Asas Brancas e Negras
1 – ASAS BRANCAS
Acontecimentos aparentemente insignificantes são, a longo prazo, agentes de mudanças fundamentais em nossas vidas. Como as pequenas ondulações que surgem de uma pedra lançada na superfície de um lago.
Foi num dia quente de férias de Julho que eu, por acaso, descobri o Lago das Garças. Perseguia uma borboleta azul e preta que passou voando em frente a minha casa. Pretendia criá-la numa garrafa pet de Coca-Cola – algo que provavelmente não daria muito certo –, mas acabei indo parar no lago... e, por isso, nunca a capturei.
Meu maior passatempo, por volta dos sete anos de idade, era observar e colecionar (e, às vezes, matar) insetos, juntamente com meus amigos, os gêmeos Jorge e João. A borboleta daria um belo troféu para mostrar a eles quando voltassem da escola – naquele dia eu não fora à aula porque minha mãe assim decidira (nunca soube o real motivo, se é que havia realmente um). Mas o inseto deixou de me parecer tão interessante quando encontrei o lago.
Eu morava no bairro de Longa Vista, região metropolitana do Recife, um subúrbio imprensado e esquecido entre Estância, Jardim São Paulo e Areias. Era jovem e nunca tinha ido a um local mais longe que a escola ou a igreja que frequentava. Além dos filmes ou imagens em livros, nunca vira uma paisagem natural como aquela. Nunca fora nem mesmo à praia – que tantos falavam, mas me parecia na época tão distante quanto Marte, embora, mais tarde, viesse a descobrir que não ficava a mais de nove quilômetros da porta da minha casa. Nunca havia feito o que alguns chamam de entrar-em-contato-com-a-natureza. Se isso existe (se é que não entramos em contato com ela desde o momento que passamos a existir neste mundo e com ela permanecemos inevitavelmente interligados até o deixarmos), então aquela foi a minha primeira vez.
Era uma pequena bacia d'água, creio eu, agora que já vivi o bastante para descobrir que certas coisas que nos pareciam colossais quando criança, revelam-se ordinárias e diminutas quando crescemos e as comparamos com as imagens que temos na memória. Na época, me parecia uma grande, uma enorme, lagoa, do tamanho do universo inteiro, onde eu poderia içar as velas de um grande navio, se tivesse um, e navegar naquelas vastas e insondáveis águas azuis. A água, cercada de juncos, estava salpicada de branco com inúmeras garças e reflexos das nuvens no céu.
Fiquei um bom tempo observando tudo aquilo, surpreso e maravilhado. Perguntava-me como nunca tinha visto aves como aquelas antes, se elas estavam relativamente tão perto da minha casa. Como, aliás, meus pais, meus amigos, ou os pais deles, nunca tinham me falado daquilo? Seria possível que eu fosse mesmo o primeiro a descobrir aquele pedaço de paraíso? Como as pessoas podiam viver suas vidas normalmente, dia a dia, tão próximas dali, mas sem jamais visitar, nem sequer mencionar, um lugar que tinha o poder de nos fazer nos sentir tão bem?
Porque era um lugar especial. Isto estava mais que evidente para mim. E daquele dia em diante fiz dele o Meu Lugar Especial. Não o mantive em segredo, claro; mostrei aos gêmeos e o mencionei aos meus pais mais de uma vez. Nenhum deles demonstrou qualquer interesse semelhante ao meu. Meus amigos, no primeiro dia em que os mostrei, dizendo que "tinha feito uma descoberta incrível a qual eles tinham que ver o mais rápido possível", disseram que passavam por o que chamaram de "aquele olho d'água" sempre que iam visitar a Vó Rosa, e perguntaram o que é que tinha de tão incrível (a ponto de estarmos perdendo um episódio do Pica-Pau em pleno período de férias) naquele monte de água suja. Cocei a cabeça, sem saber bem o que dizer. O que diria a eles, afinal? Que aquele lugar fazia eu me sentir tão pequeno e ao mesmo tão grande que era impossível explicar aquela sensação tão... tão mágica? Mesmo que soubesse dizer isso na época, iria algum deles entender?
