o filme plantara, ela foi ao toalete para retocar a maquiagem. Cabelos lisos e loiros; boca desenhada e realçado pelo batom cor de rosa, olhos castanhos e grandes, delineados para guardar um olhar de uma menina sonhadora e romântica, a pele branca e esse tal jeito de menina completavam uma mulher de seus vinte e poucos anos chamada Vitória. Órfã de mãe e com o pai doente, ela passava o dia cuidando dele e navegando nas redes sociais. Dezenas de fotos acompanhadas de frases de otimismo; textos de superação; versos comerciais; poemas pobres; clichês atrás de clichês. Tédio... Tédio... Tédio... Ela só queria atenção! E na internet ela a tinha. Dos comentários água com açúcar ela fazia calmante, massagem para o seu ego. Era tão bom ser quem quisesse ser. Era tão bom ser aquele holograma, ser o que ela desejava ser, mas não era. Depois de retocar o batom, ergueu o queixo e saiu, como se o mundo fosse sua plateia, sempre torcendo para topar com seu grande amor no meio do caminho. Vivia sonhando acordada. Até que seu sonho começou a se tornar realidade, depois de retocar a maquiagem, saiu do banheiro do shopping e alguém a surpreendeu:

Um homem a abordou de repente no meio do caminho lhe estendendo a mão, um susto com aquele objeto apontado para ela: “Esse celular é seu. Você esqueceu na poltrona do cinema”, disse o homem com uma voz surpreendentemente grave e encantadora. Vitória olhou para o homem parado em sua frente e todo o resto do mundo congelou. Alto, pele num tom bronzeado, um sorriso irregular que lhe conferia um charme, porém charme maior eram seus cabelos grisalhos. Vitoria então despertou do seu devaneio, quando o homem tornou a lhe falar que o celular era dela: “vi sua foto aqui, ele é seu mesmo”, ele continuou a falar quando ela pareceu duvidar e conferiu dentro da bolsa. Ela agradeceu com um olhar doce. Aquele homem era lindo. Embora talvez tivesse quase o dobro da sua idade, ele era simplesmente lindo. Antes de ir embora, ele disse “Eu liguei do seu celular para o meu, quando vi a foto de tão linda moça não pude deixar de querer o número do seu telefone”. Vitória sorriu! “Se quiser salvar na agenda o meu número que ficou gravado aí, o meu nome é Charles.” Ela salvou, deixando claro que ele podia ligar para ela. O acaso fizera o amor acontecer em sua vida. E ela foi para casa sonhando que sua vida seria como nos livros, como nos filmes. Pensou logo que seria preciso lutar contra a diferença de idade, mas o amor que estava para acontecer seria capaz de superar tudo. Enfim, chegando em casa, ela dormiu antes mesmo de ver a mensagem que Charles lhe mandara: “quem sabe da próxima você você vai acompanhada de mim ao cinema?” Assim, deixou de sonhar acordada e mergulhou no mundo onírico...

... Charles era jornalista bem conceituado na cidade onde moravam Vitória trabalhando como sua secretária tinha o carro do ano dois filhos lindos dois gatos de estimação e eram populares sendo cobiçados por partidos políticos devido a grande influência que tinham na população da cidade Vitória chegava a ter suas roupas imitadas pelas pessoas...

