Caricastro

Era a parte mais marginal da família De Castro, compreendera de perto a fome ousando fugir dela, ele corria. Como correu pela passarela a esquerda, fugida de cães embravecidos, com passos bem firmes, dinâmicos, saltava cercas e quintais alheios. Já imune ao barulho dos vizinhos, julgou-se a salvo do crivo, ergueu um mal juízo fez-se sentir alivio, e assim, de pé sobre assoalhos de equívocos ele seguiu confiante de mais um êxito. Quando o trabalho já estava completo retirou o seu gorro preto, seguindo pelos caminhos tortos com os bolsos cheios de metais, sua lanterna era a única testemunha, companheira indispensável a o trabalho noturno, apoiada na não usual facilidade em encontrar no escuro os frutos do roubo. Reza o manual do bom ladrão, decima quinta edição, que depois da fuga a lanterna deve descansar, para não atrair atenção de curiosos, não espertar suspeitas dos desconfiados. Josué todos os sábados realizava investidas diferentes, sentia que seu sangue quente ainda corria em suas veias de açúcar, estava completamente viciado no prazer, no gozo do ato ilícito. De tão competente fez se conhecido, admirado fez-se temido, esfomeados do mundo uni-vos. Para Josué roubar de pobre custava caro, custava o sono, roubar de rico... Ah, era lindo. Mais uma noite de trabalho tranquilo, vitimou dessa vez uma joalheria, saiu devagar como nunca houvera feito, ficaram pelas vielas os furtos do trabalho, ouros, pratas, joias belas, na lama, na terra sofrida. Voltou para casa desprevenido, sua lanterna o lume do caminho, ele pensava ainda estar sozinho. Ledo engano. A companhia não tardou se apresentar. Ouvira apenas os três tiros, o sangue escorrendo leva a lanterna ao chão, apressou o passo de vota ao lar, depois de emboscado esteve ferido, em frente á casa entoou o apelo... Freeedeeeriiico. Bradou, estridentemente de fora da porteira, um grito agudo, atípico. Seus passos pareciam embriagados, ignorando os carrapichos, por entre as marcas das rodas de carroça. Sua cabeça pendia meio curvada como se fosse descomunal o esforço de mantê-la erguida e seu olhar estava cansado, sedento por chegar. O tempo ainda húmido, do chuvisco que pingou durante toda madrugada, o nevoeiro que cobria a rua já se dissipava, nos primeiros e ainda frios raios de sol. Aos olhos do Josué nada era claro, tudo ainda carecia de nitidez, correndo chamou novamente e dessa vez já quase sem folego, Josué não percebera o tempo, que como uma pluma voava leve e suavemente, fugindo para longe dele, e a cada passo, a cada pensamento seu os instantes pareciam, cada vez mais escapar pelos dedos. Termômetros marcavam bem menos que cinco graus, no exato momento em que ele entrara, cambaleando porta a dentro, já no casebre, foi, aos trancos ter de perto com o capacho de pele de ovelha no interior da casa. Frederico apressou-se lhe aquecer, poupa-lo dos perigos hipotérmicos, esforço improfícuo, já não era o frio que incomodava mais, em boa verdade o frio se mostrava sedativo. Havia algo de errado. Cada segundo que passava o folego de Josué escorria como o sangue que jorrava dos três ferimentos de suas costas. E ele não queria jóias. Frederico, ainda tremulo, segurava o corpo do irmão inerte, sem forças para nada mais. Foram lágrimas as primeiras convidadas do velório, encharcaram os lírios férteis de luto. Só Frederico diante da própria existência. A solidão cria um novo homem? Quem saberia? Ele era outro e ainda não sabia aonde a existência iria lhe guiar. Frederico morre com Josué, nasce outro. Sem vontade nenhuma de ser, não vislumbrava futilidades, sobra um pouco de sopa no prato e muito isolamento. Os dias avançando, a excitação provocada pelo susto já não afetava seu organismo, tudo que ele sente não é frio, não é fome, dor ou maldade, em seu coração nada mais habitava, as frases que brotavam de Frederico de Castro nasciam das profundezas de sua dor e assaltavam sua boca, pareciam inaudíveis a todos que ainda guardavam preconceitos em porões de navios negreiros.