Acabamos por brincar de lançar seixos na água, disputando quem conseguia fazê-los quicar um maior número de vezes na superfície do lago (uma brincadeira que – por algum motivo que desconheço até hoje – chamávamos de Pão-doce) até o sol se pôr. Não me lembro de termos voltado lá, juntos, outra vez.
Os gêmeos certamente continuaram passando pelo lago nos dias de visita à avó deles. E eu continuei indo sozinho com frequência. Geralmente ao pôr do sol, sentava-me em alguma sobra de alvenaria próxima à margem, e ficava vendo o lago, as garças dando seus passos cuidadosos sobre as águas rasas, e os reflexos da luz dançando na superfície, ouvindo o coaxar das rãs e seus longos saltos na água – ouvindo a canção da vida e do mundo sem nada entre mim e ela. Ali eu sonhava, esquecia quem achava que era, e lembrava, pelo menos por instantes, quem realmente era. Não pensava assim na época, claro. Isso talvez nem seja realmente o que eu sentia, ou como entendia as coisas então, mas é desta forma que me lembro. Eram pequenos momentos que pareciam durar uma eternidade. Pequenas caixinhas maiores por dentro do que por fora. Lá eu lembrava e esquecia. Lembrava o que devia lembrar e esquecia o que precisava esquecer.
É difícil compreender precisamente o conceito da passagem do tempo quando se é uma criança. E para mim, que agora percebo ter sido uma criança ligeiramente mais sonhadora que o normal, era ainda mais. Houve uma época em que achei que o lago estivera lá desde a aurora dos tempos. Imaginava criaturas primitivas bebendo daquela água e vivendo nas entranhas dela. Via grandes pterodátilos caçando peixes em voos rasantes sobre o lago, com um vulcão cuspindo fumaça e lava vermelha num onírico horizonte distante. Imaginava o sol e a lua com as estrelas passando sobre ele por intermináveis dias e noites, enquanto o céu realizava sua infinita mudança sutil de tons, com nuvens passando pela superfície que refletia todo o cenário lá de cima. E imaginava o dia em que o primeiro ser humano abriu os olhos em algum lugar no mundo, em alguma época, desperto por algum poderoso primeiro amanhecer. E o lago já estava lá, capturando em sua superfície todo dourado dos primeiros raios solares a despontarem no céu como braços luminosos se espreguiçando, assim como sempre estivera, atravessando inexoravelmente as eras como sempre fora e sempre teria de ser.
O lago era meu acalento; minha resposta. Mostrava-me uma nova maneira de ver. Transmitia-me muito, sem nada dizer.
Não que ele respondesse a todas as perguntas, nem preenchesse todos os vazios da minha vida, é evidente que não. Mas de alguma forma que eu não entendia, mas sentia claramente em meu coração, o lago tornava as perguntas e os vazios irrelevantes. Não importava se naquele dia eu havia brigado com meu melhor amigo (que era o Jorge), ralara o joelho enquanto jogava bola, sofrera um castigo por algo que fizera em casa, se meu pai tinha me batido por estar de mau humor, ou bêbado, ou porque o Santa Cruz tinha perdido um jogo amistoso... estas coisas deixariam de ser tão importantes ou mesmo dolorosas se eu pudesse correr para o meu lugar especial, sentar-me numa velha sobra de alvenaria e contemplar as últimas luzes daquele dia brincarem na superfície do Lago das Garças. O lago dava-me a certeza de que nada (não apenas minha pequena vida, mas tudo o que existe, existiu e viesse a existir) era em vão. Tudo, por mais tristes ou ruins que alguns acontecimentos fossem, valeria a pena no final. No final, um grande plano envolvia tudo, e as pequenas coisas seriam esquecidas. Ali, no Lago das Garças, era-me dada a oportunidade de espiar este grande plano através de uma pequena brecha. E eu me maravilhava numa exultação silenciosa diante daquilo.
Queria sentir-me assim para sempre.
2 – ASAS NEGRAS
Aquilo, claro, não aconteceu.
Cerca de quatro anos após a minha descoberta do lago, minhas visitas a ele foram se tornando menos frequentes. Era como se a brecha, mais aberta no início, se fechasse gradativamente com o passar do tempo. Ainda estava lá, claro, mas mais como uma memória do que uma presença de fato. E havia ocasiões em que eu levava algum livro de aventura para ler na tranquilidade do lugar.