... O celular despertou! O sonho foi interrompido, pois o dia seguinte havia chegado, Vitória pegou o celular e leu a mensagem que Charles havia lhe mandado. Sem hesitar ela lhe respondeu. E assim foi acontecendo, até que os dois se casaram. É. Casaram-se! Rápido assim. Em uma semana já se diziam “eu te amo”, mesmo que da boca para fora. Nada demais, afinal Charles precisava de uma nova companhia, era viúvo recente e não tinha filhos. Ele encantara-se por Vitória e ela se enfeitiçara por ele. O destino era mesmo danado! A casa simplória, tinha uma decoração rústica, com móveis de madeira maciça e um tom sóbrio, espaçosa e por isso parecia sempre vazia, tapetes em todos os cômodos faziam companhia as paredes em tons pasteis. Pouco tempo depois chegaria uma criança. Tudo parecido com histórias românticas. Mas a gravidez não foi tão tranquila assim, apesar das fotos exibindo a barriga em frente ao espelho, seguidas de sorrisos forjados e expostas nas redes sociais. Mas o que havia de enjoos e mal estar era uma peleja. Seus nervos ficavam à flor da pele, ela não conseguia dormir, sentia uma fome insaciável e um calor insuportável. Até que finalmente a criança nasceu. Um menino saudável que foi batizado por Gustavo. Vitória nutria um amor imenso por aquele bebê, e mais uma vez: milhares de fotos e declarações de amor para o mundo inteiro ver. Até que de repente tomou uma birra do menino; achava-o feio, manhoso e chorão. Vitória se irritava com facilidade, chorava a toa, e se sentia exausta. Seu bebê não mamava direito, e se não fosse pela ajuda do vizinho e amigo da família Éric, que é enfermeiro, ela estaria perdida. E ainda criava em si uma antipatia por Charles, que lhe era apático demais, quase beirando a indiferença. O marasmo lhe exauria as forças. Ela sentia-se vegetativa, ansiava por emoção. Era sempre isso o tema das suas confissões comigo: ela era entediada; queria aventuras, e não ocupação.

***

O tédio, enfim, deixou de ser a temática de suas confissões, anseios, e reclamações. Graças a Deus! Porque Vitória estava ficando blasfema. Ela culpava a Deus pelo destino não atender seus caprichos. Vitória mudava gradativamente, como se tirasse de si uma máscara em câmera lenta, e depois outra, e depois outra... num desmascarar-se infinito. Quando Charles, que era um jornalista experiente foi convidado para fazer a cobertura de imprensa de uma festa da cidade, Vitória foi de acompanhante. Os convidados chegavam de outras cidades, a maioria em carros importados; o que fez Vitória sentir raiva de si mesma por sonhar com o carro do ano. Os vestidos das mulheres eram cada um mais lindo que o outro; as joias, os penteados, a maquiagem... O buffet esplêndido, o serviço estava impecável, a decoração esplendorosa, a comida divina. Tudo estava perfeito! E no final, a empresa contratante ainda pagou um hotel cinco estrelas para ela e Charles. Parecia um sonho, os lençóis, os travesseiros, o chuveiro, as toalhas, o café da manhã. Vitória comeu com vontade naquele... Só de imaginá-la comendo, enquanto me confessava, eu era capaz de sentir o prazer do paladar: ela mastigava e lambia os lábios num gesto quase obsceno. Chupava os dedos, fechando os olhos para sentir todo o sabor. O pecado da gula era quase uma luxúria quando ela me relatava suas compulsões. Aquilo mexia com meus instintos, me excitava, o pecado de Vitória me rondava... A festa acabou, e chegou a hora do check out. Vitória não conseguia se conformar que não tivesse uma vida daquela, que a realidade fosse tão chata, que a vida fosse tão injusta. Porque tantas dondocas eram felizes naquele mundo luxuoso, e ela não? Porquê?

