O Valor de uma Mulher

Millenium. Era uma das casas noturnas mais conceituadas de Porto Alegre, onde pessoas mal vestidas e feias não entravam. Não que essa fosse uma norma oficial do estabelecimento, jamais poderia ser, isso era discriminação pura, algo socialmente inaceitável. Se a mídia descobrisse tal prática, cairia em cima dos sócios da boate, um escândalo que nenhum dos figurões queria para si.Eram da classe A,e boa reputação neste meio era tudo.

Mas ainda assim a Millenium deveria ser exclusiva pra gente bonita. Através das mais diversas desculpas, os seguranças barravam o acesso dos excluídos dizendo coisas como “Casa cheia, sinto muito”,”Hoje está reservado para um evento privado”, ”Só entra quem comprou ingresso antecipado num dos parceiros da casa”, etc...

Contudo, para Ana, as portas da boate estariam sempre abertas: era uma modelo fotográfica. Trabalhava há seis anos para a agência Mega Model.

Após ocupar um lugar no balcão de bebidas, cuja forma lembrava a concha de um caracol high-tech, pediu um Martini ao barman. Estava aborrecida.Já se encontrava no lugar há duas horas e pelo menos meia-dúzia de homens a abordara,mas nenhum deles durou com ela mais do cinco,dez minutos.Logo diziam algo que os fazia perder a graça,ou senão já vinham com sem-vergonhice,e ela não se considerava apenas um pedaço de carne.Embora ganhasse a vida com a beleza,era apenas um trabalho,não mistura as coisas.Estava ciente de que os dons femininos iam além muito além de proporciona prazer aos homens.

As mulheres geravam a vida, davam à luz a filhos e os criavam. Tinham o poder de edificar lares, construir famílias. Quando os homens faziam a guerra, as mulheres promoviam a paz. Quando eles multiplicavam a tecnologia, as mulheres expandiam o humanismo. Quando os homens faziam o caos, as mulheres restauravam a ordem por meio da compaixão e da sensatez.

A revoltava muito ser vista apenas como um parque de diversões. Entretanto, não era uma feminista radical, daquelas que prega a extinção dos homens, reconhecia que precisava da companhia de um para o seu bem-estar emocional. Apenas gostaria que a tratassem como um ser igual a eles, não inferior.

Agradeceu ao barman e tomou um gole do cocktail. Pousou a taça no balcão, e olhou em volta.Quem sabe seus sexto sentido lhe apontasse um homem diferente dos demais.O interior da casa noturna era escura, embora fosse iluminada por frenético show de lasers que acontecia no alto da boate.Apesar da confusão de luzes coloridas, era capaz de distinguir as formas masculinas com nitidez.E viu-as paradas em rodas de amigos papeando,dando risadas,indo de um lado para outro, dançando,e até vomitando...

“Se os caras que chegam em mim não tão lá grande coisa, quem sabe naquele que eu tomar a iniciativa, acabe me agradando...”, pensou a jovem, antes de beber mais um pouco do Martine.

Por estar entretida na sua busca, não notou a aproximação de um homem. Ele sentou ao seu lado e pediu uma dose de Tequila. Mas logo seu corpo avisou-a da presença dele. Sentiu alguém à sua esquerda, lhe comendo com os olhos. Abriu um fino sorriso, prevendo que mais um tentaria a sorte com ela.

Esperava que ele se voltasse para ela e puxasse assunto com um “Tudo bem?”, ”Como vai?”, ou mesmo um simples “Oi”. Todavia,o rapaz não disse nada disso.

— Caiu. — falou, apontando para o ombro direito dela.

— Hã? — largou a outra, surpresa, para em seguida mirar na direção indicada. Viu que a alça de seu vestido havia desprendido do ombro. Usava um vestido vermelho sensual, repleto de purpurina.

Ao ajeitar a alça, virou pro outro e agradeceu:

— Obrigada.