O que vou contar aconteceu num destes dias. Um dia em que eu estava especialmente confuso e particularmente triste.
Há uns dez meses, o pai de Jorge e João tinha arranjado um emprego numa distribuidora de alimentos em São Paulo, e se mudara para lá levando a família consigo. De acordo com as últimas notícias, estavam todos bem por lá, mas em Pernambuco havia um garoto que sentia falta dos amigos. Eu cursava, então, a 5ª série do ensino fundamental, numa escola nova, pois na minha antiga só havia turmas até a 4ª série. Só que eu não tinha me adaptado muito bem a este colégio. Tinha a impressão de que a maioria dos garotos não gostava muito de mim pelo simples fato de eu levar as aulas e os professores a sério e querer aprender alguma coisa com eles. Algo que era relativamente comum na minha antiga escola, para a grande maioria dos meninos, nesta, parecia ser a coisa mais abominável que alguém poderia fazer. Eles se certificavam de punir-me diariamente por ser aquele idiota almofadinha que lia nos intervalos das aulas em vez de brincar de atirar biscoitos coloridos – distribuídos na merenda – uns nos outros.
Naquele dia, Luís, um baixinho forte que os garotos chamavam de Banguela, batera em mim na frente de toda a turma da 5ª série C do Colégio Monte Claro, em Longa Vista. O motivo foi o meu trabalho de artes (um desenho do Lago das Garças feito em cartolina branca, a lápis grafite e colorido com lápis de cera até as duas e tantas da madrugada) que foi elogiado pela professora na frente de todos – algo que me deixou mais constrangido do que orgulhoso. E pessoas como Banguela, que não fizeram trabalho nenhum, foram chamadas à atenção pela professora, e incentivadas a se espelharem no meu exemplo. O que era constrangimento e timidez em mim, pode ter sido confundido (como geralmente acontece) com presunção e arrogância por alguns. No intervalo que sucedeu a aula, enquanto fui ao banheiro, alguém transformou meu trabalho de artes num quebra-cabeça de minúsculas peças de tamanhos irregulares espalhadas pela sala. Eu não seria capaz de montá-lo nem com toda paciência (e durex) do mundo.
Entrei na sala, vi aquele confete de cartolina espalhado, e logo percebi do que se tratava. Num dos pedaços, pousado sobre o assento da minha carteira, havia o desenho de umas garças do lago, borrado furiosamente por uma caneta preta – indicando que a brincadeira de rasgar tinha começado com uma inocente brincadeira de “pintar” o desenho do novato. Luís sorria e apontava para mim, sorria e apontava, quase todos na sala riam com ele. Eu estava dolorosamente consciente dos meus olhos começando a juntar lágrimas, e certo de que iria me engasgar e morrer com toda aquela raiva se não a cuspisse para fora naquele momento.
– Foi você, seu Banguela desgraçado!... Foi você, seu nojento! – Disse ao garoto, que agora parava de sorrir e de apontar, e fechava os punhos, com uma coragem e seriedade que até então não sabia que possuía.
– Você me chamou de quê, seu veadinho? – Ele se aproximou estalando os dedos da mão, com visível satisfação no rosto – eu mordera a isca e era o tipo de peixe que ele adorava fisgar. – Ah, agooora você se ferrou bonito. – Disse ele.
O primeiro golpe foi uma joelhada no meu estômago que me deixou imediatamente ser ar. Quando dei por mim estava no chão, tentando respirar. Senti outra pancada no mesmo lugar, mas desta vez foi um chute, e encontrou meus braços em vez da barriga. Permaneci em posição fetal, para proteger-me, tentando desesperadamente respirar. Senti ainda mais cinco chutes, três nas costas, dois na cabeça (que me fizeram ver estrelas e planetas). Então ouvi Luís Banguela gritar:
– ME SOLTAAAAAA! ME SOLTAAAAA! EU VOU MATAR ELE! VOU MATAR ESSE VEADINHO FILHO DA...
Finalmente consegui respirar. Minhas costas doíam e minha testa ardia. Senti um liquido pegajoso escorrendo pelo meu rosto e provei o gosto de sangue e lágrimas na boca. Todos olhavam para mim, espantados. Mas alguns dos meninos ainda riam. E alguns meninos e meninas evidentemente sentiam pena de mim – o que era ainda pior.
