A RESPOSTA DO DITADOR
- Por que tivemos de chegar a esse ponto? Alguma vez você parou para se fazer essa pergunta, rapaz?
Aquela interrogação teve o mesmo impacto de uma salva de tiros de canhão que o encontrasse de chofre.
Argos fitava o líder rebelde com um olhar similar ao da aranha que se diverte com o fascínio que sua teia infunde ao inseto que deseja capturar. Alto, cabelos grisalhos e olhar transbordante de malícia, envergando o fardão negro dos oficiais de alta patente, o líder supremo daquela república ascendera ao poder havia mais de trinta anos, mediante um golpe de Estado onde todos os poderes cooperaram entre si para conceder-lhe atribuições que beiravam a onisciência, a onipresença e a onipotência. Do outro lado da sua mesa de trabalho, estacava um fedelho de pouco mais de dezenove anos, fazendo um esforço sobre-humano para travar o alvo na mira de uma submetralhadora. A dificuldade não se devia ao manejo da arma, que ele de resto conhecia muito bem, mas sim à perplexidade que o atormentava naquele transe tão augusto e que só aumentara ainda mais depois da provocação feita por aquele que aprendera a odiar como sendo “o inimigo supremo da nação”.
- E então, meu caro? – insistiu o ditador – Qual a sua hipótese? Poderia ao menos conhecê-la antes de morrer?
- Seus truques são inúteis, marechal! – declarou irritadiço – Chegou a hora de pagar por todas as atrocidades que você perpetrou ao longo de mais de três décadas! Hoje a noite se liquefará em sangue no seu gabinete, a fim de que o alvorecer contemple um país livre dos grilhões que você forjou!
Sem demonstrar o menor sinal de receio, o ditador tomou assento na cadeira e, de pernas cruzadas, ensaiou um aplauso debochado para o seu antagonista.
- Bravo! Bravíssimo! Esses insurrectos realmente sabem formar bons oradores. Só espero que suas ações sejam ainda mais convincentes do que este discurso medíocre que acaba de proferir – obtemperou com um sorriso repleto de cinismo.
Vladislaus respondeu à provocação com uma rajada de balas no busto que estava à sua direita, fazendo a estátua em pedaços. Os projéteis também quebraram os vidros da janela e deram passagem aos ecos da batalha que se desenrolava no térreo do Palácio, onde os milicianos pugnavam ferozmente contra a Guarda de Elite.
- A próxima rajada encontrará o seu coração, déspota maldito! Erga-se para morrer como um homem!
O marechal permanecia impassível. O seu semblante prepotente não denunciava o mais leve sinal de perturbação. Com tranqüilidade, ergueu-se da cadeira e enquadrou o seu opositor.
- E eu posso saber a que gênero de morte exatamente você se refere com: “morrer como um homem”?
- Prisão, julgamento e execução! – sentenciou o rebelde – Diferentemente de você, faremos com que a justiça cumpra os trâmites cabíveis, mas é certo que a pena capital será o seu destino. Não há como permitir que alguém tão perigoso permaneça vivo.
- Entendo... ponderou Argos com desdém enquanto se acercava de Vladislaus – Na verdade, o seu propósito imediato é usar-me para fazer a Guarda renunciar ao combate e assim livrar os seus companheiros de tombarem sob uma chuva de balas. Em seguida, serei usado como atração principal no circo de bizarrices que vocês pretendem montar neste país. Na verdade, acho bastante curioso que isso a que vocês chamam de Força de Libertação Nacional, tenha em mente lançar mão de artifícios ainda mais baixos do que os meus para alcançar esse sonho doentio a que chamam de “democracia”.
O último termo viera sublinhado de mordaz ironia.
- Se há algo de doentio aqui é o que você fez ao nosso amado país ao longo de trinta anos, marechal Argos! – redargüiu o patriota – Sobre as cinzas da sua era de horror, ergueremos uma nação livre e democrática onde o povo terá vez, voz e decisão.
O tirano desferiu estrepitosa gargalhada.
- Uma nação livre e democrática! – repetiu com acento histriônico – O povo terá vez, voz e decisão! Democracia! Quantas nações sérias submergiram no turbilhão do caos e da anarquia, levadas por essas ideias estapafúrdias? Quantos governos se locupletam de recursos da sociedade, alegando agir em nome da liberdade e da democracia? Consegue responder a isso, caro Vladislaus? O que é essa democracia a que vocês aludem, quando o meu destino já é certo? Onde a democracia de um Estado que já condena à morte, antes mesmo de um julgamento justo, os seus opositores? Que liberdade é esta que vocês trarão a um povo incapaz de julgar e pensar por si mesmo?