— Não por isso, linda. Me chamo Pietro.E você?

— Ana.

— Que bonito nome. Vem do original em hebraico “Hannah”mais tarde do latim “Anna”, que quer dizer ”Aquela que é graciosa”, ou “A cheia de graça”. — logo que apanhou o copo de Tequila que o barmen acabara de pôr sobre o balcão,completou: — Tudo a ver contigo.

— Nossa, é mesmo? — proferiu a modelo, com uma expressão mista de surpresa e alegria — Puxa, não fazia ideia...

— É sim, anjo. E tá maravilhosa nessa roupa. Te deixa mais princesa do que já é.Muito chique ela também.Trabalha com moda?

— Sim. Sou modelo profissional. E tu o que faz da vida? — quis saber, animada. Quem sabe agora finalmente um cara bacana chegara nela.Bacana e bonitão.Muitos que a abordaram até eram bonitos de corpo,mas cara mais ou menos.

O corte de cabelo de Pietro estava disposto num penteado moderno,tinha os olhos verdes e um físico que mostrava ser frequentador de academia.Trajava uma camisa branca sopreposta por um blazer azul-marinho.Usava calças jeans simples e calçava engraxados sapatos pretos.

Depois de um gole de sua bebida, o outro respondeu:

— Interessante seu trabalho. Eu estudo Direito.Quero ter meu próprio escritório de advocacia.

— Que tri. Tenho uma amiga advogada, trabalha no escritório do irmão. Ela me conta o dia a da lá,e parece que é papelada que não termina mais,burocracia que dá nos nervos,clientes que querem saber mais que ela,olha,estresse quase o tempo todo.Se prepara! Haha! Ah, é, fora que a prova da OAB é um horror...

— Tô sabendo, gatona, meus pais são advogados, já me alertaram de como a coisa é. Mas me garanto.É o meu sonho. — e tragou o que sobrava da Tequila no copo, para em seguida solicitar ao barman mais uma dose.

— Hmmm... é? E esse sonho é seu mesmo ou da tua família?

— Meu. Tá, meus velhos ficaram muito contentes quando disse a profissão que queria pra mim, mas não impuseram nada. Sempre deixaram claro que me amavam muito,e por isso dariam todo apoio no caminho que eu seguisse.

— Gente boa eles, hein? Sorte sua ter pais assim...

Terminou de beber o Martine na taça, envolta de um ar tristonho. Naquele momento o barmen havia acabado de preencher o copo de Pietro com mais Tequila, e perguntou se ela queria uma nova rodada do seu cocktel.

A jovem recusou, não era de beber muito.

— Ficou triste. O que houve linda? — inquiriu o rapaz, sensibilizado.

— Ah, é... bom,é a minha mãe...ela não era a favor da minha escolha de carreira.A gente era do interior,da roça. Pra ela ganhar a vida como modelo era pra gente da cidade, pra gente mais bonita que eu, mais esperta... Não que ela soubesse como a coisa funciona, mas isso não impedia ela de me colocar pra baixo.Muitas vezes brigamos por causa disso.Ainda bem que meu pai me apoiava,e graças a ele,é que pude entrar num concurso que estavam promovendo lá na minha terra.Participei e fiquei entre as três melhores do desfile.Então ganhei um bolsa pra ir trabalhar e estudar a profissão na Alemanha.Um cliente da agência que promoveu o desfile buscava garotas do meu perfil,eu só precisava ser aperfeiçoada pro trabalho.

— No final tudo correu bem então. Como disseram que tu levava jeito, tua mãe deu o braço a torcer, né?

— Que nada! A única coisa que ela queria torcer era meu pescoço, haha!

— Putz, nem assim, é?