– Ei, como tá? – Perguntou Alex, um garoto que devia ter duas vezes o meu tamanho, e, como eu, não era muito de falar. – É melhor ir pra coordenação, boy, tá sangrando isso aí. Bora lá.
Mais tarde soube que fora ele quem tivera a iniciativa de tirar o Luís Banguela de cima de mim. Talvez, se eu não tivesse mudado de escola depois do ocorrido, eu e o Alex tivéssemos virado bons amigos.
Da coordenação fui parar num pronto socorro, onde recebi três pontos sobre a sobrancelha direita, conselhos inúteis dos enfermeiros (“brigar não leva a nada, meu filho”, “violência gera violência”, e quando disse que não queria brigar: “não briga dois se um não quer!”, o que era bem verdade, mas não tinha sido uma briga, eu tinha apenas apanhado), e reclamações da minha mãe (“sinceramente, eu não esperava isso de você, rapazinho”, “onde você tava com a cabeça?”, “brigar por causa de um desenho idiota? Olha só, você já é um rapazinho...”, “sei que era um trabalho, mas você não já tinha recebido a nota, não tinha? Ia querer ficar com aquilo pra quê? Pra juntar mais lixo dentro de casa? Onde você tava com a cabeça?...”).
Em casa, depois de chorar por meia hora no chuveiro, almocei ainda soluçando, ouvindo mais uma chuva de conselhos, e esperei minha mãe ir tirar sua soneca da tarde.
Então fui para o lago.
Não sabia exatamente por que precisava dele. Mas precisava desesperadamente.
A quantidade de garças havia diminuído nos últimos tempos, e havia dias em que não havia mais que uma ou duas, mas o Lago continuava sendo das Garças para mim.
Estava tão absorto em meus pensamentos que só notei a presença dos urubus sobrevoando o lago ao chegar lá e ver dois dos três que estavam pousados, alçarem voo, fazendo estardalhaço, com suas grandes asas negras, só para voltar instantes depois, após perceberem que o garoto da testa emendada ali não estava interessado em comer o precioso lanche da tarde deles. A comida boiava próximo à margem oposta à que eu costumava ficar, e sobre ela, eles pousavam, bicavam e comiam. Contornei o lago a fim de ver do que se tratava. O cheiro de coisa morta, e os próprios urubus, porém, indicavam que não devia ser algo muito agradável.
Os urubus alçaram voo novamente, gritando protestos, quando me aproximei e dei uma olhada bem de perto no banquete que estava sendo servido ao ar livre.
Era algo morto, claro.
Algo morto, podre, com a carne rasgada pelos bicos das aves, partes brancas que pareciam ser ossos expostos e vermes saindo de um buraco, boiava no meu lago.
Meu primeiro impulso foi querer vomitar, voltar correndo para casa e tentar esquecer que uma coisa tão nojenta daquelas estava nas águas do meu lago justamente no momento em que mais precisava dele. Mas se fizesse isso, quem livraria meu pequeno paraíso daquilo? Quem se importaria em limpar um lugar que aparentemente só era visitado por um garoto qualquer, garças, rãs, urubus e insetos?
Ninguém.
Mas se aquela coisa se espalhasse por toda a água, contaminando-a de uma maneira que viesse a matar as rãs e os peixes que eram provavelmente a razão das visitas das garças? Aliás, será que não era por isso que cada vez menos garças vinham ali? Será que aquela podridão estivera oculta nas águas, assassinando toda vida dela, e agora finalmente se revelara à superfície? Bem, a conclusão que cheguei foi que se não tirasse aquela coisa dali, meu Lago das Garças, em pouco tempo, se tornaria um lugar fedorento, desprezível e sem vida. E não teria mais para onde correr quando um novo idiota resolvesse me bater por um motivo qualquer.