- Este é o cenário criado pelos seus desmandos, Argos! – retorquiu Vladislaus fazendo um esforço sobre-humano para não perder o controle e atirar no debochado ditador – Se houvesse tido um mínimo de decência enquanto exercia o poder, as coisas não teriam chegado a este ponto e eu, um estudante universitário, não estaria aqui agora com uma arma apontada para o chefe supremo do Poder Executivo!
O marechal acercou-se ainda mais do rebelde, pousando a mão no cano da arma e indagando sarcástico:
- Por acaso se arrepende de estar aqui agora? É isto?
- De forma alguma! – replicou encostando a arma no tórax do tirano – A única coisa que realmente deploro é o fato de ter de manchar as minhas mãos com o seu sangue imundo.
- Oh, mas que lástima! – volveu Argos erguendo os braços com afetação teatral – Lamento muito por você meu caro. Certamente esperava encontrar aqui um velho combalido, indefeso e tremente que cairia de joelhos implorando pela própria vida... Infelizmente, você não encontrará nada disto aqui. Não mantive este país sob pulso firme ao longo de mais de trinta anos por mero acaso. Ao contrário de vocês fedelhos mimados, que abraçam a primeira ideologia delirante com que se deparam e a usam para justificar a própria fraqueza, eu extraí força da fraqueza e fiz deste prostíbulo um país legítimo! Não ocupo o posto em que ora me encontro por uma fatalidade nem por um capricho do destino, mas sim porque disponho de competência o suficiente para fazê-lo.
- Vejo que não sou o único com talento para discursos vazios aqui, não é mesmo? – contrapôs Vladislaus com um ricto de desprezo a lhe vincar o canto da boca.
O ditador olhou fundo nos olhos do seu interlocutor e questionou a queima-roupa:
- Tem certeza que pode chamar de vazio a um discurso capaz de manter coeso um país deste tamanho, meu jovem? Diferentemente de vocês rebeldes, o meu discurso sempre levou em consideração a realidade social, econômica e política deste povo imundo e canalha que você diz representar e defender.
- Cale-se, maldito! – trovejou Vladislaus – Como se atreve a falar assim do povo que você deveria governar e proteger?
Argos não deu a mínima atenção à objurgatória:
- As teorias políticas e econômicas que venho aplicando ao longo de mais de três decênios, são fruto do meu exaustivo labor de governante, alicerçadas todas elas nas reais necessidades da coletividade. Eu bem poderia me portar como os demais chefes de Estado ignóbeis do continente, que fingem preocuparem-se com a opinião do povo quando na verdade desconhecem e ignoram a realidade em que se movimentam, preferindo ostentar a máscara da tolerância e da democracia, como o álibi infame que justifica a sua própria sordidez. Mas não, este não seria eu. Meu compromisso é com a retidão de princípios. Não deixarei que o crime e a impunidade voltem a grassar como antes, como o faziam os biltres “democratas” do passado, ávidos de honrarias e poder. Um poder que nunca souberam usar senão para encher os próprios bolsos, deixando a nação à beira da miséria e da perdição! É pelo retorno desse passado abominável que vocês lutam? É pela implantação da baderna e do caos que antes imperavam que vocês pegam em armas e invadem a sede da república?
- Não! – replicou – É para dar um fim aos abusos condenáveis que você vem perpetrando! É bem verdade que a corrupção declinou, mas ela apenas mudou de cara. No lugar de um parlamento venal e podre, temos um Estado Maior cujos tentáculos não param de drenar a vida e o sangue de todo o nosso povo! A miséria socioeconômica cresceu a patamares absurdos, enquanto os dignitários do governo prosperam torpemente! Pessoas são perseguidas, presas e torturadas, pelo simples fato de externarem seu descontentamento com o Regime! O direito de ir e vir foi severamente cerceado, ao ponto de até mesmo crianças e idosos serem detidos e espancados, quando são surpreendidos nas ruas após o toque de recolher! As periferias são diariamente tingidas de sangue e amanhecem atulhadas de cadáveres, graças à ação monstruosa das Forças de Segurança! O Estado que deveria servir ao povo converteu o povo em seu escravo! É pelo fim dessa tirania abominável que lutamos! Pois, à semelhança de Zeus, não mais podemos tolerar você como um novo Cronos a devorar a nossa própria carne!
