ANABELA E TUFO
Assim que ouve o sinal do término da aula, a criançada faz uma algazarra danada, arrumando suas coisas na mochila pra poderem voltar pra casa. Anabela se apressa, sendo a primeira a ficar pronta, esperando apenas a liberação da professora. Queria ser a primeira na esperança de não encontrar Mirela e sua turma na saída. Quase sempre a encontrava pelo corredor e tinha que agüentar a gozação por causa de seu cabelo... É que a cor de seu cabelo era naturalmente azulado. Anabela não se incomodava com a cor do cabelo, mas tinha que aguentar a zoação de todos. Não sabia a razão pela qual o cabelo era daquela cor. Às vezes perguntava à sua mãe e esta sempre lhe respondia que era porque ela era especial, como uma princesa que se destacava das demais meninas; dizia sempre isso enquanto lhe acariciava o rosto e os seus cabelos. Já os colegas não viam com a mesma ternura. Anabela era sempre motivo de piadas e brincadeiras maldosas. Tudo por ela ser um pouco diferente das demais. Sua mãe sempre dizia: “Eu acho lindo seus cabelos. Você é especial. Mas deve ter o cuidado pra não se deixar levar pela maldade alheia, pessoas que queiram lhe fazer mal”.
Sua turma é liberada pela professora e todos saem correndo em direção ao portão de saída. Anabela sempre atenda pra desviar caminho, com receio de encontrar-se com Mirela. Não a vê em seu trajeto até o portão. Pensava estar com sorte, pelo menos até colocar os pés pra fora da escola. Assim que atravessa o portão dá de cara com a figura dela. Parecia que a estava esperando.
- Ei! – diz Mirela – Olhem só quem está vindo aí... A garota que se acha especial, com esse cabelo pintado. Vamos pintar o cabelo dela de vermelho com a tinta de nossos pinceis de colorir.
Anabela fica parada sem saber o que fazer, com Mirela e sua turma vindo em sua direção. Fica aliviada quando ouve a voz de sua professora, logo atrás de si.
- Vamos manter a ordem aqui. Esperem por suas mães e responsáveis, e tomem cuidado pra não deixarem estranhos aproximarem-se de vocês – e olhando pra Anabela – Está tudo bem? Você mora do outro lado da praça, e sempre vai sozinha, mas sua mãe sempre está na frente da casa observando seu retorno. Não a estou vendo hoje.
Anabela olha pra Mirela e depois pra sua professora.
- Sim está tudo bem. É que minha mãe foi pra maternidade. Ela me prometeu trazer minha irmãzinha que vai nascer.
- Puxa, que bom! Fico feliz que vá ganhar uma irmãzinha. E isso quer dizer que agora você tem uma responsabilidade a mais, que é ajudar a cuidar dela.
- Foi o que minha mãe disse. Vou ajudar muito minha mãe.
- Mas quem é que está cuidando de você?
- A tia Rosa.
A professora olha em direção à casa dela.
- Não a estou vendo. Tem certeza que ela está lá?
- Sim, tenho. Deve ter ido tomar água ou coisa assim. Ela prometeu à minha mãe que cuidaria de mim. Mas não se preocupe. O Tufo cuida de mim até eu chegar em casa – diz apontando para o cãozinho que vinha correndo em sua direção – Somos muito amigos.
Assim que Tufo se aproxima de Anabela, com o rabo abanando de felicidade por revê-la, ele resolve cumprimentá-la:
- Nhiiaauf! Nhiaauf!
Mirela que apenas observava não aguenta ficar quieta, e após uma risada debochada:
- Mas... isso é um cachorro ou um gato? Ao invés de latir, ele miou... hahaha!
Anabela aproveita que sua professora esta próxima, que numa eventual investida de Mirela a defenderia.
- É que Tufo é especial. Ele tem um problema de fala. Parece que está miando, mas só parece. Na verdade ele está latindo...
- Vixe!! Então é outro doido! Porque a dona já é bastante esquisita! Não me diga que ele sabe dançar balé também...