Quando passou tempo suficiente para me acostumar razoavelmente com o odor, resolvi tirar aquilo dali. Fosse qual fosse o bicho que resolvera bater as botas no meu lago, deveria ser removido e enterrado – com todas as honrarias que merecesse – bem longe dele. Como e onde enterraria a carcaça seria algo para se pensar mais tarde, no momento, sabia apenas que tinha que fazer aquilo o quanto antes. A região em volta era desabitada – motivo pelo qual raramente passava alguém por ali – havia restos de casas derrubadas (o que indicava que a região talvez já fora algum dia habitada), e terrenos baldios, onde, nestes, havia coqueiros erguendo-se entre os charcos e regatos que alimentavam o lago. Foi num destes terrenos que encontrei um grande galho de coqueiro. Seco, julguei que ele ofereceria resistência suficiente para ser usado como pá.
Quando voltei havia quatro urubus sobre a carcaça, enquanto outros observavam com negros olhos famintos, empoleirados nas mangueiras e coqueiros próximos ou planando em círculos no céu acima. Três dos quatro que estavam comendo levantaram voo quando me aproximei.
Um deles não.
Encarou-me com seus olhos negros e guinchou, abrindo bem o bico. Vi uma língua nojenta e uma garganta ainda mais escura que os olhos, e que me parecia a caverna onde todas as coisas terminam.
Recuei um passo.
O galho seco de coqueiro vacilava em minhas mãos.
O urubu tornou a guinchar.
Então imaginei uma cena, como se um filme tivesse começado a ser exibido involuntariamente na minha cabeça. Ou como se todo aquele dia se revelasse um terrível pesadelo.
Eu largava o galho e corria. O urubu me perseguia e me derrubava com suas garras penetrando fundo em minhas costas nuas através da camiseta regata do Pato Donald que eu usava. Depois disso, todos os outros caíam sobre mim como uma grande e faminta nuvem de gafanhotos. Bicos e garras arrancavam nacos da minha carne, que provavelmente seria muito mais saborosa que a carcaça no lago, já que era fresca, macia e ainda tinha sangue inocente fluindo nas veias. E cada um daqueles pedaços suculentos – que um dia, juntos, tinham formado meu corpo, assim como a folha de cartolina inteira um dia tinha formado meu desenho do lago –, juntamente com órgãos inteiros, desapareceriam nas escuras gargantas daquelas criaturas – engoliam avidamente minhas tripas como um pintinho amarelo engole uma minhoca. Em instantes, não restava nada além dos ossos que um dia tinham me mantido em pé, brancos, manchados de vermelho, sobre o solo de terra batida, os menores sendo disputados pelas aves que ainda não estivessem satisfeitas ou que estivessem atrasadas.
O pavor me dominou. Não conseguia tirar os olhos da ave em minha frente. Certo de que, se me virasse, tudo aquilo iria acontecer exatamente como eu havia imaginado – tão certo quanto a luz do sol.
Soltei o galho e recuei mais um passo para trás, querendo mais que tudo chorar. O urubu voltou-se para a comida parecendo não fazer a menor distinção entre carne podre e tapuru. As aves que tinham fugido se aproximaram novamente.
Não sabia o que fazer. Se chorasse e fizesse barulho, atrairia a atenção daqueles olhos carniceiros novamente – e eu preferiria levar outra surra do Banguela, na frente de toda a escola sorrindo feliz, a isso. Estava paralisado. Inesperadamente, uma criatura alada pousou sobre as costas da minha mão paralisada de medo. Foi um pouso leve, mas me fez sentir uma onda de energia invadir meu corpo. Gritei balançando o braço com força. Mas então percebi do que se tratava.
Era uma borboleta.
Não uma borboleta qualquer, mas uma azul e preta, as mesmas cores daquela que anos atrás me levara a descobrir o Lago das Garças. Na ocasião, eu não tinha dúvidas que se tratava da mesmíssima borboleta. Então, subitamente, todas as lembranças do lago acenderam-se como se unidas num único poderoso jato de luz que afastava toda escuridão da tristeza e do medo. Foi ai que percebi que os urubus tinham fugido ao ouvir meu grito de susto, e agora me observavam novamente, afastados, parecendo se perguntar se eu estava mesmo querendo comer a comida deles ou não.
– Vão embora! – Gritei – este lago não pertence a nenhum de vocês. – Eles não pareceram ouvir minha voz. Permaneceram lá, provavelmente esperando que eu fosse embora para que eles pudessem continuar a refeição.