Franzindo o sobrolho, o marechal voltou a admoestar o seu opositor:
- Vladislaus, meu caro Vladislaus... Você tem uma visão exageradamente otimista do povo e isto o torna politicamente míope. É preciso enxergar com maior acuidade a verdadeira natureza humana, quando se está disposto a fazer a diferença. Noto muito sentimentalismo em seu discurso. Quisera eu fosse ele vazio, pois ainda haveria alguma chance de crescimento e maturidade para as suas ideias. Nas atuais circunstâncias, contudo, o seu estado não é nem mesmo de miopia, mas de verdadeira cegueira. Aqueles que servem o Estado são bem recompensados pela sua dedicação à causa nacional, coisa que apenas os reacionários infantis da sua estirpe não são capazes de perceber. De fato, algumas mortes aconteceram e algumas gotas de sangue foram vertidas, mas em que nação do mundo tais coisas não acontecem? O que é melhor? Saber que o Estado fiscaliza e pune com rigor tanto as pequenas transgressões quanto as grandes, ou tolerar que o crime cresça e viceje, aprisionando famílias honestas e honradas em suas próprias casas? O vinho é o resultado natural das muitas uvas pisoteadas no lagar, mas ninguém se preocupa com a dor e o sofrimento que os rebentos da videira porventura hajam experimentado, por uma única razão: a função das uvas é tornarem-se vinho. O destino dos transgressores é igualmente encontrar a punição que lhes é devida, a fim de que a sociedade avance e prospere livre desses asquerosos parasitas. As cadeias não mais jazem repletas de acusados e de criminosos como soia acontecer antes, pois a justiça tornou-se realmente eficaz, saneando o país em todos os sentidos. Ou será que você pretende argumentar que a educação é capaz de resolver todos os problemas, como os velhos traidores da pátria costumavam alardear? É bem típico de vocês, não é mesmo? Inventar dísticos mirabolantes e ocos para tamponar a própria incompetência, ao mesmo tempo em que se proclamam verdadeiros Messias. Pois eu digo que não hesitaria em erguer montanhas, cordilheiras de corpos, e verter rios, mares de sangue, se este fosse o preço a ser pago pela construção de uma nação respeitável. Eu diria, na verdade, que é um preço insignificante a se pagar pelo bem da coletividade, você não acha?
- Você é um monstro! – disse o rebelde rilhando os dentes e engatilhando a submetralhadora – Então não sente o mínimo de pesar por todas as atrocidades que praticou?
Novamente Argos desatou numa risada frouxa e sardônica:
- Pesar? Pelo quê? Por libertar o meu país da escória que o governava? Jamais poderia sentir pesar por cumprir com o meu dever. Mas, devo concordar com você numa coisa: de fato, sou um monstro. Tornei-me um monstro justamente porque precisava abjurar do que é humanamente aceitável a fim de fazer o que era necessário àquela época. Continuei sendo um monstro, porque seria impossível tocar essa imensa manada de seres acéfalos pela qual você afirma morrer de amores, sem tratá-los com a rudeza necessária. Essa animália que atende pelo nome de povo é o verdadeiro monstro em questão, Vladislaus. Famélico, traiçoeiro e letal, ele está sempre pronto a devorar com os seus milhões de bocas o primeiro infeliz bem-intencionado e desavisado que se deixar enfeitiçar pelo seu canto suplicante e sedutor. Apenas na qualidade de monstro é que se torna possível compreender como os monstros se comportam, e, desta forma, antecipar surpresas desagradáveis.
Aquele discurso chegara finalmente ao apogeu do intolerável.
Vladislaus fez menção de atirar mas, no exato instante em que iria fazê-lo, Argos o desarmou e o pôs contra a parede, premindo um punhal contra a sua jugular. O líder revolucionário parecia não acreditar no que acabara de acontecer. A prolongada hesitação em que se quedara ouvindo os argumentos do seu inimigo, o havia deixado completamente vulnerável. De fato, o odioso marechal tinha razão: ele não era um velho indefeso, mas sim uma serpente ardilosa espreitando a presa para dar o bote.
A catadura patibular do ditador estampava naquele momento um detestável sorriso de triunfo, que se fazia ainda mais repulsivo pelo coruscar das suas pupilas verdes de ofídio.
