O INIGUALÁVEL ESCREVINHADOR

O INIGUALÁVEL ESCREVINHADOR

Na adolescência fora músico. Passara anos em viagens, festivais, encontros com a vanguarda musical da época, trabalhos em estúdio, que fizeram-no pensar seguir o caminho da prosperidade como artista, antevendo o pacote completo: fama e dinheiro.

Casou, inesperadamente; teve um filho, repentinamente, e sua agenda mudou. A melhor definição seria que ela minguou, até se transformar em um chumaço de papel em branco.

No tempo de uma piscada, como num passe de mágica, o artista transformou-se em escriturário. Viagens só da periferia (sua toca) ao centro (seu batente), de pé e no sufoco. Mas a mente de um idealista não se rende, certo? Não sei se poderíamos dizer que Labão (nosso protagonista) era idealista, mas que tinha idéias interessantes, lá isso tinha. Poderia até incluir em seu currículo duas canções feitas em parceria com compositor famoso, mas evitava fazê-lo, porque eram de protesto, gravadas durante a ditadura. Foram recolhidas, na época, e ele preso. Não era por esse motivo, porém, que ele evitava falar em suas composições, mas por seu nome, no disco, aparecer como Lambão.

Agora tinha família, aluguel, cobranças, barriga, careca e cansaço. Olhar no espelho era desanimador, mas ainda restava uma brasinha acesa, lá no íntimo: a alma de artista.

Como seria possível trazer à tona a energia reprimida?

O físico não ajudava, recursos não existiam, a agilidade se transformara em slow motion e ao tentar agilizar as idéias, só lhe vinham à mente contas e mais contas. Escrevia sem parar, tentando listar possibilidades, para depois riscá-las e esquecê-las. Foi quando se deu conta do que estava bem à sua frente (ou em sua mão). Empunhando a caneta, poderia se dar bem. Talvez fosse melhor um computador, pois sua letra era totalmente ilegível, mas não tinha troco no bolso, nem para pagar alguns minutos na lan house. Todas as noites, antes de desmaiar na cama, listava idéias, que desenvolvia nos fins de semana, fechando-se num quartinho de despejo, com caderno pequeno de cinqüenta folhas, do tempo de escola, carcomido e cheio de orelhas, que possuía ainda umas trinta páginas em branco (e várias manchas amarelas). Não foi tarefa fácil, mas ao final de seis meses, dois calos nos dedos e uma azia de origem nervosa, considerou finalizado seu primeiro trabalho, e o enviou à primeira editora que lhe veio à mente.

Considerava razoável esperar duas semanas pela resposta, mas ao cabo de dois meses impacientou-se e telefonou. O problema é que quando ficava nervoso, gaguejava, e por mais que tentasse, não logrou ser compreendido; então decidiu faltar ao serviço e ir pessoalmente, mas ao se ver na recepção enorme, teve de segurar o coração para não saltar pela boca, e suando, foi até o balcão de informações. Prevenido, levou um papelzinho, contendo breve histórico e o pedido de resposta sobre o texto enviado, evitando mais um vexame por não conseguir verbalizar seu intento. Ocorre que ninguém conseguiu ler seus garranchos, mas no intuito de atendê-lo, foram passando de mão em mão o papel, até que penalizados pela aparência de cachorro sem dono de Labão, o levaram até a assistente social.

Ela olhava e não entendia, perguntava e não tinha resposta. O coitado suava, abria e fechava a boca, sem emitir som algum, até que a porta abriu e por ela entrou um dos diretores da editora. Travou um discreto diálogo com a funcionária e ela aproveitou para perguntar se ele entendia o que estava ali escrito. O homem, assim que pôs os olhos naqueles hieróglifos, virou para nosso herói, chegou bem perto, abriu um sorriso e gritou: - Lambão!!

Além do suor e da tremedeira, agora ele apresentava uma vermelhidão intensa na face.

O tal diretor era seu antigo parceiro musical, e estava contente em revê-lo, mas quase não o reconheceu, tão mudado, tão estranho, tão calado. Mostrou-lhe o papel e quis saber do que se tratava, mas o pobre sentia tanta vergonha, que só pensava em sair correndo dali.

- I-Isso é-é tu-turco. Vo-vocês nã-não fa-fazem tradução? Inventou a desculpa na hora.

- Não, meu amigo. Não é algo com que lidamos.

- En-então de-deixa pra-pra lá. Pra-prazer em vê-vê-lo e tchau.

Saiu dali o mais rápido que pôde, foi pra casa e se jogou na cama, exausto. Pegou uns papéis com trechos do texto enviado, que mantinha ainda consigo, olhou e não entendeu uma palavra sequer. Soltou um palavrão, rasgou tudo e encerrou a carreira de escrevinhador.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 25/09/2015
Código do texto: T5394272
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