A borboleta pousou na folha de uma das plantas do lago, e lá ficou, indiferente à vida ou à morte, ou aos meus gritos. Apanhei o galho seco do chão onde o largara e fui até a margem do lago novamente. Tentei revirar a carcaça (não sem antes dá uma olhadinha nos urubus, todos empoleirados nas árvores, exceto um, que sobrevoava o lago a uma altura razoável, provavelmente aquele que me desafiara) e vi que o que havia abaixo da superfície do lago era muito maior que aquilo que se mostrava acima. Indo aos limites de minha força, consegui por fim colocar a maior parte da carcaça para fora da água.
– Meu Deus! – Exclamei.
A carcaça era um homem (ou aquilo que sobrara dele).
Um de seus olhos fora arrancado (provavelmente comido por algum bicho de dentro ou de fora do lago) e da cavidade onde ele deveria estar saiu uma barata d’água, veloz, para então se esconder novamente numa das cavidades do nariz. O olho que sobrara – que tinha um tom de azul muito semelhante ao da borboleta, ou assim ficara após a morte do dono, a pupila negra contribuindo para a combinação com as asas do inseto – estava aberto, sem brilho, fitando o céu azul de fim de tarde de julho como se perguntando: “por quê?”.
Numa das bochechas havia uma cavidade com uma pequena colônia de vermes. Os lábios haviam sido comidos; o cadáver, com poucos dentes tortos à mostra, não parava de sorrir para mim. Havia três aberturas ao longo do peito e do abdômen – feitas, talvez, por tiros de arma de fogo. Sob uma delas, algo começou a se agitar, até que saiu uma serpente, arrastando-se e debatendo-se desesperadamente, à medida que passava pela abertura que era pequena demais para ele, em direção à água. Anos depois, me perguntei se isto teria acontecido de fato, ou se foi apenas minha imaginação que criou esta imagem na ocasião, ou a acrescentou à memória, mais tarde. O fato é que ela está lá, e não duvido que tenha acontecido, só acho que não foi uma serpente, e sim, um muçum.
Contemplava tudo aquilo como quem vê um filme de algo distante ou irreal. Como se separado de mim mesmo. Então, pouco depois do aparecimento do muçum, fui tomado por uma tontura e um enjoo incontrolável. Não conseguia parar de pensar em como o lugar que eu amava tanto, desde criança, podia conter algo tão ruim... e como as próprias criaturas daquele lugar que era para mim de alguma maneira sagrado, quase uma janela para o paraíso, estavam se alimentando daquilo.
Senti o mundo se abrir como um alçapão sob meus pés.
Cai.
E girei, girei e girei.
Estrelas nasciam, dinossauros rugiam, carros se locomoviam, aves voavam, mamíferos sangravam em morte e em nascimento, e estrelas morriam.
O tempo deixava de ser uma reta e se tornava um círculo, um círculo que girava, girava e girava dentro de outros infinitos círculos menores e maiores.
E eu caía, caía e caía.
Quando finalmente dei por mim, meu almoço estava fazendo o caminho inverso dentro do meu corpo, escapando por minha boca e meu nariz em espessos jatos.
Tudo ia parar nas águas do lago.
E eu chorava.
E tremia como viciado em abstinência.
E via o vômito avançar cada vez mais pela superfície da água em minúsculas ondas, lago adentro.
Quando senti que não ia colocar mais nada para fora (porque agora meu estômago era a única coisa que havia lá dentro), sentei-me ao lado do corpo daquele infeliz que seguramente morrera por não ter pagado alguma dívida de drogas, (com minha camiseta ensopada de vômito na cara do Pato Donaldo que sorria irreconhecível), contemplando a superfície das águas, como fizera inúmeras vezes antes.
Então houve paz.
Exatamente como sempre houvera em ocasiões anteriores. Muita paz. Sem pensamentos, dúvidas, medo, sofrimento, ou dor, apenas paz, durante uma eternidade. Não houve nenhuma resposta, mas todas as perguntas eram, naquele momento, irrelevantes. O sol se despedia daquele longo dia, o silêncio reinava, e quanto mais escuro o mundo ficava à minha volta, mais sereno e tranquilo eu me sentia.
