A MENINA QUE APRENDIA TUDO (PARTE DOIS)
 
 
(continuação [parte um])

(...)
Mas D. Tonieta resolveu interromper a garota e toda aquela conversa bairrista, e voltar ao assunto que queria saber:
_ Mas o que mesmo você vai fazer em Goiânia?
_ Ih! Um monte de coisa. Hoje minha mãe vai me levar na Dr. Micaela para ela apertar meu aparelho e para colocar liguinhas de azul bem clarinho, parecido com os olhos da senhora. Depois ela vai me deixar na casa de minha vó. Então ela vai voltar para Goianira. Porque ela trabalha amanhã e ela quer ficar sozinha para namorar com seu Natanael...
A mãe arregalou os olhos.
_ Ana, cala a boca! Não fica falando as coisas da gente pra todo mundo. Nem pense em falar de seu pai, aquele bebum sem vergonha.
_ Mãe não  fala assim do meu pai pra todo mundo! Tá bom.
(...)
O publico ficou meio sem graça, inclusive Dona Antonieta, já arrependida de ter feito a pergunta.
_ Pois é D. Tonieta, amanhã de noite é aniversário de minha sobrinha...
Ela esperou algum feed-back diante o pronunciamento dessa informação. Era pequena mas tinha suas técnicas retóricas, e para ela era uma iformação bombástica. Uma menina de 6 para 7 anos que já tinha sobrinha. Essa coisa de ser tio era coisa de gente mais velha. Mas continuou.
_ (...) Olha se tem cabimento, eu com essa idade já tenho sobrinha. Sobrinha não, sobrinhos. Pois tem mais dois. É a Jaciely, ela vai fazer 8 anos, enquanto eu vou fazer 7 só no dia 24 de dezembro. Eu nasci na noite de natal. Eu gosto e não gosto dessa data. Não vai ter jeito de comemorar meu aniversário na escola, como fizeram meus colegas. Gosto porque todo mundo é obrigado a me dar dois presentes de uma vez. Cê sabe que eu quase me chamei Cristina ou Cristiana? Se tivesse nascido no outro dia isso  tinha acontecido. Igual minha avó lá em Lagarto. Coitada, por causa disso o nome dela é Natalina. A Jaciely nasceu num dia bobo: 17 de agosto! Não aconteceu nada nesse dia? A senhora sabe se aconteceu alguma coisa nesse dia?
Dona Tonieta desorientada em meio a esse turbilhão, pois ela nem sabia mais do que a menina estava falando, demorou a responder. Pois aquela é daquela categoria de perguntas que devem ser respondidas.
_ Olha, eu não lembro de nada. Mas deve ter acontecido alguma coisa. Mas nada que merecesse ser lembrado.
A menina assentiu com a cabeça, e gostou dela, ao contrário de D. Helenira. 
_ A senhora é muito inteligente, quase igual a mim. Deve ser isso mesmo, deve ter acontecido coisa bem pequininha. Tipo escorregar numa casca de banana. A gente ri na hora, mas depois esquece. Vou contar para a Jaciely. A senhora acha que ela deve me dar "bença"? Eu sou tia dela, mas ela implica de não pedir.
_ Vocês são crianças, acho que não precisa não.
_ Tá Bom!
(...)
Ela ficou calada... Por alguns segundos.
_ Minha mãe nasceu em 2 de novembro. Coitada dela né dona Antonieta? Devia chamar Difuntina, não é?
Ela perguntava mas não esperava resposta. Era pura retórica.
_ Mas não, ela se chama Cícera, por causa de um tal Padim Ciço. Cícera é um nome bonito. Igual a minha mãe. A Senhora não acha?
A mãe viu que o assunto de novo tava virando para o lado dela, então resolveu arrefecer o ânimo da menina.
_ Fica caladinha, olhando para a janela. E tente dormir um pouco.
Ela toda cordata, assentiu. Virou a cabeça para a janela e ficou olhando... Fechou os olhos. E então abriu os olhos de novo, olhando para a janela. Começou a ler. 
_ A-go-ro-qui-ma. Su-pe-le-men-to mi-ne... Ihii! Não deu para ler. Vocês sabem o que é su-pe-le-men-to?
Ninguém soube responder. Ou não quis. E ela continuou: lia e pronunciava todas as placas que via. No jeito dela. Mas era tanta placa, que mais parecia um intervalo comercial. Era mtratores, implementos agrícolas, sementes, remédios para o gado, galpões rurais e poa aí vai. Então ela percebeu uma tendência: quase tudo era propaganda de roça.
_ Olha só mãe, só tem coisa de roça. E a gente tá indo pra Goiânia. Colocaram as placas para o lado contrário. Não é? A roça é pro o outro lado não é?
_ É. Mas deve ser porque é em Goiânia que eles compram as coisas que precisam.
_ Tá bom! Ei mãe olha lá, o que tá escrito!
Ela se assustou, pois ainda tinha esperança que a menina dormisse.
_ O que é Ana?
_ Ali tá escrito: Max Mo-tel.
_ É.
Tentou despistar para não entrar no mérito daquele assunto. O resto do ônibus delirou para que ele prolongasse. Pois esse sim prometia.
_ É o nome do Tio Max. Será que aí é dele? Deve ser não, ele é pobre de dar dó. E o prédio é bonito e colorido. Mãe!!
_ O quê?
_ O que é mo-tel?