A professora intervém:
- Crianças! Sem brigas. Mirela vá sentar-se enquanto espera por sua mãe. E você, Anabela, siga pra sua casa que vou ficar daqui olhando até que você entre pelo portão.
Mirela aproveita que a professora está de costas pra bater com o punho fechado na outra mão aberta, insinuando acertarem as contas mais tarde... Anabela sai correndo, atravessa a rua e entra pelo meio da praça, indo em direção a sua casa, seguida de perto por Tufo.
- Nhiiaauf! Nhiaauf!
Sim, Tufo tinha problemas nas cordas vocais. Não conseguia emitir sons como os da sua espécie. Mais parecia miado do que latido. Anabela não sabia ao certo se ele nascera assim ou se fora devido às agressões de seu antigo dono, que tinha o costume de bater com violência e queimá-lo com cigarro, quando este era pequeno. A Sociedade Protetora dos Animais o havia resgatado após denuncias de vizinhos. Anabela ficara sabendo do ocorrido e pedira ao pai que a levasse pra ver o pequeno animalzinho. Apaixonou-se por ele assim que o viu. “Eu quero ficar com ele, papai!!” – e seu pai costumava fazer suas vontades. Desde então têm sido companheiros inseparáveis.
Ao entrarem pelo portão de sua casa Anabela vê sua tia maluquinha sentada no chão conversando com o namorado, Betinho, uma rapaz da rua de baixo, cheio de argolas pelo rosto, e eles nem percebem sua chegada. Anabela cumprimenta:
- Oi.
Nenhuma resposta. Ela faz cara de nojo e chama Tufo que a acompanha. Ao chegar no quarto ela joga a mochila no chão, perto da cama. Tenta olhar-se no espelho de uma casinha de bonecas, tão pequeno que mal podia ver metade do rosto. Olha pro cabelo em tom azul escuro, seus olhos claros, rosto arredondado. Achava-se linda. Olha pra Tufo que apoiara a cabeça em seu colo.
- Porque é que todo mundo acha a gente esquisito, Tufo? É só a cor de meu cabelo que é um pouco diferente. E você não é um gato. Apenas não fala como os outros cachorrinhos... e nenhum deles ficam caçoando de você. Aposto que essas pessoas também têm alguma coisa diferente e escondem de todo mundo... Devem ter vergonha. Mas nem ligo pra eles, Tufo. Nós somos amigos e sempre seremos. Eu te protejo e você me protege. Promete?
Como que entendendo o que Anabela fala:
- Nhiiaauf!
Ela o abraça e saem sem seguida em direção da cozinha, procurando algo pra comer. Já era hora do almoço. Nada feito. Sua tia deveria ter preparado algo pra comerem.
- Minha tia só fica beijando aquele lá... Que nojo!
Abre a geladeira, procurando algo pro ali. Vê apenas numa tigela um pouco de macarrão com salsicha, do dia anterior. Com o dedo ela vai tirando apenas a salsicha e jogando pra Tufo. Ela sorri enquanto ele mastiga e engole tudo sem se importar por estar gelado, comendo quase que de uma bocada só. Sua mãe não gostava que ela desse outra comida que não fosse a ração. “Não pode dar comida de gente pra ele, viu? Apenas ração” – Mas assim que tinha oportunidade ela cometia o pequeno deslize nas regras. E divertia-se com isso. Na fruteira havia algumas maçãs. Ela pega uma e da uma mordida ao máximo que sua boca alcançava. Tufo fica olhando enquanto ela mastiga, querendo um pedaço também.
- Você não gosta disso, Tufo. Óohh...! – Diz mostrando a maçã pra ele cheirar sem demonstrar mais interesse – Hum... Mamãe e papai estão demorando... A gente podia ir “buscar eles”, hein Tufo? Eu sei onde fica o hospital. Já tive lá uma vez – “Nhiiiauuf! – Haha, sabia que ia gostar da idéia. Tia Rosa nem vai saber que saímos. Ela continua lá namorando aquele rapaz esquisito... Eca! Acho bom levar mais uma maçã, vai que da fome no caminho.