Depois da tal festa, o tédio não existia mais para Vitória, pois ela resolveu ocupar seu tempo fazendo compras. Começou comprando um vestido, depois outro, depois outros... do singular ao plural, do singular ao extravagante. Sem se dar conta, ela comprava roupas que não usava, livros que não lia e comidas de que não gostava. Tudo por puro status. Ela queria ter. Buscava nas marcas e grifes sua identidade de descolada, de mulher moderna, de mulher fatal... Chamava Éric para lhe fazer companhia. Assumidamente gay, ele se sentia um personal style, e adorava quando ganhava um mimo... Além de ser uma amizade aprovada por Charles; afinal Éric ajudou e muito na difícil amamentação de Gustavo. Um dia, ao ir comprar sapatos Éric apresentou Vitória a sua amiga Leila, a vendedora que a atendeu tão bem, e de repente começaram um papo que fluiu naturalmente. Vitória passou a ir vários dias na mesma loja só para conversar com Leila. E Vitória não acreditava que tão rapidamente estivesse cultivando aquele sentimento por outra mulher. E os olhares começaram a se denunciar. Os sorrisos espontâneos e mal disfarçados aconteciam. Leila transparecia seu interesse pela menina, que em trapalhados trejeitos acabava por se boicotar. Vitória estava confusa, mas sentia-se desejada. O medo lhe produzia adrenalina toda vez que via Leila, seu coração disparava e ela se sentia bem demais. Mas essa intensa euforia durou pouco; Leila tinha sido promovida e transferida de cidade. Antes de ir, disse a Éric que havia se interessado por Vitória, mas que ela não correspondia a seus sentimentos. Éric adorou a notícia, o qual chamava de babado, e a tudo dizia “adoro”. Mas quando ele contou a ela que Leila estava de mudança, ela desmaiou. Ele a socorreu, mas ela precisou ir ao hospital ser medicada. Enquanto estava sob observação reparou em Éric brigando com sua equipe, que havia deixado o cloreto de potássio acessível; e falava assertivamente que aquilo era fatal se aplicado de forma errada, e que se acontecesse de novo, ele mesmo aplicaria diretamente na jugular dos seus funcionários, logo soltou uma gargalhada, revelando sua performance de falso vilão. Charles estava ali, e segurava a mão de Vitória, ele ficava apavorado com as constantes crises de nervo de sua mulher, a aconselhou em começar a fazer psicoterapia. Mas ela se negava. Por conselho meu, que fui procurado por Charles, sugeri que ela ocupasse seu tempo com os estudos; no entanto, só o que interessou a Vitória foi um curso de culinária.

O tédio voltou a rondar Vitória, que mesmo duas vezes por semana indo aprender a cozinhar coisas novas não se sentia realizada. Ela era inalcançável até pra ela mesma. Queria fazer mil coisas ao mesmo tempo. Sempre na ânsia de se realizar, de alcançar uma certa plenitude. Sempre insatisfeita. O filho pedia a atenção da mãe, e ela estava preocupada em pedir a atenção do mundo. A oportunidade surgiu quando Éric contou a Vitória sobre um caso de corrupção política no sistema de saúde da cidade. Ele aconselhou a amiga pedir a Charles que redigisse uma notícia de denúncia. Seria a chance dele se consagrar como jornalista. Vitória antes mesmo de falar com o marido já fantasiava o reconhecimento dele e a certa popularidade que ela ganharia em seu rastro. Na mesma noite ela conseguiu convencer Charles... e foi dormir pensando no sucesso vindouro.

No dia seguinte, ainda pensava no provável sucesso do marido. Na aula de culinária, o professor dela nutria cada vez mais uma simpatia por aquela menina. Ela era sonhadora, e cozinhava sempre pensando em jantares que nunca faria, e festas que nunca daria. Coisas sempre deslumbrantes... e ela sempre vislumbrada. Isso o encantava, ou melhor, o enfeitiçava. Márcio então começou a cortejá-la. Vitória se rendeu muito rapidamente aos encantos de seu mestre. Nem foi necessário muito esforço, até porque ela também já desejava o professor. Ela reparava em seus músculos e em seu peitoral grande e peludo, seu pescoço masculino e veias que saltavam de desejo , sua barba grossa e cerrada, seus olhos pequenos lhe conferiam uma ar de predador, e quando ele abria o sorriso de dentes brancos, o bote era certeiro: um beijo aconteceu, e Márcio pediu àquela moça que provasse o doce que havia feito; ele, então, sujou o dedo no doce e deu na boca de sua aluna para que ela o chupasse, e numa interpretação do prazer de saborear aquele momento fez-se sensual e logo os dois eram um só, em cima da mesa, cheia de morangos, chocolates, bolos, leite, mateigas, chantilly... Os utensílios caíam no chão, tilintando entre os gemidos lambuzados de tantos ingredientes e lascívia. Depois de se amarem, Vitória se pegou de novo planejando uma vida de felicidade plena. Tinha se deitado uma única vez com Márcio, porém sabia que seus sentimentos eram forte e verdadeiros, além de ter certeza que seu amante também sentia-se assim. Naquele dia, ela dormiu feliz e realizada. Chegando a negar as investidas de Charles que a procurou, e assim ela também se sentiu superior e vingada pela insipidez de sempre do marido. E eu como ouvinte, mais uma vez pequei ao me pegar desejando por Vitória; aquela mulher mexia cada vez comigo... eu não conseguia mais conter minhas paixões, e me aliviava sozinho, pedindo perdão por ser tão fraco. Talvez mais fraco que Vitória.