Então foi pronunciada a temerária pergunta. A mãe não queria responder. Pensou deixar por isso mesmo. Mas a cara da menina era só interrogação e interrogação. Além do mais, aquele Senhor Gordo, pela pinta que já deu, bem podia se intrometer e sapecar uma resposta meio despachada. Não... Ela teria que responder.
_ Aninha... Motel, não Mo-tel, é um lugar para as pessoas namorarem... Entendeu?
A cara dela foi de mais ou menos. Ficou insatisfeita com a resposta, viu que ali tinha mais coisa. Pensou, pensou e pensou. E decidiu que era necessário esclarecer as coisas.
_ Namorar?! Uai eu pensei que isso podia ser feito em qualquer lugar. Agora essa, um lugar só para isso! Já vi gente namorando até no meio da missa. 
_ Mãe, - falava puxando-lhe a blusa - é aqui que você e Seu Natanael vêm quando a Senhora me deixa em Goiânia?
A mãe deu-lhe um olhar 43, aquele de esguelha, que a filha, num idioma que existia entre as duas, que se desenvolve entre pessoas com convivem muito, de pronto compreendeu. Ela entendeu tudo.
_ Eca! Que nojo! Como é que eles escrevem uma palavra dessas desse jeito, pra todo mundo ver. Ainda mais o tio Max. Deve ser outro Max. Então é aí que eles fazem bobagem, essas pouca vergonhices.
Fez um sinal da cruz, como se tivesse em frente a um cemitério ou a uma igreja. Então não quis mais falar daquilo. Achou até melhor mudar de assunto ou até em... Calar a boca. Se isso fosse possível. Só voltou a falar quando chegaram no paraíso das placas. Era a Polícia Rodoviária, ali chegando na Vila Mutirão. Aquilo a enlouqueceu, para que tanta placa se nem dava tempo de ler. Ela ficou até com medo. Mas ela conseguiu perceber que se tratava de polícia. E ela tinha medo de polícia. Devido ao que tinha acontecido com a polícia de Goianira, onde quase todo o destacamento policial foi preso por envolvimento em tráfico de drogas, formação de grupo de extermínio, extorsão e até rapto. Foi um escândalo tal, que ela nem podia ver polícia. E agora ela ali toda espalhafatosa, com suas placas e uniformes. Mesmo sendo rodoviária, era polícia.
_ Manhê!!!
Falou, segurando na roupa da mãe. Já tinha passado ali várias vezes, mas ainda não sabia ler. E nem percebia, pois o ônibus passava por um caminho exclusivo. Ela ficou calada olhando para a Polícia. Passou.
_ Ufa!
Mal passaram e foi aquele vruuuuuuuum! Sobre o ônibus. Ela se abaixou.
_ Mãe a polícia tá atacando a gente!
_ Deixe de ser boba, foi só um avião.
Então ela olhou. Era sim. Um avião bimotor passou rasante sobre o ônibus, dando a impressão para quem estava dentro de que estava caindo sobre a condução.
_ Mãe ele tá pousando ali.
_ É sim, ali é o Aeroclube de Goiânia. Olha lá escrito.
Disse apontando para a pista que ficava na diagonal da rodovia. Onde havia vários pequenos aviões e os seus muitos hangares. Para ela foi uma maravilha. Andar de avião é uma das aspirações de toda criança. Similar a de subir em coisas.
_ Nooossa! É muito avião. É aqui que eles estacionam. Tem até as garagens deles. Eu sou loooouca para andar de avião. Eu não tenho medo. Eu acho. Helicóptero é que é perigoso. Alguns deles nem tem porta. Mãe, quando a gente for para Sergipe, a gente vai de avião? Tomara. Eu quero ficar na janela. Pena que de avião a gente não lê placas. Será? Será que andar de ônibus é mais divertido? Pode ser....
E falava e falava, até o brinquedinho chinês descarregar as pilhas. Ela olhava para a estrada, e lá na frente desenhava-se a silhueta dentada do skyline de Goiânia. Como ela gostava de ver aquilo. Ela gostava muito de cidade, e nada para ela era mais cidade do que o seu esqueleto de edificios. Foi dando uma leseira. Ela sentia uma sensação de conforto. A cidade é um lugar onde tem muita coisa, todas elas dispostas para a gente aprender. Ela se sentia menorzinha toda vez que chegava em Goiânia, como que submetida a um domínio que era mais forte que ela. Era meio opressivo. Mas ela gostava disso. Foi dando um sono e dormiu. Dormiu feito uma pedra por uns dez minutos até chegar no terminal de ônibus urbano. O ônibus parou e só com muito custo a mãe conseguiu acordá-la. De um súbito, por uma força estranha da natureza, todo mundo foi cuspido para fora do ônibus, com uma pequena ajuda das leis de Newton, como já se sabe. Aquele bolo de gente. Lá no meio a mãe arrastava a menina ainda meio sonolenta, que trazia às costas sua mochila Hello Kitty. As duas foram desaparecendo em meio a um turbilhão humano indistinto. Iam pegar o Eixão até a Praça A. Aos poucos a menina que aprendia tudo começou a desaparecer, virando só mais um número, numa cidade cuja única democracia era essa, transformar uma pessoa em só mais uma. Independente do tanto que sabia ou do que podia saber. Ela desapareceu, pois cidade é o  lugar que existe para que as pessoas não possam ser percebidas. A pessoa que aprendia tudo, do meu ponto de vista, virou estatística.