Anabela pega uma sacola plástica do supermercado e coloca uma maçã dentro. Pensa um pouco: - Acho melhor levar duas! – Coloca outra e enrola a alça na mão de modo a não deixar cair nenhuma.
Do portão ela ainda se volta pra ver se sua tia notaria sua saída. Nada. Como se não existisse mais nada. Anabela procura visualizar então o outro lado da praça. O Colégio já havia fechado o portão de entrada. Mirela também já não estava mais por lá. Ela prende a coleira em Tufo.
- Isso é pra sua segurança, Tufo. Não faça nenhuma besteira, hein! Vamos buscar a mamãe com minha irmãzinha. E tome muito cuidado com os carros; eles são muito perigosos.
Atravessam a rua, seguindo pela praça. De longe ela vê o Sr Antenor, sentado num banco da praça, quase na esquina. Já se conheciam há um bom tempo. Ele morava com sua esposa em uma pequena casinha aos fundos do nº 17 daquela praça. Vez ou outra se encontravam enquanto ele e sua esposa caminhavam pela praça. O casal não tinha filhos e se encantavam com a esperteza daquela garotinha de seis anos. Ao se aproximar dele:
- Bom dia, Seu Antenor!
- Ah... Bom dia, bela princesa! Levando seu amigo pra passear?
- É. Vamos buscar minha mãe. Tufo vai me ajudar.
- Ele vai ser um bom cão de guarda.
- Já é. Ele é muito valente. Ele está com a coleira porque ele é muito valente e perigoso. Pode até machucar alguém que mexer comigo.
- Acredito nisso. Sei que são muito amigos. Mas porque alguém iria mexer com vocês? Você é uma doçura de menina.
- Isso porque o senhor não sabe como existe pessoa ruim por aí... Eu sei. Por isso ando sempre com meu amigo Tufo.
Antenor acha graça da espontaneidade com que a garotinha fala. Ele que há muito perdera sua coragem e a fé nas pessoas. Sempre fora uma pessoa positiva, ativa e altiva, idealista... Quando jovem sonhava viver em um mundo melhor para todos. Hoje confiava apenas em sua esposa, Etelvina. Estavam ali, esquecidos, ele com seus cabelos brancos, ralos no alto da cabeça, expressão de cansaço, olhos tristes mesclados com um sorriso de conformismo. Camisa puída, já em uso há muito tempo, assim como seus sapatos, com alguns furos nas laterais. Sorri com a espontaneidade daquela garotinha, que irradiava tanta força e coragem. Por um instante sente-se envergonhado por ter perdido aquele brilho que via agora e se entregado ao conformismo e esquecimento.
- Se o “senhor” quiser a gente protege o “senhor” e a tia – continua Anabela.
- Ora, não se preocupe conosco. Já estamos velhos, ninguém se importa. E depois, o que precisamos não se consegue assim... Bem, são problemas de gente grande, envolve dinheiro, contas pra pagar, gente que nos procura pra sugar ainda mais o que temos... nada que uma garotinha como você deva se preocupar.
- Eu sei como é... Às vezes sou muito cobrada. Sempre querem que eu estude, que lave isso, arrume o quarto... São tantas coisas pra fazer e tenho que dar conta de tudo. E olhe que sou uma só... Tufo é que me ajuda, às vezes...
Enquanto Anabela expõe uma gama de “deveres e provações” a cumprir regularmente, Antenor percebe que em cada etapa da vida passamos obstáculos a serem transpostos, como num “rank” ou nível. Essas preocupações são sempre compatíveis com as capacidades de cada um e, ao mesmo tempo, necessárias para a formação individual. E essa atividade é que mantém a sanidade de cada um, saber-se necessário, e de alguma forma sentir-se vivo. Antenor tenta desvendar o paradoxo da necessidade de um problema para poder solucioná-lo e manter-se físico e mentalmente ativo. Talvez mais pela necessidade de se superar, como fazem atletas, com sede de vencer seus próprios limites.
- ... e pra mim o senhor ainda é jovem, pode fazer muita coisa. A tia também... Cadê a tia Etelvina?