Quando a escuridão se fez por fim completa, já sem me importar com o que tinha acontecido na escola, fui para casa. Se quando me afastei os urubus voltaram para comer aquilo que sobrara de um homem, não tiveram muito tempo para isso. Assim que cheguei em casa, contei tudo à minha mãe (exceto o fato de eu ter revirado o corpo, claro) e ela ligou para a polícia que veio com o carro do IML e recolheu a sobra do homem mais tarde – observados por uma multidão de curiosos que perderam o capítulo da novela das seis daquela tarde.
Só voltei ao lago mais uma vez.
E foi para me despedir.
Um dia, no meio daquele ano, nas férias de Julho, a mesma época em que eu encontrara o lago pela primeira vez, aliás, acordei e encontrei minha mãe chorando com a cabeça sobre a mesa redonda da cozinha. Soluçava muito e pediu para deixa-la só, sem me explicar o motivo das lágrimas.
Meu avô chegou por volta das duas da tarde.
– Você agora vai morar com o vovô. – Disse-me ele, pondo a mão sobre minha cabeça, mas sem olhar para mim, e sem mover a mão.
– Eu não quero. – Foi a minha resposta automática, enquanto afastava a mão dele. Meu coração acelerava.
– Não fale assim, olhe o respeito! Vim buscar você e sua mãe.
– E o meu pai? Cadê meu pai, vovô? – Não consegui conter as lágrimas – Minha mãe chorando, e agora isso...
– Ele está bem. Vai vim mais tarde pegar as coisas dele... Mas não vai morar com a gente. Seus pais... – Ele suspirou – seus pais não vão morar mais juntos... por um tempo... queira Deus...
Meus avós maternos moravam em Cavaleiro, Jaboatão. Longe o bastante para eu saber que passaria muito tempo até que houvesse um motivo para visitarmos Longa Vista e eu pudesse ver meu lago novamente. Talvez nunca mais o visse. Meu avô tentou me segurar, mas eu corri. A compreensão total da situação e a falta do meu pai era um golpe que só iria me atingir, e ferir, mais tarde, no momento, precisava apenas do Lago das Garças.
Corri até ele e disse um último adeus.
Não havia nenhuma garça – não naquele momento. Sentei-me, como sempre fizera, numa sobra de alvenaria, e o contemplei. Contemplei cada folha que vestia o lago. Contemplei cada gota que o enchia. Cada ponto de reflexo de luz. Cada micro-onda soprada pelo vento na superfície. Não havia mais mágica em lugar nenhum. Tudo aquilo me parecia seco. A brecha para o “mundo encantado” que me fora apresentada ali, anos antes, fora fechada no dia em que eu encontrara o corpo do traficante. E era por desconfiar disso, e temer constatar esta verdade, que eu não voltara lá desde então.
Chorei um choro singular composto de nada além de uma única lágrima para cada olho.
– Adeus. – Falei.
Respirei fundo.
Me virei e nunca mais vi o Lago das Garças.
3 – ASAS NEGRAS E AZUIS
Julho, 20 anos mais tarde, eu, casado, publicitário, morando em Natal e passando alguns dias das férias em Recife, resolvo visitar o bairro em que morei quando criança.
– Aonde você vai? – Pergunta minha esposa com voz de quem ainda está parcialmente no mundo dos sonhos.
– Preciso resolver umas coisas. – Era minha palavra chave para pedir permissão para sair sozinho. Em outras condições, Vanessa me faria explicar exatamente que coisas eram essas, com quem e exatamente onde essas coisas seriam resolvidas.
– Ah...– Diz ela, apenas, antes de ser tragada novamente pelo sono. Sei que ela vai me ligar preocupada mais tarde, quando acordar de fato, mas são cinco horas de uma manhã de segunda e sei que ela, de férias, só vai acordar depois das dez – e de uma caneca fumegante de café extra-forte.
Antes das seis, já estou na Avenida Recife, deixando o bairro e a praia de Boa Viagem para trás, seguindo em direção ao bairro de minha infância, me perguntando como estaria o Lago das Garças, se é que ainda estaria lá.
A primeira impressão que tenho, ao chegar em Longa Vista, é que o progresso econômico dos últimos anos por fim o alcançou – ainda que apenas de raspão. Ruas antes de terra batida agora estão asfaltadas. E estradas que não existiam, agora estão repletas de veículos novos em movimento.