Mais um dia chegou. Os jornais anunciavam um flagrante de superfaturamento no sistema de saúde da prefeitura. A notícia, assinada por Charles Leon, ganhou grande repercussão. E Vitória em seu íntimo cultivava já uma centelha de esperança. Sua imaginação mais uma vez lhe permitia sonhar alto. Muito alto. Durante algumas horas naquele dia, Charles foi exaltado; e Vitória se mostrava claramente feliz pelo marido e por tudo que pudesse acontecer de bom. Como tudo que circundava aquela menina era efêmero, a alegria aguda logo se esvaiu quando desmentiram Charles... O superfaturamento tinha sido armado pela oposição política. Tudo que Vitória sonhara se desconstruiu antes mesmo de se construir; o sorriso que ela abriu mais cedo para o marido se fechou com a mesma facilidade. E sem nenhum ressentimento quis ficar sozinha, quando ele lhe pediu apenas um abraço, que ela negou friamente.

Vitória naquele dia plantou dentro de si uma raiva sem igual do marido. Além de apático, ele era também incompetente. Chamou Éric para fazer compras, pois precisava se distrair. Ele lhe deu a ideia de ir a cidade que ficava a duas horas de viagem, onde Leila era gerente da loja de sapatos agora. Vitória não pensou duas vezes... e em duas horas estava lá. Leila, que há algumas semanas tinha o cabelo preto, liso e comprido, agora tinha o cabelo vermelho, curto e assimétrico, suas roupas mostravam a pele muito branca; a blusa preta e o short jeans aumentavam o contraste, e deixava a mostra a tatuagem de laço que ela tinha na panturrilha. Depois de comprar alguns pares de sapatos, e jogar um pouco de conversa fora, Leila chamou Vitória para ajudá-la a procurar um produto no estoque. Quando, enfim, estavam a sós... os olhares se demoraram e as duas se beijaram bem devagar, um beijo intenso e sutil. Vitória sentia-se estranha, achava errado, mas gostava, e aos poucos se rendeu, e então sentiu-se desintegrar-se numa incrível sensação de prazer. Os beijos quentes e suaves, os toques precisos... a pele se arrepiava a cada lambida, a cada mordida, a cada toque, e foi quase impossível controlar os gemidos. As duas transpiravam desejo, exalavam vontades. As mãos de Leila percorriam todo o corpo de Vitória e apertava toda carne que encontrava, lhe trazendo para mais perto de si, sentindo melhor seu calor, sua pele, seu hálito, seu ar, que ela tentava lhe roubar com os beijos famintos; as caixas de sapatos empilhadas caíam, e tudo se bagunçava. Deitaram no chão e se amaram... Nem foi preciso se despirem para as duas viajarem ao céu numa explosão de luxúria. E mais uma vez, ao me confessar o que fez, Vitória me tentou, e dessa vez enquanto ela me contava seu caso com outra mulher, eu me satisfiz ali mesmo, no confessionário... deixando o flagelo para depois. Ela dizia não se arrepender, e admitiu ter gostado muito.