- Ah... Ela foi até a vizinha. Estão lá colocando a conversa em dia enquanto comem alguma coisa.
- E o senhor não quis ir junto?
- Preferi não ir. Estou cansado de tantas cobranças e satisfações do que não conseguimos... – Ele sente os olhos inundarem-se – Sinto que perdemos o brilho...
- Humm... Mas eu acho vocês muito bonitos. Tomara que vocês vivam bastante, assim vamos ser amigos pra sempre!
- Quem sabe, minha princesa. Mas talvez quando você crescer e tiver seus filhos eu já não esteja mais aqui... – provoca ele.
- Ah... Mas o senhor não pode mudar daqui. Eu gosto do senhor aqui pra gente conversar. Estou sempre aprendendo alguma coisa. Se o senhor for embora, quem vai me ensinar? E meus filhos vão gostar de ter mais um avô.
Ele sorri. Passa a mão pelos cabelos dela.
- Você é linda, princesa. Linda por dentro... e por fora também. Não deixe nunca que lhe digam o contrário. Você é uma garota especial.
- Você fala por causa da cor do cabelo?
- Seu cabelo também é lindo. Talvez seja porque um anjo tenha lhe marcado, pra nunca lhe perder de vista. Você é de uma doçura sem igual. Você é especial.
- Mamãe sempre diz isso.
- Porque reconhece em você, com sua doçura, uma capacidade de modificar os outros para o bem.
- Ahnn... Isso é bom? – murmura ela sem entender aquele diálogo.
- Sim... Isso é o que você é. Isso quer dizer que você é única. Cada pessoa é única na vida. Pode existir pessoa parecida, mas nunca igual.
- Então se eu sou especial o senhor também é. E é por isso que não quero que o senhor vá embora. O Senhor é como se fosse meu avô. Sempre me ensina alguma coisa. O Tufo também gosta muito, por isso ele não te “pega”. Pode confiar nele.
Pego de surpresa, Antenor não consegue segurar uma breve risada de satisfação por ouvir algo reconfortante.
- Estarei sempre aqui, minha princesinha.
- Mas agora eu tenho que ir. Não posso demorar muito – estende a sacola com as maçãs para Sr Antenor – Toma, pro senhor e pra Tia Etelvina. Estão limpinhas. Trouxe pra vocês.
Sr Antenor aceita, meio sem jeito e, outra vez, sente seus olhos inundarem-se. Nada havia comido até aquele momento. E na noite anterior havia comido apenas um pão velho. Ele aceita as maçãs.
- Depois eu trago minha irmãzinha pro senhor conhecer, ou o senhor vai nos visitar. Vou gostar muito – e puxando a coleira – Vamos Tufo, diga tchau.
- Nhiiauuf!
Atravessam a rua, alcançando a calçada seguinte. Sempre atenta a tudo e a todos. Era a primeira vez que andava por ali estando sozinha. Percorrem em silêncio até o meio do quarteirão seguinte. De longe ela vê uma figura esquisita, de cabelos despenteados, sem sapatos, roupas sujas, com um cabo de vassoura, usado como bastão, andando pra lá e pra cá, em uma pose ereta, olhar altivo, queixo levantado, olhar ao longe. Anabela pensa em parar ou atravessar a rua, mas sentia-se segura com Tufo ao seu lado. Seguiu em frente, com certo receio, mas muito curiosa sobre aquele sujeito. Mesmo assim tinha intenção de passar por ele sem encará-lo, e seguir em frente. Ao aproximarem-se, ele para de repente, olhando pra ela. Ela não resiste à tentação e o encara. Por um momento ele fica olhando pra Anabela e depois a cumprimenta com uma leve inclinação da cabeça.
- Milady!
- Oi – responde ela ainda um pouca atônita.
- Ah, esse perfume! – diz tentando perceber algo no ar – Reconheço o cheiro da nobreza em você, Milady. Bom saber que nem todos me abandonaram e que posso contar com tão preciosa amizade.
- Ahn...
