Útero
     
     Eu estava minguada, minhas mãos espalmadas na janela da casa do pântano onde me refugiara. O vidro, embaçado pelo meu hálito ofegante, tornava mais turva a penumbra que caia com a noite sobre o bosque verde-musgo. Em minha cabeça, imagens do meu marido exigindo-me tudo: dos lençóis estendidos simetricamente ao cumprimento do chiffon, que teimosamente não cobria meus joelhos. Os gêmeos eram uma cria dele: exauriam-me do leite ao suor: o rapaz, tão ortodoxo, cobrando-me tênis limpos para deslizar nas curvas de concreto; a moça, na sua imensa trivialidade, maquiando sempre as maçãs do rosto. Meus intermináveis fluxos me extenuavam ainda mais, deixando-me pálida e esquálida como a garoa. Fazia um esforço tremendo para fincar meus pés no chão, porém me sentia aleatória, quase dissipando.
     Então, eu me abrigava nos romances para me safar daquela familiar ficção prosaica, mas não chegava a fazer um mergulho íntegro nas páginas, com receio de perder meu faro materno. Alternava entre as letras e a mobília da sala, como meio de manter o vínculo com aquilo-que-se-espera-de-um-útero. Contudo, na semana anterior, minha tensão chegou ao limiar da lucidez: na igreja, durante o “benedictus fructos ventri”, sangrei. Em respeito à homilia, resisti às dores da cólica com a força feminina da passividade. Porém, quando o sacerdote abriu o livro sagrado, ajeitou os óculos e leu “...da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão...”, não contive a cólera, virei para o meu marido e disse:
     - Não fui eu que saí da sua costela, foi você que saiu do meu útero!
     Não houve tempo para que ele me segurasse o braço e respondesse “Ficou louca, mulher?” nem para que ele acordasse do estupor da minha insensatez e corresse atrás de mim, que saí desvairada da igreja como uma noiva que diz não. Dessa vez, não me dirigi a um livro na prateleira, nem corri os olhos sobre as páginas, lendo frases soltas para ver se caísse nas entrelinhas de algum parágrafo e tivesse um período de descanso. Dessa vez, meus pés foram devorando paralelepípedos, esquinas, ruas, estradas, trilhas até que meus passos se afundaram num charco, de cuja margem formava um caminho de pedras que conduzia a casa.
     Era uma construção meio oval, de madeira, que se desmembrava em dois cômodos, nas duas extremidades da parte de trás. Não estava trancada e parecia desabrigada, uma guarida para súbitos forasteiros como eu. O recanto me acolheu como um ventre. Entrei e me incubei, latente na minha insolência.
     Fiquei horas recolhida ao chão, entre os móveis cobertos como cadáveres, abraçada aos meus joelhos para que eles não perambulassem mais, como um feto,. Depois fui à janela, despertada pelo feixe de luar e instigada pela curiosidade de um gemido. Lá permaneci minguada, com as mãos espalmadas no vidro durante um bom tempo, até que fiquei cheia de ouvir o lobo uivar para a lua.
     O que me sobressaltou foi uma coisa esvoaçante que entrou repentinamente pelo basculante superior e se enroscou, debatendo no voal da imensa cortina.
     Eu, que tenho pavor de insetos alados e os vejo como helicópteros bélicos, recuei-me. Bestificada, vi a coisa ganhar volume e crescer verticalmente. Aos poucos, côncavos e convexos se movimentavam sob o tecido. Uma abóboda ganhou forma de uma cabeça que parecia levantar-se, algo cilíndrico arqueado se avolumou mais acima e, enfim, braços abriram o pano.
     As pupilas roxas emolduradas por raízes de vasos rubros. A pele transparente deixava ver o crânio tétrico e os vasos azulados do pescoço. A boca anêmica se abria num sorriso sedutor de sede alargado nos cantos pelas presas de marfim. Os olhos me miravam, lambendo meu colo. Eu me deixava, sucumbida.
     Ele se aproximou, erguendo as mãos macabras de amante soturno, como se fosse segurar-me o rosto e dar-me um ósculo. O olhar brilhando feixes de castelos ancestrais. Nossas faces, próximas, trocavam exalações. Ele, odor de catacumbas. Eu, chá de camomila.
     A cravada dos caninos foi precisa, na jugular que oscilava quase árida. O desmensurado morcego não teve tempo de evaporar em penumbras e cinzas.
     Suguei sofregamente a veia. Sorvi o caldo viscoso de mil eras. Senti o lamento de virgens velhas com seus terços, de esposas cativas em seus aventais, de negras agrilhoadas nos tumbeiros, de bruxas nos rossios cremadas, todas elas martirizadas pela mandíbula e suas articulações... Ele se esvaia, como as bexigas que estouravam em minhas mãos quando menina. Eu o traguei todo. Mastiguei cínica o esqueleto esquálido, triturei cartilagens e roí juntas. Deixei apenas unhas e presas, meu despojo.
     Um arroubo subiu-me pela coluna, entre meus seios brotou um brejo de suor. Desnudei-me. Abri as ventanas até as extremidades, saí das entranhas da casa e nasci na varanda. Sentei-me na escada. Limpei-me com as marolas de luar que surgiam das montanhas.
     E, enquanto eu tecia uma pulseira com o despojo de gadanhos e caninos - meu suvenir – vi a sombra lupina se despregando do grande breu do arvoredo, rastejando pela trilha de pedras, ganindo submissa e parando a meus pés, onde lambeu minhas falanges, tão belicosamente femininas. 
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 29/09/2015
Reeditado em 29/09/2015
Código do texto: T5398116
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