Por algumas semanas Vitória ficou dividida entre Marcos e Leila; nele via algo que a sociedade aceitaria; mas foi Leila quem a encantou mais. E toda vez que se deitava sobre a mesa nas aulas de culinárias e se entregava a Marcos era em Leila que ela pensava. Encheu-se de coragem, e um dia resolveu fazer uma surpresa a Leila. Comprou-lhe flores e foi sozinha a outra cidade, mandou que um rapazinho, de mais ou menos dezesseis anos as entregasse a Leila, enquanto ficou espionando do outro lado da rua. Deu um trocado ao menino, esperou um momento, e logo entrou na loja, comprou dois pares de sapatos, e pediu para chamá-la. Quando Leila apareceu trazia um sorriso que logo se desbotou. Vitória perguntou se ela havia gostado das flores. Ela disse que pensou que fosse de outra pessoa. Um tiro no coração. Leila, enfim, contou que era comprometida e lhe estendeu a mão, mostrando a aliança. Os olhos de Vitória se encheram d'água, mas as lágrimas estacionaram nos cílios... “Eu escrevi meu nome no cartão, e você ainda diz que as flores eram de outra pessoa?”, “Não havia cartão nenhum...”. Vitória engoliu o choro e o olhar molhado, o olhar ao longe, o olhar indignado de desilusão. De repente Vitória solta um grito, e começa a jogar todos os sapatos que vê pelo caminho no chão. Leila tentou acalmá-la, mas logo foi atingida por vários sapatos. Vitória lhe jogou inclusive os sapatos que comprara, acertando o rosto da mulher que ela desejava; e mesmo assim ela não parou, e continuou jogando os sapatos com a intenção de acertá-la de novo, e quando foi chamada de maluca, Vitória lhe gritou, chamando-a de sapatão nojenta. Os seguranças da loja se aproximaram de Vitória, que pediu que a deixassem, e saiu da loja... agora as lágrimas lavando o rosto borrado de maquiagem. Ela andou sem norte pelas ruas da cidade, até topar com o garoto que encontrara mais cedo; ele havia entregado as flores, mas esqueceu-se de entregar o cartão. Ela então pediu que ele a fizesse companhia para uma cerveja. Queria beber a desilusão.

Charles ligava no telefone de Vitória, que tarde da noite bebia num bar junto de Bernardo. Um adolescente, nem gordo, nem magro... tinha um corpo com um porte que lhe dava uma aura de mais velho, mais maduro, além da voz que ainda se engrossava assim como os pêlos da barba falha que nascia em seu rosto; a pele, própria da idade tinha algumas espinhas, mas os olhos verdes davam a tudo um tom poético. O celular vibrava sobre a mesa e Vitória só sabia reparar no jovem garoto. Sem pestanejar lhe perguntou se ele já esteve com uma mulher antes. Ele apenas sorriu, sem graça. E ela já afetada pelo álcool, deixou um dinheiro mais que suficiente para pagar a conta, levantou-se da mesa, pegou o garoto pela mão, chamou um táxi, e o levou a um hotel. O menino, totalmente sem jeito, tentou beijá-la, ela se esquivou, o jogando na cama e se despindo lentamente na frente dele. Os bicos do peito denunciavam o desejo, rosados e grandes fez o menino suspirar de vontade. Totalmente nua, despiu também o garoto; tirando a blusa e foi percorrendo a língua do pescoço ao umbigo dele, terminando de lhe tirar a roupa, revelando o sexo forte do jovem ninfeto. Ele tremia, mas demonstrava que o tesão lhe era viril... Vitória então se deitou e deixou que Bernardo fosse o seu prazer. Aquela barba macia roçando em sua pele e as mãos ainda lisas que percorriam seu corpo lhe faziam estremecer... o corpo quente e sem jeito, ansiando por ter e lhe dar prazer a enlouquecia. Ele enfim se uniu a ela, num gemido de nirvana, e o fato de estar sendo a primeira daquele garoto a deixava ainda mais fascinada; ela sendo quase dez anos mais velha que ele a excitava demais. A língua dele a devorava em beijos, carinhos e lambidas. Vitória teve o ápice de um prazer sublime e bruto, quando enfim deram o maior dos suspiros. E depois adormeceram, abraçados, com sorrisos de canto de boca... Dessa vez criei coragem de ficar nu e ouvir as confissões de Vitória livre de batina, apenas eu e meu corpo, pecando... buscando o prazer. Antes eu não queria acreditar que desejava Vitória, porém me rendi, e me imaginava no lugar daqueles que a possuíram. Além da luxúria, agora ela também me implantou a inveja. E eu me sentia a percorrer os círculos do inferno de Dante, pecado por pecado, até encontrar o paraíso: Vitória!