— É, a mãe é uma pessoa complicada, bem difícil de entender. Mesmo com a bolsa dada, começou a falar que era picaretagem, que tavam me enganado, que iam me levar pra ser prostituta na Europa, como ela tinha visto numa novela que passava na época... Nossa,foi um inferno...Bom,daí cansei de ficar ouvindo ela e fiquei na minha.Fingi que tinha entendido o que ela tava falando,evitando discutir,até que chegou o dia de vim aqui pra Poa, e depois embarcar para a Alemanha. Era menor de idade na época, mas meu pai assinou a autorização, e pude me mandar!

Pietro, demonstrando estar impressionado com a história de vida de Ana, começou a bater palmas para ela.

— Merece no mínimo essas palmas,linda. Que mulher você. Quanta garra e determinação feminina.São atitudes como essa que separam as mulheres das meninas.Muita adolescente por aí se acha mulherão,mas mulher de verdade é tu!

— Hahahahah! Sério que pensa isso tudo de mim? Olha, acho que tá exagerando,falando essas coisas só pra me agradar!

— As duas coisas... — continuou o jovem, animado, ao se por de pé e voltar-se para a lotada e psicodélica pista de dança : — Quer dançar?

— Aham!

Depois que Pietro pagou a nova rodada de Tequila que havia pedido,e o Martine de Ana, pegou na mão dela e correu para lá. Sob as batidas eletro-house, não apenas dançaram muito,mas conversaram mais,ainda que aos berros,e entre dança e papo,logo ficaram exaustos.Voltaram para o bar aonde estavam para dar um tempo.

— Nossa...puf...puf...fico sem dançar por alguns meses e parece que to morrendo...! — exclamou a top, alegre e esbaforida.

— É só uma questão de prática,anjo.Assim que voltar a movimentar bastante,vai aguentar mais tempo na pista... — continuou o jovem, ao se curvar para mais perto da outra e fitar com intensidade os olhos cor de céu dela: — Sei que acabamos de nos conhecer, mas no pouco que sei de ti, vi que é especial. Tão cheia de coragem e força de vontade...Capaz de enfrentar a própria mãe pelo que acredita.Quantas por aí abrem mão dos seus sonhos e preferem seguir o caminho mais fácil? Em vez de se esforçar para ter as coisas, preferem usar o corpo para se dar bem com os homens. Baita exemplo tu... — e se inclinou ainda mais na direção da jovem, com intenção de beija-la. Não houve resistência de parte dela.

Assim que ele desgrudou os lábios dos dela, com voz melosa disse:

— E pensar que quase não vim hoje aqui... Sabe,linda,fazia um tempo que não frequentava baladas.Quase um ano,pra ser mais franco.Era noivo,e fui traído,daí decidi dá um tempo pra mulher.Resolvi focar no trabalho e nos estudos.Assim continuaria se meus amigos não tivessem insistido pra eu vim com eles hoje...

— Ora, ora, quer dizer então que tirei as teias de aranha da tua boca, haha! Ou talvez não... cê disse um ano,né...? Acho que precisa praticar mais, pra recuperar a forma...

Novamente se beijaram, desta vez com Ana tomando a iniciativa. Deu-lhe um beijo intenso,de língua, deixando claro que havia gostado dele.E gostou mesmo, a tratou com um cavalheirismo e atenção rara de se encontrar nos homens.Cogitou se ele não fosse do tipo romântico.

Dos lábios carnudos da top, o rapaz passou para o pescoço. Enquanto mordiscava e dava lambidas perto do queixo,acariciava-lhe uma das coxas.

— Óh, lembra que tamo em público, não vai se passar...

— Sei disso, princesa, mas tu é tão incrível, que já te desejo de montão...

— Olha lá o que vai fazer... não gosto de fazer showzinho pros outros,viu...?

— Acredito, gatona. Já sei que é diferente da maioria das mulheres. — assim que levantou e pôs uma mão no rosto da jovem, propôs: — Não quer vir ao meu apartamento? Moro sozinho, perto do shopping Iguatemi. Tô de carro, rapidinho chegaremos lá.Depois de deixo onde tu quiser...

Ana se ergueu do assento, obrigando o outro a recolher a mão do rosto dela, e dar um passo para trás.