- Não me reconhece? Sou eu, o príncipe!
- Você é um príncipe!?
- Sim – diz gesticulando e lançando olhar ao longe – Um Príncipe banido, em sua nau lançado ao mar... Ainda assim: um Príncipe.
- Você não se parece com um príncipe.
Sem movimentar a cabeça ele volta seu olhar pra ela. Observa por alguns segundos e diz:
- Assim como você não se parece com uma pessoa comum. Um pouco diferente... – acena em direção aos cabelos.
- É... Não sou mesmo tão comum. Pelo menos é o que minha mãe diz.
- Você é única. E isso a torna especial.
Ela se lembra então da conversa com Sr Antenor e das tantas que tem com sua mãe.
- Minha mãe sempre diz isso também. Ela diz que Deus me quis assim.
- Deus... Falo muito com ele. Deus me deu a razão para que eu tenha estabilidade e força, mas a própria razão tem me dado a loucura, me fazendo traçar meu próprio destino em meu exílio. Não espero que entenda, mas mesmo em rota oblíqua, acredite, internamente Deus tem vencido essa contenda...
- Não sei se entendi direito ‘isso aí não’.
Ele continua em seu devaneio, por instantes, esquecendo-se do mundo que o cerca:
- ... mas por mais que eu lute, por mais dragões que eu mate, sempre virá outro disposto a me derrubar. Eles estão sempre à espreita, aguardando qualquer momento de distração. Ao menor descuido... Zásss! – diz simulando um golpe de espada – Por isso um Príncipe não dorme nunca; mesmo um Príncipe expatriado.
- Eu sempre imaginei um príncipe casando-se com uma princesa e vivendo felizes para sempre.
- Felicidade... Ela nem sempre está por perto. Pra tê-la é preciso lutar. É preciso conhecer o outro lado. Aí sim, você estará apta a valorizá-la e entender sua real necessidade. Ela é fruto de conquistas, um prêmio, não por vitórias, mas por lutas! – ele volta seu olhar pra ela novamente - Por isso lhe digo: Nunca deixe a felicidade passar ao largo... Grite que ela vem.
- Acho que estou começando a entender.
- Somos o espelho de nossos esforços. Reconheço em Milady uma súdita à altura de meu antigo reino. Quando reconquistar ao direito que me foi tomado, desejo rever-lhe na corte.
- Poxa! É claro que eu gostaria. Essa sua história é muito criativa.
- A necessidade é o grande estímulo pra criatividade. Ela faz com que nos movimentemos e nos diferenciemos uns dos outros. Ela te torna mais criativo, mais inteligente, melhor... Um Príncipe! – novamente levantando o queixo com olhar distante.
- Você me parece muito ocupado. Ser príncipe não dever ser nada fácil. Tantos afazeres, compromissos. Deve ser uma chatice!
- É o destino. Não posso fugir dele. A vida traça uma rota... Você vai em frente.
- Sem saber se é bom?
- Assim é... Na surpresa total! A vida é um doce veneno, Milady, com duas caras, te açoitando com uma mão e afagando com outra. Adoça tua boca, te seduz, chupa e cospe... Assim sem cerimônia nenhuma, em total desprezo, alheio ao que você é. Por isso aconselho encará-la de frente, mostrando de que matéria é feito.
- Deve ser muito difícil lutar o tempo todo sem saber se será vencedor... Não pensa em fugir, cair no esquecimento? Assim ninguém lhe incomodará mais.
- Nunca. Carrego em meus ombros o peso de meus antepassados – Ele olha pra ela, procurando alguma reação de curiosidade e interesse – e acredite, são esses mesmos antepassados que me auxiliam e sustentam, deixando o fardo leve.
- Agora é que “não” entendi nada disso aí “não”!
- É que valorizo algo há muito esquecido: Honra. Herdei dos antigos, esses valores, os quais me formaram e me fizeram digno, reto. Se algo está errado, esse algo precisa ser mudado. Pra isso se faz necessário dar o primeiro passo. São esses valores que me sustentam, me conduzem e fazem de mim o que sou hoje e sempre serei! Jamais fugirei de minhas responsabilidades.
