885-O CABO É DOS NOSSOS - Ecologia Urbana

O CABO É DOS NOSSOS ou ÁRVORES ANCIÃS

Ao tombar derrubou o poste e arrastou consigo os fios da rede elétrica, de TV a cabo , e de quantas redes usam o posteamento da companhia de eletricidade. A frondosa copa, de galhos vigorosos, abateu-se com vigor, esfregando a ramada pela fachada da casa assobradada do outro lado da rua estreita. Quebrou vidraças, janelas abertas para o sol da manhã e arranhou toda a parede, danificando a pintura e tirando reboque. Dois carros estacionados sentiram na lataria o peso da copa, amassados como se fossem de papelão.

O tronco, medindo mais de meio metro de diâmetro, atravessou a rua de lado a lado. As raízes, levantadas com a queda, elevaram-se do chão, exibindo o intrincado entrelaçamento de radículas, quebrando o passeio em uma circunferência que chegou a atingir a parede do restaurante à porta do qual a árvore se situava.

Duas senhoras que caminhavam apressadamente rumo à igreja do Santo Cura D’Ars quase desmaiaram de susto, pois a imensa mole arbórea desceu na direção delas e por pouco não as atingiu. Sorte não teve o motoqueiro que transitava a toda e foi atingido nas costas pelas pontas da ramada e jogado ao chão. Ajudado por pessoas que assistiam à queda da velha árvore, levantou-se, verificou que não estava ferido, a moto incólume, na qual subiu e desapareceu ao virar a próxima esquina.

O pipoqueiro, cuja carrocinha instalara na esquina, à espera da saída dos fiéis da igreja, saiu correndo ao ver o primeiro movimento da árvore quando começou a tombar, deixando seu meio de vida abandonada à sorte. Por sorte mesmo os ramos não atingiram o carrinho de pipoca.

O barulho foi abafado pela densidade da folhagem, cujo peso foi por certo uma das causas da queda. Ouviu-se por perto um forte xuápe e nada mais.

O tronco atravessado na rua, coberto de líquen verde e brilhante, revelava a umidade dos últimos dias, marcados por fortes temporais. O verão de 2015, o mais quente dos últimos sessenta anos (diziam as autoridades, reportando-se às estatísticas) era intercalado por semanas de calor extremo e temporais fortíssimos. À época da queda da velha árvore da rua da igreja, muitas outras também caíram por toda a cidade.

Esta velha árvore que vi tombada não teria meio século de vida, plantada que fora na década de 1970 conforme projeto da prefeitura de intenso plantio de árvores na área urbana da capital mineira.

Podada sem método e aleatoriamente pela companhia de energia elétrica, para livrar os fios de eletricidade de alta voltagem dos galhos centrais, a árvore, como as demais de todo o lado esquerdo da rua, cresciam grotesca e desequilibradamente, encostando-se nas paredes dos edifícios laterais ou atravessando os galhos por sobre a rua. Visões dantescas de árvores mutiladas impiedosamente.

Não são, na maioria, árvores próprias a plantio urbano. Houve, na ocasião, uma diretriz segundo a qual deveriam ser plantadas numa mesma rua árvores de cerrado, nativas da região, que proporcionassem aos pássaros, com seus frutos selvagens, alimento e atrativo para povoarem a cidade. Assim, ao lado de pequizeiros e ingazeiras estão pés de ipês amarelos, jatobá, araticum, copaíba, pata de boi (rosa e branco) e outras, numa miscelânea que dão aspecto bizarro às vias públicas. Troncos diferentes, copas desiguais, florescência em épocas diversas, frutos e flores nunca produzidas ao mesmo tempo, enfim, uma parafernália arbórea.

O tronco da árvore caída mostrava, além dos sinais da idade, evidente trabalho de cupins, além de uma grande parte descascada artificialmente, uma tentativa humana, digo, desumana, de assassiná-la (como, aliás, já foram muitas).

As ruas do bairro onde moro, estreitas e com calçadas exíguas, sofrem mais com o crescimento desvairado e desigual das árvores. Muitas delas, de troncos grossos em ruas estreitas, acabam por obstruir o passeio e dificultando a passagem de pedestres. Raízes pouco profundas arrebentam o cimentado. Então, o frescor proporcionado pelas sombras não é sequer apreciado pelos transeuntes, que reclamam da dificuldade em transitar pelas calçadas quebradas ou tomadas pelos grossos troncos.

O corte de árvores, proibido aos residentes (mesmo que as árvores ameacem cair sobre suas casas) é de responsabilidade absoluta da prefeitura. Um pedido ao serviço municipal para abater uma árvore ameaçadora demora meses a ser atendido, e acontece de a árvore cair antes do atendimento do pedido.

Nos últimos tempos a prefeitura autorizou a empresa de eletricidade a cortar as árvores cujas galhas prejudiquem a fiação de energia elétrica, TV a cabo e outras gambiarras instaladas no postes. Então, o que se vê, é pura e simplesmente, o corte de todas as árvores de um lado só da rua, por onde passa a fiação.

A queda da velha árvore chamou a atenção de vizinhos e transeuntes. Enquanto a prefeitura não compareceu com os operários, serras e caminhão, o que demorou três dias, pessoas tiveram oportunidade de examinar, apalpar tronco, passar as mãos pelas suaves folhas e fazer comentários.

Como disse o idoso senhor, apoiado em bengala, que, da porta da pizzaria, olhava melancólico para o cenário de destruição, os operários serrando e cortando com vigor e pressa:

“Quando o machado entrou na floresta, as árvores disseram: O Cabo é dos nossos.”

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 28 de janeiro de 2015.

Conto # 884 da SÉRIE 1OOO HISTÓRIAS

contato: argobbo@yahoo.com.br

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/09/2015
Reeditado em 28/09/2015
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