Com um sorriso, respondeu:

— Gostei de ti, Pietro. Te achei um fofo.Só que ir pra tua casa agora é precipitado.Não sou assim.Vamos nos conhecendo mais.Quem sabe em outro dia não rola? O que me diz?

Por um momento o rapaz ficou sem saber o que dizer. Pela expressão surpresa dele, estava claro que esperava uma resposta positiva. Logo se recompôs e, de volta com o ar gentil, disse:

— Claro, minha linda, o que for melhor pra ti. — após retirar do bolso interno do blazer o seu iPhone 6, prosseguiu: — Diz teu número que te adiciono no "Whats".

Assim que a modelo informou o número, o jovem disse que já ia indo. Tinha um trabalho da faculdade para entregar na segunda e não gostaria de dormir tarde.Usaria o domingo pra finalizar a tarefa.Explicou que quando a tinha visto caminhar na direção do bar,já estava de saída,porém preferiu ficar mais um pouco e ir falar com ela.

Partiu ao se despedir de Ana com um beijo.

— Quem é o gatão? — quis saber uma jovem ruiva, vendo Pietro ir, parando ombro a ombro com a top.

— É, gata, conta tudo pra gente! — exclamou outra moça, do lado da primeira que havia chegado. Essa tinha os cabelos negros encaracolados e a pele morena.

Eram as amigas da jovem. Tinham sumido, cada uma para um canto, pouco antes dela conhecer o jovem galante.

— Conto no caminho do banheiro.To apertada! — e rumou na direção do banheiro mais próximo,seguido pelas amigas tagarelas.

Poucos dias depois do encontro com o rapaz, a agência para a qual trabalhava a selecionou para um serviço em Milão. Gravaria alguns comerciais por lá.Foi quando, acomodada no banco traseiro do táxi que a levava para o aeroporto, teve um choque.

Pelo iPad havia entrado no portal do Yahoo, com o intuito de ler seus e-mails, e notou que uma das notícias em destaque se achava com a foto de Pietro. O título da postagem era “ POR TRÁS DE UM ROSTINHO BONITO PODE SE ESCONDER UM ASSASSINO”. Boquiaberta, clicou no link do texto.

Ficou sabendo que a polícia, por conta de uma denúncia anônima, havia invadido o apartamento dele e descoberto o cadáver de quatro mulheres. Ele era um assassino necrófilo, que levava jovens de baladas para a sua casa e as matava, a fim de usar seus corpos como brinquedo sexual. Em vídeos e fotos encontrados, mostrava o assassino fazendo sexo com as mortas.

— Tudo bem, senhorita? — interpelou o motorista, intrigado com a expressa atônita da modelo. Via o reflexo dela no espelho retrovisor.

Ana nada disse. Apenas deixou rolar algumas lágrimas pelo rosto, enquanto fitava o vidro da janela, sem ver a paisagem lá fora de fato.Estava perplexa.

— Aconteceu alguma coisa, moça? Se sente bem? — perguntou o taxista, preocupado com a súbita mudança de comportamento dela, e sua falta de resposta.

— Não, não, tudo bem, obrigada. Mantenha o curso. — disse a outra por fim, secando as lágrimas com as costas da mão, e suavizando a expressão num sorriso entristecido — Chorei de felicidade aqui.Li uma notícia que me deixou contente. Só isso...

E estava feliz mesmo.Depois do choque inicial, por saber que o homem cortês que lhe abordou, não passava de uma mentira, estava satisfeita por ser quem é. Grata por jamais negar os princípios que norteavam sua vida, princípios considerados ultrapassados para o mundo em que vivia. Não se interessava por relacionamentos efêmeros, prazeres de uma noite só, fazia questão de conhecer pra depois decidir se valia a pena se envolver.

Graças as suas convicções, era capaz de dizer “não”.

E foi um “não” que salvou a sua vida naquela noite.