Mal amanheceu e o celular de Vitória apresentava várias chamadas perdidas de Charles. Primeira vez que ela dormia fora de casa. Deixou o amante da noite passada dormindo e saiu; o garoto ainda tinha um semblante de satisfação e lividez. Quando Vitória chegou em casa estranhou o rosto indiferente de Charles e seus olhar raso, cheio de aflição e raiva. Ela então se preparou para conhecer um Charles que até então não tinha conhecido... mas ele apenas lhe apontou a direção do quarto. O coração dela apertou-se ao ver Éric ao lado do filho, que delirava de febre. “Ele chamou por você a noite toda”, disse o enfermeiro. Vitória então lhe abraçou e lhe encheu de beijos, questionando porque não levaram a criança ao hospital. Charles então a respondeu secamente: “levamos, e ele já está medicado... é só rezar e esperar agora, é apenas uma infecção. Éric tem sido de enorme gentileza, suprindo, inclusive a ausência da mãe.” Vitória sentiu-se gelar, e sequer inventou qualquer desculpa. Ficaram quietos. Um silêncio gritante os desafiava. Mas a saúde do menino fazia Charles se controlar para não questionar o comportamento da mulher; e Vitória sabendo disso, se dissimulava. Charles saiu do quarto. Éric e Vitória se entreolharam. “Leila me disse o que você fez ontem. Onde você estava? Parece que está de ressaca.”, “E estou”, ela se limitou em responder. “Você está louca; está sendo...”, “Feliz!” - ela completou a frase do amigo. “Você está se enganando. Isso não é ser feliz. Não devia te dizer isso, mas você precisa acordar para realidade, sair desse mundo de sonhos e imaginação em que você vive. Esse mundo virtual que você almeja e posta nas redes sociais não existe, minha amiga.” Vitória que pedia orações aos seus amigos da internet para o filho e dramatizava uma preocupação que ela sabia que não tinha apenas deu de ombros as palavras do amigo. Éric se inconformou com a atitude da amiga, mas calou-se.

Vitória mexia no celular quando alguém a ligou. Não conhecia o número, pensou que pudesse ser Bernardo. Mas era a cobrança de uma loja. Sem pensar duas vezes, ela disse que precisava ir ao banco, e pediu a Éric para ficar com o filho. Ela precisava aumentar o limite do cartão e pegar um empréstimo. O amigo a repreendeu de novo, e mesmo assim ela foi ao banco. E me confessava tudo como se ela fosse certa na história. Pensei em dizer a ela que ela cavava seu próprio abismo, que ela transformava a música de Cartola sua trilha sonora. “em cada esquina cai um pouco a tua vida, em pouco tempo não será mais o que és... o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir tuas ilusões a pó... de cada amor tu herdarás só o cinismo, quando notar estarás a beira de um abismo, abismo que cavaste com teus pés...” mas como padre não poderia julgá-la, apenas aconselhá-la, mesmo tendo em mim um crescente misto de amor e ódio por aquela mulher, que de uma hora para outra arrumou mania de fazer caridade, mas num paradoxal altruísmo egoísta; talvez achasse redenção ser caridosa. E eu já me sentia guloso querendo ela toda para mim, e avarento por querê-la só para mim. Sentia raiva de Bernardo e de Charles; e me indignava porque eu era melhor que todos eles juntos. Eu estava vivendo um inferno por aquela mulher. Embora o filho se encontrasse doente, ela ainda me confessa que fez um empréstimo no banco, alienando o carro e a casa. Fez mais dívidas para pagar outras. Um bola de neve e futilidades. Alguns meses passaram-se, e Bernardo começou a frequentar a casa de Vitória; foi apresentado a Charles como filho de uma amiga. Vitória se sentia vingada do mundo ao enganar o marido, e ao enganar a si mesma. Achava que aquilo era felicidade... falta de preocupações, falta de ocupações. Ela queria apenas poder ser madame. Mas de repente se cansou de Bernardo; e para espantar o tédio lá foi ela de novo fazer compras... agora só pensava em comprar. Era uma obsessão. Agora era algo que fugia ao seu controle; ela comprava para se sentir bem, mas se arrependia, e ficava mal, e então fixava aquilo em sua mente até se satisfazer de novo... num círculo vicioso, num sem-fim. Vitória sempre fora compulsiva, mas dessa vez a compulsão tomou conta dela como a um demônio que sussurra em seu ouvido. Não demorou muito para estourar o limite dos cartões até serem bloqueados; os cheques foram devolvidos; e todo crédito se esgotou. Vitória quase adoeceu com as cartas e telefonemas de cobrança do banco. Bernardo em sua inocência comentou com ela sobre um agiota. E mais uma vez, sem ao menos pensar, Vitória foi procurar o homem a quem chamavam de Conde. E não adiantaria eu dizer que era perigoso, por isso não disse.