- Está vendo ao que me refiro? – ponderou Argos – Você é demasiado ingênuo, rapaz... Não consegue renunciar à sua humana fraqueza para fazer o que lhe cabe. Se não consegue abater um único monstro à sua frente, como acha que poderá dar conta de uma miríade deles? Durante todo esse tempo, você teve chances de sobra para me levar como refém ou mesmo para me matar, mas preferiu ouvir o que eu tinha a dizer e, desta forma, deu-me tempo o bastante para mudar a situação a meu favor. O mesmo ocorre com a chefia de um país. Em um momento você pode ter tudo a seu favor e, no instante seguinte, pode estar acuado contra a parede sem a menor chance de defesa. Como acha que vai fazer com que esta nação, afeita à corrupção e à barbárie desde os seus primórdios, abrace a honradez com meia dúzia de palavras ocas saídas das bocas de vagabundos delirantes como você, Vladislaus?
Ódio e medo se mesclavam na máscara facial do rebelde. Ódio por haver deixado as coisas chegarem àquele ponto. Medo por sentir que as palavras do seu inimigo eram de fato legítimas. Ele falhara. Seu desmesurado idealismo levara-o até ali, mas também o fizera excessivamente honrado para agredir e matar um refém indefeso, ainda que este mesmo refém houvesse feito correr caudais de sangue e pranto pela nação inteira. Sangue que era também seu, pois perdera dois tios paternos e três primos durante o Levante de Maio, quando ainda era apenas um adolescente. Sangue que ele deveria vingar, mas que jurara fazê-lo mediante a rígida observância dos princípios que defendia, respeitando os ideais democráticos de liberdade e justiça.
- Mate-me, seu infeliz! – rosnou entredentes – A Força de Libertação logo estará aqui e você terá o que bem merece!
- O que disse? – replicou o tirano – Está desistindo da missão que o trouxe até aqui e delegando-a aos seus companheiros? É assim que pretende proceder quando estiver no poder, rapaz? Deixando a cargo de outrem o que é de sua responsabilidade?
Rajadas de tiros e explosões de coquetéis Molotov ecoavam na esplanada e alcançavam o gabinete pela vidraça estilhaçada. O clarão das explosões reverberava na penumbra e agigantava sobremodo as silhuetas dos dois contendores.
Argos liberou Vladislaus, mas teve o cuidado de chutar a arma para fora do seu alcance. Entregou em seguida o punhal ao seu oponente e, tomando da sua mão, pressionou a lâmina contra o seu próprio pescoço, desafiando-o com um sorriso escarninho:
- Vou lhe dar mais uma chance. Se não tem forças para ser o monstro, então torne-se o herói que matará o monstro. Seja o novo Siegfried que entrará na caverna de Fafner para abater o dragão e banhar-se no seu sangue, conquistando o poder e a imortalidade que lhe cabem!
Vladislaus estava boquiaberto. Afinal de contas, que tipo de demônio era aquele marechal? Como ele podia jogar com a própria vida daquela forma? Não havia nada que ele temesse? Nem mesmo a morte era capaz de inspirar-lhe um mínimo de pudor?
- O que pretende, desgraçado? – indagou trêmulo de cólera.
- Estou lhe dando a última chance de mudar o curso da História, filho – respondeu imperturbável – Isto já estava previsto. Desde quando assumi as rédeas desta nação, tudo fiz para que em algum momento surgisse alguém com coragem o suficiente para lutar por aquilo em que acredita e impor uma nova ordem. Acha mesmo que eu sinto algum prazer em oprimir e perseguir o meu próprio povo, Vladislaus? Foi o povo mesmo que me levou a isto, quando exigia uma mão implacável que o esmagasse, que lhe seqüestrasse a liberdade a fim de que pudesse realmente compreender o seu valor. Mas não importa o que eu faça, é inútil. Trinta anos se passaram desde a minha ascensão e este país compraz-se ainda e sempre na depravação e na indolência. Não importa quantos milhões eu torture e mate, eles dobram a cerviz como ovelhas num matadouro, esperando resignadamente que o cutelo do algoz os retalhe vivos! Isto é intolerável! Eu não suporto mais levar sobre os ombros o fardo em que esta nação se converteu! Por que acha que eu permiti o avanço de vocês até aqui? Bastaria um sinal meu para que vocês fossem massacrados, mas eu estou cansado de tudo isto... Eu me condenei à servidão na qualidade de mandatário. O poder é uma ilusão cruel, Vladislaus. Aqueles que o detém não o controlam, senão quando abjuram da sua própria humanidade em nome de uma causa maior. Eu também tinha sonhos de erguer uma nação justa e digna, assim como vocês, mas tive de me submeter à sina abominável de converter-me em carrasco do meu próprio povo apenas para preservá-lo. Pois se eu cedesse um único milímetro, permitiria o retorno de uma era de podridão e despudor contra a qual sempre lutei e que estava arrastando a todos nós para o centro de um vórtice de destruição. Eu me ergui contra as calamidades da minha era, bem antes de você nascer. Agora é a sua vez de sanear os males que eu engendrei, mas não se engane: você não será capaz de conservar o poder e de realizar os projetos com que tanto sonha, se não for tão ou mais cruel do que eu mesmo o fui. No fim, uma nova rebelião deverá surgir e derrubá-lo, assim como você fez a mim e eu fiz aos meus predecessores. E assim será, até que o povo deste país se torne responsável pelo próprio destino e deixe de forjar déspotas e salvadores da pátria para justificar a própria desídia. A democracia que você tanto insiste em alardear, nunca será possível enquanto o povo preferir deixar a cargo dos governantes a responsabilidade intransferível de construir coletivamente a nação com os seus próprios esforços...