Dirijo por aquelas novas estradas e antigas ruas, percebendo que quase tudo ali me é estranho. Perguntando a alguns moradores, descubro que a minha antiga casa foi uma das que foram removidas para a construção de um retorno para a Avenida Nova da Consolação. E depois de me informar mais um pouco, percebo que esta mesma avenida passa no lugar onde antes havia restos de casas derrubadas, e um pequeno lago que algumas garças e um garoto solitário costumavam visitar. Curiosamente, as pessoas se lembram bem dos terrenos baldios e das casas que foram derrubadas para a passagem da avenida, mas nenhuma entre as que eu entrevistei, se lembra de qualquer lago – com garças ou não. Fazem até aquela cara de quem percebe que está deixando passar algo importante quase ao alcance, mas de nada lembram.
Estaciono o carro e vou até um bar e lanchonete na beira da Avenida Nova da Consolação. Ainda não são nem oito horas, mas eu peço uma Coca-Cola mesmo assim.
– Há quanto tempo fizeram essa pista? – Pergunto ao dono, um homem baixo, com poucos cabelos brancos sobrando na cabeça, e uma camisa aberta pela metade, enquanto observo os carros passarem em direções opostas nas duas mãos da avenida, procurando algo que confirmasse que aquele era mesmo o lugar onde o lago existira.
– Têm uns 20 anos, num tem, Rosa? – Grita o homem, enquanto destampa a garrafa do refrigerante com um abridor feito de um pedaço de madeira e um prego.
Me viro e vejo uma senhora morena, com uma camiseta branca, velha, com um Patolino sorridente, quase apagado, estampado na frente. Há, no desenho, um balão de fala com algo que eu não consigo ler. A mulher diz:
– É... por aí... – num tom desinteiriçado.
– Vinte anos... parece que foi ontem. – Suspiro e ergo um pouco a vista, por acaso, até a fachada interna do Bar.
Está escrito
BAR DAS GARÇAS
em gordas e simpáticas letras vermelhas. Há até mesmo um desenho meio torto de uma garça sorridente bebendo cerveja com o bico colado no gargalo – ela sorri e bebe cerveja ao mesmo tempo, e com a asa que não está segurando a garrafa, faz um sinal exagerado de positivo com um polegar levantado.
Sorrio disfarçadamente e dou um gole no gargalo da minha garrafa.
– Posso fazer uma pergunta indiscreta, senhor? – Pergunto, pigarreando por causa da bebida gelada.
– Isso vai depender do seu tipo de indiscrição, meu rapaz. – Responde ele, acedendo um cigarro com um palito de fósforo, então cai numa risada que me parece um tanto deslocada. Penso que aquele dia está sendo ótimo para ele.
– De onde veio a ideia para o nome do bar? – Pergunto sem mais rodeios.
Ele para de sorrir e começa a coçar a rala barba branca sobre o papo.
– Ô, Rosa, de quem foi a ideia pro nome do bar mermo, mulher? – Rosa está assobiando enquanto limpa as mesas de ferro do bar, acompanhando uma canção do Roberto Carlos que toca numa estação má sintonizada.
Sem parar de trabalhar, ela fala:
– Num foi de Vanessa, ômi... A menina queria porque queria esse nome... sabe lá Deus porque... Essa menina...
– Isso, mesmo. – concorda o homem, com o rosto iluminando-se novamente num sorriso de dentes amarelos – Foi minha filha mais nova que pediu... – ele dá um trago e sopra a fumaça lentamente – ela devia ter uns cinco anos nesta época. – Diz. – Hoje já tá uma moçona, só o sinhô vendo...
Vanessa. O nome da minha esposa.
O dono do Bar das Garças continua falando, mas eu só consigo pensar naquela estranha coincidência.
Até que uma ainda maior acontece.
Uma borboleta, vinda não sei de onde, pousa no gargalo da garrafa de vidro transparente do refrigerante. Possui exatamente as mesmas cores que àquela que me mostrara o lago em minha infância e mais tarde me salvara do medo dos urubus.
Asas pretas e azuis.
Lá está ela novamente.
Não diz uma palavra; indiferente à vida, à morte, e ao refrigerante cheio de açúcar borbulhando sob ela.
Mas eu ouço o que ela diz, naquele discurso sem voz.
De alguma forma, eu a ouço.
Ouço cada sílaba.
E entendo tudo.