***

Vitória encontrou-se com o homem que morava num casarão, em um bairro simples, por isso ele tinha esse nome. Ao bater palmas em frente a residência uns cinco cachorros latiram. Uma mulher de turbante e vestido lhe recebeu e pediu que entrasse. A casa era oponente, a sala onde se sentou era clara e iluminada, com objetos de decoração luxuosos em estantes e mesas, alguns quadros pelas paredes, e vários gatos andavam pela casa. Apareceu então um homem de meia idade; com um bigode que lhe conferia um ar vintage, e o cabelo liso e desgrenhado voava com a brisa que vinha da janela. Vitória soltou um grito quando enfim a chamei pelo nome. Ela se virou e deu de cara comigo: o padre a quem ela confessava todos seus pecados. Quando Vitória me contou que iria procurar o Conde, eu tive uma incrível satisfação. Sabia do que ela precisava, e principalmente de todos os seus segredos. Agora ela sabia o meu. Mas tudo é culpa dela, que me enfeitiçou de tal modo que pensei na possibilidade de tê-la para mim. E assim me arrisquei, revelando que a função de padre era apenas uma máscara. Poupei a pobre moça de me contar e me pedir o dinheiro para quitação de seus débitos, e sem rodear ou lapidar a conversa disse logo: “Quero você!”, e pela primeira vez vi Vitória corar, sua pele pálida ganhou um cor-de-rosa, e seus olhos fugiam dos meus. Ela então resolveu me acusar... estava assustada, coitada. Não me abalei e deixei que disparasse sua incredulidade no fato do padre a quem confiou a história de sua vida por tantos anos fosse também um agiota. Eu sou bem pior que um simples agiota, mas isso bastou para deixá-la atônita. Quando não tinha mais palavras para me julgar, pus as cartas na mesa e proferi minha proposta: “Vitória, eu pago todas as suas dívidas, se você quiser. Eu poderia lhe pedir os seus cartões de conta bancária e senha, e também penhorar os do seu marido como de praxe. Mas para você será muito mais fácil...” Vitória permanecia quieta, mas não tinha para onde fugir e se inclinou para frente quando lhe fiz a proposta, denunciando seu interesse. “Mais fácil como?” ela questionou, “Quer se deitar comigo?”; “Sim. Há muito tempo imagino isso e sonho com isso... mas não por uma noite apenas. Quero que seja minha amante”. “Mas quando a dívida será dada por liquidada?”, “Nunca!” respondi me sentando ao seu lado, peguei sua mão e disse: “quero que seja minha amante para o resto da vida!”, e então a beijei. Vitória interrompeu o beijo e saiu andando sem rumo... ao tentar sair, os cachorros ladraram, e ela se pôs a chorar, dizendo que queria ir embora. “Padre, me deixe ir...”, então lhe pedi que me chamasse pelo nome agora: “Me chame de Conde”. Embora meu nome não fosse Conde de verdade, era assim que gostava de ser chamado. Deixei que a moça fugisse, assustada que estava, pois sabia que ela voltaria.