Impossível descrever a expressão de Vladislaus ao ouvir aquelas palavras. O tirano se colocava na qualidade de escravo do povo a quem oprimia. Só poderia ser mais um truque, como os que usara antes para confundi-lo. Os sons da batalha no exterior do edifício recrudesciam e tornava-se cada vez mais difícil distinguir qual dos dois lados estaria levando a melhor.
- Vá em frente, Vladislaus! – ordenou, pressionando a própria jugular contra a lâmina do punhal – Cumpra o seu destino! Liberte-me deste fardo intolerável e faça o que deve ser feito!
Enorme tensão dominava o recinto. Argos seguia pressionando a lâmina do punhal contra o próprio pescoço, ao ponto de já conseguir até mesmo esfolar a pele e arrancar um pequeno filete de sangue do local. Vladislaus, a seu turno, rilhava os dentes e tentava realmente dar cabo do déspota, mas alguma força poderosa o obstava de ceifar a vida do marechal. Por fim, quando a tensão alcançou o apogeu, o rebelde afastou o braço e fez menção de cravar o punhal na garganta de Argos. Mas, ao invés disso, limitou-se a atirar a arma ao solo, que acabou se cravando entre o carpete e o piso do gabinete.
O marechal recuou com ares de decepção pelo gesto do rebelde.
- Então... Você não é capaz. – disse de olhos fixos no punhal – Lamentável... Realmente lamentável.
A resposta do revolucionário veio num outro gesto igualmente surpreendente: Vladislaus tomou da pistola que trazia sob a jaqueta e engatilhou-a contra a têmpora direita.
- Que pretende fazer, infeliz? – inquiriu Argos transparecendo inquietação pela primeira vez.
- Não vou me tornar o monstro que você se tornou, Argos! – blasonou com olhar esgazeado, enquanto levava o punho fechado ao peito, na saudação característica da Força de Libertação Nacional – Você vai viver e pagar pelos seus crimes, nem que para isso tenha de continuar a frente desse governo abominável que você mesmo constituiu!
O estampido horríssono da arma a dilacerar-lhe o crânio e a massa encefálica seguiu-se a esta declaração. O corpo do líder rebelde tombou aos pés do déspota, que afastou com a sola do coturno a cabeça estilhaçada, esboçando um esgar de repulsa que abrangia muito mais o ato de Vladislaus do que os seus despojos propriamente ditos.
Na área externa do edifício, a Guarda de Elite desferia o golpe de misericórdia contra os rebeldes. Quando a situação foi finalmente contornada, o comandante da guarnição adentrou o gabinete do marechal e, tomado de profunda inquietação ao ver o cadáver estendido sobre o carpete, indagou de Argos se estava ferido. Impassível como sempre, o ditador fez sinal para que ele se acalmasse. Só então o oficial voltou-se para o corpo de Vladislaus e atreveu-se a perguntar:
- Era o líder dos rebeldes, senhor?
Argos deixou escapar um suspiro.
- Não – declarou por fim, transparecendo certa amargura na voz – Era apenas um jovem cheio de sonhos que julgava possível mudar um país com as boas intenções que esposava... Infelizmente, ele estava enganado.