- Ahh... Acho que estou começando a entender.
Novamente ele a olha de cima. Olha pra Tufo sentado nas patas traseiras e olhar fixo nele.
- Seu fiel escudeiro também. É disso que falo. Às armas fiéis súditos. Lutemos por nós mesmos, lutemos pelos nossos.
- Nhiiauff!
- O Tufo quer saber a razão de você ter sido banido de seu reino.
- Pela transformação que ocorreu no reino. Interesses individuais corrompendo lentamente a dignidade, minando toda a estrutura.
- Você não tentou impedir? Sendo você um príncipe, você poderia “mandar” e tudo se resolveria.
- Impor, subjugar, ameaçar... Isso me tornaria igual a eles. E depois, que vidraças teria eu que quebrar pra melhorar a vista de meu reino? A unidade formada por todos é que nos torna fortes. Uma brecha formada e... tudo vem abaixo. Agora nos resta reunir os pedaços e, quem sabe algum dia, tudo volte à normalidade.
O dono do bar em frente aparece, trazendo uma coxinha em um guardanapo de papel. Acena pra Anabela para que não lhe dê muita atenção. Entrega o salgado ao príncipe. Este, sem agradecer, senta-se em um caixote ao pé da árvore próxima. Conservava uma postura ereta, com dignidade, tal qual um aristocrata. Estende o guardanapo de papel no colo e coloca a coxinha sobre ele. Olha pra Anabela e diz:
- Este faisão me foi ofertado por pertencer à realeza. Você certamente pertence a alguma linhagem real... Uma princesa talvez? - Era assim que sua mãe a chamava. Sr Antenor também. Ele continua: - Aceita apreciar a culinária exótica, digna dos grandes?
- Desculpe, mas não posso acompanhá-lo em sua refeição. Estão me esperando e preciso ir.
- Certamente és muito ocupada com suas obrigações. Como sempre digo: O dever em primeiro lugar. Certamente ainda iremos nos encontrar. Talvez queira visitar-me em meu castelo. Seria um prazer recebê-la.
- Certamente irei visitar-lhe. Gostei muito de lhe conhecer. Alteza... – diz inclinando os joelhos e a cabeça, em sinal de reverência.
- Nhiiaauuf!
Ele tira um naco da coxinha, correspondente à coxa do faisão e o leva à boca. Mesmo sendo condenado a viver como um bárbaro, procurava preservar alguma dignidade.
Anabela e Tufo voltam à sua jornada, em direção à maternidade. Podia sentir o olhar de curiosidade de todos que os viam, alguns riam, principalmente quando Tufo latia.
- Não ligue pra eles, Tufo. Eles não sabem de seu valor.
Anabela já estava acostumada a essas reações quando viam seus cabelos azulados. Procurava não dar importância a elas. Já havia entendido que a maioria das pessoas seguia um padrão de comportamento diferente ao que realmente eram. Todos tinham qualidades e defeitos, exaltando aquelas e escondendo estes, nem mais nem menos que os outros, mas na busca pela igualdade não se furtavam de apontar o que o outro tanto se esforça em esconder.
Foi Tufo quem a percebeu primeiro, soltando um latido espontâneo – Nhiiaauf! – a tirando de seus pensamentos. Logo ali na frente estava Mirela, sentada no degrau de entrada de uma clínica veterinária; parecia estar chorando. Anabela para de repente e por alguns segundos fica sem saber o que fazer. A última pessoa que ela gostaria de encontrar naquele momento estava logo ali na sua frente. “Impor, subjugar, ameaçar... Isso me tornaria igual a eles” – Ela dá um passo em direção à outra – “Se algo está errado, esse algo precisa ser mudado. Pra isso se faz necessário dar o primeiro passo... Jamais fugirei de minhas responsabilidades”... Mesmo temendo ser hostilizada, Anabela respira enchendo os pulmões de ar como se fosse coragem. Para na frente da garota, aguardando alguma reação. Para sua surpresa Mirela a olha sem hostilidades.