No dia seguinte Vitória entrou na igreja, e pediu para se confessar. Fui ao confessionário e me preparei para ouvir seus relatos, já com pensamentos de luxúria por aquela mulher. “Conde, fui ao banco e estão prestes a por meus bens em leilão. Fiquei desesperada. Até porque as procurações que usei eram falsas. Pensei até em me matar... peguei uma seringa cheia de cloreto de potássio da maleta de Éric, enfiei a agulha na minha veia... e eu queria, eu queria me matar, mas vacilei e Éric chegou a tempo de me impedir. Fui fraca e não tive coragem de injetar logo o veneno.” Ouvi pacientemente os dramas daquela mulher que logo disse que aceitava minha proposta e me perguntou sobre as condições. Sorri largamente. Pedi a ela que abandonasse o menino Bernardo e que ela fosse apenas minha, que eu bancaria todos os seus caprichos. Ela consentiu. O silêncio pairou, me adiantei para beijá-la e toquei seus lábios com os meus. Suavemente. Os santos nos olhavam e pareciam felizes por nossa felicidade. Até Nossa Senhora, a quem muitas vezes teve seu rosto substituído pelo de Vitória enquanto eu rezava e me enchia de desejo por aquela mistura de santidade e pecado parecia em êxtase. Ela abaixou a alça de sua blusa, revelando seu seio farto e rosa, a boca entreaberta e o olhar de perdição me chamaram para enfim sentir o sabor daquela pele, então senti a quentura daquela mulher na minha mão e na minha boca. Vi a imagem do êxtase de Santa Teresa na parede e fui despindo aquela moça, e fiquei a contemplá-la, como quem contempla a própria obra de arte ou a uma poesia. Ela então tirou minha batina, e ficamos os dois nus. Eu a envolvi nos meus braços e deslizei minha língua em sua nuca, passando por seus peitos e barriga até chegar em seu ventre. Ela depois fez o mesmo, percorrendo com tesão o mesmo caminho com seus dedos delicados, da nuca até enfim me por em sua boca e sentir o gosto do meu desejo. Depois a deitei de costas e pequei ao por meu corpo dentro do dela. Seus gemidos seguiam o ritmo da nossa dança, e eu me sentia encontrar com Deus a cada movimento. Beijava toda suas costas enquanto puxava seus cabelos e sentia cada vez mais intenso meu ser em sintonia com o dela ao cometermos tal crime. Até finalmente o maior dos pecados acontecer, o prazer do fruto proibido vir à tona, como um vulcão que entra em erupção. Essas cenas se repetiam constantemente. Às vezes mais de uma vez por dia, quando inventávamos uma confissão.

E assim vivíamos, na hipocrisia de negar a natureza e buscar a perfeição. Charles nunca soube de mim e de Vitória, assim como ela nunca soube de Charles e Éric. Por isso ele lhe era tão insípido, porque negava sua condição, fingia ser normal para ser aceito; eu tinha minhas desconfianças. Eu também fingia não saber que Vitória ainda se encontrava com o garoto Bernardo; controlava meus instintos e pecados para não por tudo a perder; talvez fosse apenas ciúmes meus. Bem fez Vitória, que virou minha madame, tal qual criminosa e fútil, porém feliz. Ao menos ela dizia ser plenamente realizada nas redes sociais. E assim a vida vai imitando a arte: com muitas madames Bovary e muitos Padres Amaros por aí, num realismo intenso que parece até ficção. Vitória: a mulher que nunca venceu; que continuou comprando seus livros de auto ajuda para encontrar a felicidade, continuou sonhando com uma vida de telenovela, continuou no seu mundo de eterna insatisfação... Entre tantos fingimentos, talvez o menos pior seja realmente fingir que se é feliz.

Rodrigo Amoreira
Enviado por Rodrigo Amoreira em 03/10/2015
Reeditado em 01/11/2015
Código do texto: T5403522
Classificação de conteúdo: seguro
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