- Está tudo bem com você? – pergunta Anabela.
- Hum-hum... – responde, balançando a cabeça.
- Nnhiaauuf!
Mirela olha pra Tufo e sorri.
- Você gosta muito dele, né?
- É meu melhor amigo. E gosto dele assim, como ele é, com suas qualidades e defeitos... Se é que tenha algum defeito!
Mirela passa a mão pela cabeça de Tufo. Em seguida olha pra Anabela.
- Eu sei como é...
Apesar da aparência de tranqüilidade, Anabela fica atenta. Aquela não se parecia nem um pouco com a garota que havia lhe infernizado tanto na escola. Mirela continua:
- Eu tenho te feito muito mal, não é? Pra ser sincera eu não queria isso. Não sou assim. É que as outras meninas acham que sou forte e esperam isso de mim.
- Mas você na precisa ser o que não é.
- Eu sei. Na verdade, eu gostaria de ser como você... Não, não, não... Não queria ser você, mas sim como você; não interprete como inveja, mas admiração. Você é inteligente, esperta, cativante, com seu jeito inocente, tem um amigo realmente fiel...
- Sou como qualquer outra... Nem melhor nem pior. Sou igual a você.
- Nem vem!
- Verdade. Você tem apenas que se policiar, pra não se deixar influenciar por opiniões que não sejam suas. Com o tempo você se sentirá segura e agirá normalmente assim.
- Hummm... Pode ser.
- Fazer a coisa certa dá menos trabalho. Você não tem que ficar criando novas desculpas, desperdiçar tempo se policiando pra não cair em contradição... esse tipo de coisa. Vá por mim: Bem melhor ser verdadeira – Mirela sorri e ela também – Quem não gostar disso, não merece sua companhia; quem te aceitar é porque realmente gosta de você. Simples assim!
- Falando desse jeito, parece fácil.
- Mas é verdade. Comece a agir assim e você verá como é bem mais fácil.
- Nhiiauuf!
- Viu? Até o Tufo acha isso!
Elas riem. Depois ficam em silêncio por alguns instantes.
- Quando eu cheguei, você me parecia triste. O que faz por aqui?
- Ah... É que trouxe meu gato ao veterinário.
- Ele ta doente?
- Parece que foi envenenado. Assim disse o médico dele.
- Nossa! Que maldade! Mas ele está bem? Ou...
- Não, não... Ou melhor: Sim. Ele está bem agora. Mas o doutor disse que é melhor ele passar mais algum tempo aqui. Acho que amanhã vou poder levá-lo pra casa.
- Não sei o que faria se alguém fizesse isso com o Tufo.
- Ah-ah... Não se deixe levar pela raiva! Está falando igual a mim. Lembre-se: Admiro você justamente por poder lidar com tudo de forma diferente.
- É... Já me disseram pra ter cuidado pra não me deixar levar pelas ações dos outros. Isso me levaria a agir como eles, o que me tornaria um igual.
Mais alguns instantes em silêncio.
- Ouvi você dizer à professora que seu irmão nasceu. Como ele é? Dizem que todos tem cara de joelho, é verdade? – diz e ri.
- É... – também sorri – Assim dizem. Mas é irmã, menina! E ainda não a conheci. Estou justamente indo até o hospital pra buscá-la. Estava demorando tanto...!
- Tá! Mas, o que há de tão especial? É só mais um bebê que nasce. Daqui a pouco ela vai ficar te perturbando...
- Sempre quis ter uma irmãzinha. Depois, como ouvi minha mãe dizer a uma vizinha: Não devemos banalizar o milagre. Acontece muito, talvez por isso não damos a devida importância, mas é uma magia que acontece a todo instante. Uma magia que nos preserva, prolonga a existência, mantém a razão de tudo que somos e sabemos.
- Lá vem você falar difícil!
- Ouvi minha mãe dizer isso uma vez. Meio confuso pra mim também mas achei bonito de se dizer.
Elas riem.
- Tá certo então. Mas... Posso ir com você ao hospital?
- Claro que sim. Mas e seu gato? Você vai deixá-lo aqui sozinho.
- De qualquer forma não poderei ficar lá dentro com ele. Só vou poder pegá-lo amanhã, então...
- Então... Vamos então! – Nhiaauf! Riem os três.
Antes de se levantar, Mirela olha do outro lado da rua e aponta uma senhora carregando algumas sacolas.
- Há pouco você me falou sobre ser ou parecer algo que realmente não é.
Anabela vê uma senhora de aparência tranqüila, um pouco acima do peso, andando com passos curtos, expressão de sorriso, óculos arredondados, uma sacola de compras em cada mão.
- Parece bondosa, né? Pois todos sabem que ela costuma matar e assar gatos.
Anabela ri alto.
- Ora, não acredito que haja alguém tão mau assim. E ela não parece ser esse tipo de pessoa.
- É o que ouvi dizer
- Bobagens.
- Pode até ser. Mas eu não confiaria meu gato a ela.
Elas riem um pouco. O som das risadas atraem o olhar daquela senhora. Anabela percebe e decide dar um crédito a ela.
- Bobagem isso tudo. Vamos ajudá-la com suas compras e você verá que não é nada disso.
As duas atravessam a rua e aproximam-se daquela senhora.
- Bom dia – dizem uníssonas.
- Bom dia, crianças – responde ela.
- Poderiam me ajudar com essas sacolas? Moro logo ali.
Mirela que ainda não se convencera da bondade daquela senhora se adianta em responder:
- Desculpe, mas não podemos. Estamos atrasadas.
- Mas que bobagem, vocês deveriam se envergonhar, recusando ajuda a uma pobre velhinha – diz olhando novamente em volta, certificando-se de não ter ninguém olhando.
Dizem que o sexto sentido é algo que se percebe de forma bem sutil, invisível ao consciente, mas perceptível ao inconsciente. Algo na forma de olhar, ou no tom de voz, fez com que Anabela também tivesse receio de continuar na companhia daquela senhora.
Tufo intervém e resolve participar da cena, late, um pouco desanimado:
- Nnhiaaaunf.
A senhora abre mais ainda o sorriso do rosto.
- Ora, ora... Sempre gostei de gatos. Por favor, crianças... Me ajudem com essas compras – diz entregando uma sacola pra cada uma das meninas.
Em seguida aproxima-se de Tufo, que se mostrava um pouco arredio.
- Não quer dar ele pra mim?
- Não, não pode... – responde Anabela – É meu melhor amigo.
- Melhores amigos não existem.
- Existe sim.
- Pois se você deixá-lo comigo, prometo, farei dele o meu melhor amigo. Estará sempre comigo... Talvez dentro de mim...
Dizendo isso ela tenta pegar Tufo pelo pescoço, que não gosta da idéia, e reage mordendo o dedo dela.
- Ora, seu pestinha! Vamos ver se vai me morder quando tiver rolando num espeto...!
Anabela e Mirela jogam as sacolas no chão. Pegam a coleira e gritam juntas:
- Corre Tufo!
Saem correndo na direção da maternidade.
- Voltem aqui seus pestinhas!
Sem dar ouvidos àquela senhora e sem prestar atenção atravessam a rua sem mesmo olhar pros lados, chegando ao estacionamento da maternidade. Sempre correndo chegam à entrada no momento em que sua mãe e sua irmãzinha estavam de saída. Seu pai é o primeiro a notar sua chegada.
- Anabela. O que faz aqui? Quem te trouxe?
- O Tufo me trouxe. Ele é muito inteligente...
- Bom depois vou ter uma conversa séria com sua tia.
- Eu vim buscar minha irmãzinha. Vocês não dizem que tenho que cuidar dela? Vocês estavam demorando muito.
A mãe inclina-se, mostrando o bebê. Puxa o gorro, mostrando os pequenos e delicados fios de cabelo esverdeado. Anabela fica maravilhada com a novidade.
- Oh... Ela é linda! Uma princesinha!
- Nhiiiauf! Nhiiaauf!
Walter Peixoto
Maio/2015